quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O Lobo e a sua consciência


"Capitão da seleção argentina, Carrascosa vivia magoado com a ditadura no seu país. Recusou participar no Mundial-78.

A Final de Los Papelitos, no Monumental de Nuñez, no dia 25 de junho de 1978, foi, decididamente, um dos maiores espetáculos da história de todos os Campeonatos do Mundo. Nada poderia, nesse final de tarde, dobrar o fanatismo argentino. Nem a força política de um movimento que começou por ter o nome sebento de Proceso de Reorganización Nacional, que destituiu a presidente María Estela Martínez de Perón no dia 24 de março de 1974, ensaiando uma espetacular prisão no aeroporto Jorge Newberry.
Quando Daniel Passarella ergueu a Taça do Mundo perante um povo que chorava como Madalenas e rasgava as roupas de felicidade quase raivosa, milhares de sindicalistas, estudantes e ativistas políticos apodreciam nos cárceres do general Videla que aproveitara a competição para propagandear as virtudes da sua miserável ditadura.
Não foi certamente por acaso que Alexandre O’Neill escreveu, na noite anterior: «Em Buenos Aires, no River Plate/a seis campos de futebol (medidas máximas)/do Centro onde, entre outros primores de jogo/se chutavam testículos, mamas e cabeças/a Taça do Mundo ferverá nas mãos de quem a ganhar/de quem a empunhar, de quem por ela beber/A MERDA DE TER LÁ IDO». O Centro de que falava O’Neill era um edifício pertencente à Marinha Argentina que ficava a apenas 200 metros do campo do River Plate e no qual se perpetravam as piores torturas imagináveis.
O Monumental de Nuñez não fica em Nuñez, um dos bairros finórios de Buenos Aires. Fica em Belgrano, outro bairro de gente finíssima, logo ali ao lado, e chama-se Estádio Antonio Vespucio Liberti, o presidente do clube que o mandou construir.
María Estela foi fechada na Residencia El Messidor e um canalha de nome Jorge Rogelio Villarreal, também general, pois então, avisou através das rádios e da televisão: «Las Fuerzas Armadas han decidido tomar el control político del país.» A expressão resolvido é quase poética. Sobretudo quanto proferida por uma cavalgadura de 88 patas. Quatro anos mais tarde, naquele preciso momento em que Passarella, o capitão da Argentina que derrotou a Holanda no prolongamento, com golos de Bertoni e de Mário Kempes, empunhou o troféu de ouro maciço sem sentir que ele fervia nas suas mãos, estava a ser, talvez inocentemente, quem sabe?, um usurpador.
Jorge Carrascosa tinha por alcunha El Lobo. Em 1973, com outros dos argentinos campeões do mundo, René Houseman, formara uma dupla extraordinária no Huracán. Ficaram conhecidos como El Lobo e El Loco. O adeptos divertiam-se com o seu jogo imaginativo e inesperado. E todos os companheiros olhavam para Carrascosa com a admiração que é devida a um líder.
Jorge nasceu para ser capitão e campeão. Estava-lhe no sangue. Exibia um rosto sempre sério e tinha, geralmente, uma atitude fria para com aqueles que o abordavam. No fundo, tratava-se de timidez. Vivia no meio de um futebol apodrecido.
O campeonato argentino pululava de árbitros corruptos, de jogadores que se dopavam e, sobretudo, de uma incontrolável violência em todos os estádios. A pouco e pouco, foi deixando de estar apaixonado pelo jogo. Tornou-se uma voz crítica.
Acusaram-no de hipocrisia, de excesso de amargura. Logo a ele que usava a braçadeira de capitão da equipa das camisolas às riscas brancas e azuis celestes.
Jorge Carrascosa e Luís César Menotti tinham uma relação de amizade cúmplice. O treinador escolhido para guiar a Argentina até à conquista do seu primeiro título mundial, gostava de o ouvir falar e confiava nele para comandar os companheiros. El Lobo era um líder. E ninguém, em campo, punha em causa a sua liderança.
Durante o Campeonato do Mundo de 1974, Carrascosa viu-se confrontado com um episódio que mexeu com a sua consciência. A Federação Argentina, correndo o risco de não se qualificar para a segunda fase, ofereceu um incentivo financeiro aos polacos para que estes vencessem a Itália. «Eso eres un follón», exclamou em plena cabina. «Mirá, si alguien va a jugar mejor porque le den más plata…». Para sua surpresa, a Polónia ganhou mesmo. E Jorge sofreu mais uma desilusão.
El Lobo era um homem que caminhava pelo lado esquerdo da vida. Continuou as suas conversas profundas com Menotti, aceitou continuar a ser capitão de um grupo que se ia preparando para atingir um momento único na história do futebol, mas numa entrevista deixou claras as suas ideias em relação ao que se passava no seu país:
«No es necesaria una dictadura militar para dejar el fútbol. Hay muchas cosas que pasan en este sistema de vida que te hacen dejar, perder las ilusiones». Na véspera da convocatória para o Mundial de 1978, ligou a Menotti: «No va más, Cesar...».
A sua consciência não o deixou ser campeão do mundo."

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