sexta-feira, 26 de agosto de 2022

A apropriação cultural a Fernando Chalana


"“Emular al ídolo es a lo que juegan millones de niños cada día en el mundo entero. (…) Cada vez que estos ídolos se asoman a la televisión con su instrumento (un balón, una raqueta o un coche), se convierten en maestros de miles de niños que los miran con los ojos llenos de admiración.”
(Jorge Valdano, 2014)

Partiu Fernando Chalana. Partiu um dos grandes. É vulgar dizer que o património do Futebol fica mais pobre, mas isso não é bem verdade. O património fica. Pelos seus feitos, pela sua história, nas lendas que criou comprovadas pelos relatos das testemunhas que o viram jogar e pelos arquivos dos jornais e televisão. E pelo homem que foi. No fundo, toda a sua qualidade, manifestada na sua relação com a bola, lateralidade e recursos técnicos, que num todo composto também pela sua enorme humanidade, inteligência táctica e criatividade invulgares, consumavam a tal genialidade que todos lhe reconhecem.
Tal qualidade garantia-lhe uma fantástica eficiência nas suas acções, parecendo tornar simples, o complexo. Eficiência essa que lhe garantia uma regular eficácia que mescladas com uma estética inconfundível e apaixonante tal qual a sua paixão pelo jogo, colocavam-no no panteão dos grandes do Futebol. Do Futebol português, mas também do Futebol mundial. Chalana tornou-se então património. Tornou-se, cultura.
Cultura, que muitas crianças do seu tempo procuravam imitar. No meu tempo, “éramos” na nossa “rua”… Luís Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, João Vieira Pinto, Fernando Couto, Maradona, Van Basten, Baresi, Romário, Roberto Baggio, Matthäus, Redondo, Batistuta, Ronaldo “Fenómeno”, etc., etc.. Imitávamos consciente ou inconscientemente as suas acções, os seus comportamentos, até o mais ínfimo detalhe. Porém, provavelmente nessa geração, talvez tenha sido o fabuloso Paulo Futre o mais adorado e a maior vítima de “apropriação cultural”… Pelo menos em Portugal. O seu drible, muitas vezes através de uma ginga e gestualidade desconcertantes, nomeadamente através da peculiar forma como movimentava os braços de forma enganar os adversários, mas também as suas mudanças de velocidade, os seus remates inesperados, muitas vezes até de “trivela”, eram vistos em qualquer espaço aproveitado para campo de futebol. Fosse no baldio, no ringue da escola, no ringue do bairro ou no corredor lá de casa. Porém, até o incrível Futre também se “apropriou culturalmente”.

“Tenho muitas jogadas dele na cabeça. Ainda hoje não sabemos como ele fazia para fintar, um, dois, às vezes três jogadores, só com a cintura, sem tocar na bola. Acho que muitos dos meus movimentos de braços – uma grande virtude minha, quando jogava, vêm também daquele movimento de cintura, sem tocar a bola. Eu tentava imita-lo de qualquer maneira. Quis ser como ele durante toda a minha infância, e depois na minha adolescência. Era único, a minha referência. Eu treinava muito mais do que outros jogadores jovens porque queria chegar perto deste génio, queria ser profissional e chegar perto do nível dele. Mas nunca cheguei, nunca cheguei porque era impossível.”
(Paulo Futre, 2018)


Torna-se fundamental dizer que se engana redondamente aquele que pensa que as mais recentes distorções sobre a “apropriação cultural” são produto de um só “grupo” social. Esse não só é um pensamento falacioso como está ao mesmo nível do objecto da crítica. A estupidez não escolhe raças, países, clubes, partidos ou credos. A história humana comprova-o.
Enganam-se também as opiniões que dizem levianamente que o Futebol é apenas um jogo. O Futebol é intemporal e o enorme impacto social que produz tornam-no muito mais do que apenas um jogo. Paralelamente ao enorme espectáculo que se tornou, é um incrível veículo de transmissão de valores. Reproduz a uma escala mais pequena a essência do ser humano e a sua necessidade em cooperar, ser solidário e competir. De forma saudável, respeitando os outros e primeiramente, a si mesmo e a sua humanidade. Desta forma, manifestando a sua necessidade de viver em sociedade.
O jogo de futebol ensina-nos a não segregar, separar e a respeitar o outro. O outro indivíduo, o “outro”, equipa. Seja pela raça, cor da pele, morfologia, estética, religião, partido político, características técnicas, forma de jogar, etc., etc. Como é habitual dizer-se… “lá dentro são todos iguais”. Acrescentamos… são todos iguais nos valores e justiça perante o jogo, porém com individualidades e ideias colectivas diferentes. A riqueza cultural e diversidade no jogar são qualidades decisivas para vencer. Tal qual, num plano mais macro, são fundamentais para a espécie humana ter subsistido até hoje.
Estas diferenças e diversidade… fazem portanto parte de uma riqueza cultural incrível, que consubstancia outra dimensão fenomenal do jogo, à imagem da sociedade em geral. Uma riqueza que não cresceu isolada, mas sim fruto da difusão, interacção e socialização dos diferentes povos e culturas. Conseguimos, por exemplo, imaginar a riqueza do jogador brasileiro sem a mistura cultural e genética do povo nativo da América do Sul, com as qualidades dos Africanos, Europeus e até Asiáticos? Conseguimos imaginar um golo de grande penalidade ser anulado porque não seria permitido copiar a ideia de Antonín Panenka? Ou o golo na jogada do pontapé de saída do PSG no último jogo? Pelo menos Bournemouth, Eibar, PSG em Sub19 e Real Madrid, estes últimos contra o próprio PSG… com maior ou menor sucesso, fizeram exactamente o mesmo. E ainda a impossibilidade da existência do Barcelona de Guardiola, porque se inspirou em Johan Cruyff, que por sua vez “bebeu” conhecimento em Rinus Michels, que originalmente sofreu influências de Jack Reynolds, entre outros? O próprio Futebol. Não se sabe exactamente o seu ponto de origem tendo em conta as suas inúmeras raízes culturais, mas tendo em conta que foram os britânicos a regulamentá-lo, todos os países inclusive Portugal, realizaram então, a determinado momento, uma apropriação cultural. Imaginamo-nos então sem Futebol? E regressando ao início… Futre não teria sido… o grande Futre.
A cultura é sem dúvida dos bens mais preciosos que podemos ter e que no fundo também nos distingue enquanto seres humanos. Por outro lado, tal como a uma equipa, ninguém consegue, culturalmente, copiar outro indivíduo de forma integral. No máximo, acrescenta a si, transforma a sua identidade e contribui para a diversidade e riqueza cultural da espécie. Sendo por transmissão, ou por “apropriação”. No final do dia, “somos todos simplesmente um” como confessou Justin Britt-Gibson para o Washington Post (Wikipédia, 2022) a propósito do tema, e como defendemos no artigo anterior.

“Foi a minha referência, a minha inspiração, o meu ídolo. Dificilmente estava aqui, a falar neste momento, se não fosse o Chalana. Ele teve muito que ver com a carreira que fiz. Eu tentava imita-lo, era eu jogador do Sporting com 11 anos. Já ia ao Estádio da Luz, para o terceiro anel. Eu não ia ver o Benfica, ia ver este pequeno grande génio.“
(Paulo Futre, 2022)"

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