terça-feira, 29 de março de 2022

Bem melhor o Portugal dos pequenitos


"Já aqui assinalei o contrassenso de quem pedia mais qualidade de jogo à seleção e ao mesmo tempo reclamava a titularidade de jogadores agressivos nos duelos ou mais robustos para transportar bola. Sendo o jogo sempre feito de lances diversos e que exigem respostas variadas, dois dados me parecem indiscutíveis: só precisa de jogadores muito fortes nos duelos quem os promove por regra e só necessita de futebolistas que “carreguem” a bola (e com ela a equipa) para a frente quem não o lograr pelo processo coletivo. E há muito que o diagnóstico do jogar da seleção portuguesa apontava para duas dificuldades recorrentes: por um lado gerir ritmos com bola, tê-la mais tempo e não viver de acelerações, por outro, e principalmente, ligar jogo, encontrar soluções de passe, nas alas mas também no corredor central, que aproximem a construção da criação, etapas sem as quais não se chega de modo competente à definição (ou finalização). Dizia-se, em linguagem simples, que faltava fio de jogo à seleção. E faltava mesmo. Desta vez faltou menos.
A grande diferença, a principal, foi ter no comando do meio-campo aqueles que são, provavelmente, os dois jogadores taticamente mais inteligentes do futebol português: João Moutinho e Bernardo Silva. Foi entregar a casa das máquinas a quem melhor conhece o barco e o destino, foi colocar a dar aulas os catedráticos que escreveram as sebentas. Moutinho mais posicional, como se impunha, num lugar que só pode ser tão bem ocupado por Rúben Neves, e Bernardo finalmente no centro do jogo, tocando mais vezes na bola como convém aos que melhor decidem, varridos aparentemente os traumas quanto à eficácia da dupla em momento defensivo. E a somar aos dois também Otávio, naturalmente valorizado pelo golo e assistência, mas que sobretudo fez a equipa mais completa em todos os momentos. Fernando Santos foi perspicaz no aproveitamento tanto da capacidade tática em momento ofensivo, que lhe permite ser, consoante as necessidades, ora extremo ora mais um médio interior, como da agressividade defensiva, a começar na reação à perda, que o portista garante como poucos e num perfeito desmentido da aparente fragilidade física.
E depois a bola nunca chora quando os médios são Moutinho, Bernardo, Otávio e Bruno; os mosqueteiros baixinhos garantiram que Portugal tivesse quase sempre superioridade numérica no corredor central, muitas vezes 4 homens para 2 turcos, já que Kuntz apostou numa estrutura de 1.5.2.3. Foi o outro desmentido relevante deste jogo: Portugal não tinha, afinal, nenhuma verdadeira dificuldade em defrontar equipas com uma linha defensiva de 5 unidades, Portugal tinha dificuldades era em encontrar-se a si próprio nos momentos de posse. Claro que nem tudo passou a estar perfeito, longe disso. E dizer isto é mais que assinalar a noite menos feliz de Ronaldo ou um rendimento de Bruno Fernandes ainda aquém do que pode. É, principalmente, reconhecer que houve momentos em que a equipa perdeu o controlo do jogo, fosse por excessos de aceleração sem grande critério (sobretudo de Jota na segunda parte) ou pela eterna pressa em servir Ronaldo mesmo quando não é a melhor opção. No entanto, não há como negar que a progressão quanto à intenção de jogar foi evidente.
É mais fácil falar hoje da sorte que acompanha Fernando Santos, pelo penalti falhado pelos turcos ou pela queda da Itália aos pés da Macedónia, mas é justo reconhecer que, após a depressão da fase de apuramento e mesmo do Europeu anterior, o selecionador por uma vez mudou e fê-lo para melhor. E nem merece sequer que se lembre o seu celebrado conservadorismo, até pelo modo ousado, mas com argumentos de rendimento, com que entregou a baliza a Diogo Costa. Na terça-feira, com a defesa recomposta mediante os regressos de Cancelo e Pepe (falta Ruben Dias), Portugal volta a aproximar-se da máxima força, numa altura em que João Félix rende como nunca desde os tempos do Benfica (e justifica titularidade, mesmo sendo difícil dizer quem sai) e Rafael Leão surge como arma ofensiva diferente de todas as outras, mas em que a qualidade vai muito além da envergadura e da explosão. A questão de fundo é sempre o talento, não o corpo. E a seleção teve-o mais, sobretudo no meio campo. Por isso foi melhor este Portugal dos pequenitos."

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