quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

A melhor versão do Benfica


"Qual é afinal o problema do Benfica? Bem sei que cada seguidor (não necessariamente sequer adepto do Benfica) terá a sua opinião e escolherá a vertente que lhe for mais querida. Para uns será o dirigismo, o planeamento, para outros será o plantel ou o treinador, para outros serão as conspirações que, vendo o jogo, clubes e equipas como uma espécie de fantochada, colocam uns no topo e outros no fundo, como se tudo se pudesse controlar e não houvesse oposição a essas tentativas. E tudo terá um peso, não o nego. O que penso é que um problema (note-se que não coloquei no plural) em futebol será sempre algo intimamente ligado à reação de um clube aos bons e maus momentos. E se formos pragmáticos, qual é mesmo a única coisa que podemos realmente controlar? Podemos obviamente ter a ilusão de tentar controlar tudo à nossa volta para que o exterior não nos provoque reações adversas. Mas será isso construtivo? Ou não será mais realista, e pragmático, o abraçar dos resultados (positivos ou negativos) como forma de ver coisas que podemos transcender, melhorar, ultrapassar?
E olhando para o Benfica, para a sua história e para a forma como a maioria dos adeptos vê o clube e o que lhe exige, será pragmático e realista achar que o estado de coisas que levou o clube às suas maiores glórias se perpetue no tempo, ou que possa ser sequer a bitola para os dias de hoje? E é nessa irrealidade que assenta a (pouca) estabilidade do Benfica. Vejamos: o clube teve um presidente que durante (quase) 20 anos promoveu e alimentou essa expectativa (ilusão). Primeiro prometendo (o que até nem foi ilegítimo) e depois fazendo crer que essa realidade era uma evidência. Falo obviamente do facto indisputável (para esse presidente e essa estrutura) que o Benfica era um clube num patamar acima (ou muito acima) dos rivais nacionais. Uma ideia facilmente comprada pela massa adepta, ardente de ver esse desejo, essa expectativa, confirmada, validada pela realidade. E o problema do Benfica é que a realidade nunca bateu certo com essa expectativa – ou pelo menos nunca a validou totalmente. E mesmo em bons períodos, a ideia de que o Benfica era um caso sério na Europa do futebol ficou sempre aquém da realidade.
Mas se formos (mais uma vez) sinceros, realistas e pragmáticos, é assim um grande problema que o SL Benfica não seja um colosso europeu e que não ganhe 9 Ligas em 10 anos? É que mesmo nas Ligas do chamado big 5 não é assim tão comum estados de graça que durem décadas na Champions – ou seja as hegemonias (se assim se podem chamar) na Europa do futebol não se perpetuam no tempo. E fora das maiores 5 ligas então… nem valerá a pena falar. É assim um enorme fracasso que o Benfica partilhe tempos áureos nas competições domésticas com adversários de igual valia e que não consiga ser permanente nos quartos, meias e finais europeias? E o problema do Benfica – se quisermos ser realistas e pragmáticos – é que a reação a esses desaires é a maioria dos adeptos vendo-os como sendo a apologia de um fracasso, algo que não se admite, porque nas suas mentes o Benfica quase terá que ganhar por decreto. E o que acontece quando um clube, só por ser o clube que é, não ganha o que os seus adeptos acham que tem de ganhar? Refazem-se expectativas medindo-as com a realidade? Nada disso. Aponta-se a todos os alvos que não conseguiram aquilo que, sinceramente, é impossível. E essa desequilibrada reação à realidade de que o Benfica não está muito acima de ninguém é o real problema do Benfica.
Uma reação facilmente explicada com uma rápida cronologia. Podíamos ir mais longe, mas recordar a última época (ou meia época se quisermos) de Rui Vitória será suficiente. Sob o mote da reconquista (depois da Liga perdida para a primeira versão do FCP de Sérgio Conceição), a equipa até começou bem batendo os campeões nacionais na Luz depois de um golo de Seferovic sem resposta por parte dos dragões. O problema chegou depois (como quase sempre) quando um dos resultados normais da realidade benfiquista não bate certo com as expectativas de que o Benfica tem, e terá de ser por decreto, um colosso europeu. Foi em Amsterdão, contra um fabuloso Ajax, que o Benfica se bateu mas acabou derrotado nos últimos instantes. E esse resultado foi como que uma faca cravada no coração dessa ideologia, desse idealismo irrealista que já descrevemos acima. A partir daí, uma contestação que hoje já é vista como normal levou à saída de Rui Vitória da equipa. Ora, aqui até podemos dizer que a contestação levou a algo de bom pois o setubalense Bruno Lage haveria de conduzir a equipa a uma das mais brilhantes séries de resultados da sua história – que redundou na tal reconquista. Mas o balão de oxigénio que Lage deu ao clube fez algo para mudar as expectativas? Pelo contrário. Muito pelo contrário. Os bons resultados de Lage criaram a sensação de que tudo o que se vinha idealizando e prometendo era verdade. O balão da confiança encheu até a realidade bater mais uma vez à porta. O Benfica afinal não era o que os seus adeptos acharam que era. A derrota com o FC Porto (0-2) na Luz abriu a ferida e não mais Lage conseguiu estancar o sangue – especialmente depois de uma campanha na Liga dos Campeões onde ficou atrás de duas equipas que foram bem longe na competição e que eram superiores. Mas isto os benfiquistas nunca quiseram ouvir, como não querem ouvir que, a espaços, FC Porto ou Sporting podem mesmo ser superiores ao Benfica. É pensamento non grato porque vai contra àquilo que muitos pensam ser a essência do benfiquismo.
O que interessa mais nesse momento (das derrotas da ideia de um Benfica superior em todas as vertentes) é apontar armas a um moinho de vento. O tal que não faz do Benfica campeão europeu, o tal que não faz do Benfica um clube hegemónico como o Bayern Munique. E assim se vive numa encruzilhada que para a explicar teremos de continuar a seguir a cronologia. A Lage seguiu-se Veríssimo e um período de apatia e depressão que o antigo adjunto de Bruno Lage não conseguiu sacudir (déjà vu?), um abatimento sacudido por uma contratação transatlântica com ares de fazer de Jorge Jesus, e sua equipa técnica, os Libertadores. Mais uma vez o Benfica tinha ganho o campeonato sem o jogar e voltaria à sua essência de imparável. O problema é que as mediáticas contratações não chegavam para meter a equipa no nível a que o FC Porto, primeiro, e o Sporting depois, conseguiram chegar. Um problema de intensidade, com e sem bola, que colocou o Benfica como uma equipa do brasileirão na Liga e na Europa do futebol. Uma equipa que, lá está, ganharia por decreto, por ter a suposta melhor organização e os melhores jogadores, mas que aos olhos mais atentos (mesmo quando ganhava, até por muitos, na Liga) estaria sempre perto de baquear quando apanhasse equipas muito mais preparadas para todos os momentos do jogo. Jesus foi esperneando (teve até de mudar o seu mais que habitual 442 para algo que desse mais segurança às inúmeras transições que os erros não forçados provocavam, como também para os inúmeros duelos não ganhos), e foi tentando desviar atenções enquanto afirmava/prometia que o Benfica estava de boa saúde. Mas se desta vez não foi na Champions (beneficiando de um Barcelona que não lembraria ao mais ferrenho adepto do Real Madrid) acabou por ser nos confrontos com os maiores rivais que a realidade bateu de novo à porta. O nível do Benfica de JJ, lembramos, não era medonho. Apenas insuficiente para os dois maiores rivais – o que é sempre considerado fracasso e motivo para raiva ou depressão nas hostes benfiquistas.
E aqui, regressados ao tempo presente e bem conhecido onde já Nélson Veríssimo tomou de novo conta da equipa, teremos de explicar também que este tipo de expectativa vem acompanhado de um par. Obviamente já ouviram falar da outra face da moeda, e o que acontece agora ao Benfica quando o vemos jogar é que passou de uma equipa que tinha de ganhar por decreto (com Jorge Jesus) para uma equipa que continua a ter que ganhar por decreto mas que sabe que não o consegue fazer. Como se pode explicar de outra forma que o Gil Vicente tenha tido – por largos minutos – um conforto assustador a jogar contra o Benfica no seu próprio estádio. E de facto, uma das consequências de se ter expectativas irrealistas é a falta de respeito pelos adversários. Já aqui o dissemos que quando o Benfica está bem a palavra de ordem é que está muitíssimo acima dos rivais. E que quando não está bem a culpa é do presidente, do director desportivo, do treinador, de alguns jogadores em especial, mas nunca porque os adversário são ou podem ser melhores. E nada o exemplifica melhor do que ver o Benfica a deixar correr o jogo com o Gil Vicente, a cheirar a bola por largos minutos, a sofrer dois golos, quando a melhor forma de respeitar um valoroso e excelente adversário seria não o deixar respirar desde o apito inicial. Mas o Benfica nem para si é bom. E como não dá para estar 10 anos à frente, nem tenta sequer – escolhe a letargia. Façam as contas às vezes que já alguém (seja Rui Costa, seja Luisão) deu duras ao plantel por falta de atitude desde que o período imaculado de Lage acabou. Talvez seja melhor alguém explicar que o Benfica não tem de jogar para ser melhor que ninguém, ou para esmagar alguém, ou para ver validada a ideia de que é o maior de Portugal. Porque quando essa ideia é posta em causa pela realidade (a simples realidade de que ninguém ganha sempre) a outra face da moeda paralisa o Benfica. Talvez refazer essa ideia, essa expectativa, esse desejo, ajudasse. Talvez ajudasse também ir-se à essência do desporto e do futebol para se relembrar porque esta ideia benfiquista tem falhado há já largos anos. Talvez ajude. Especialmente quando quem se oferece ao Benfica continua a vender a ideia que causa o problema maior do Benfica. Talvez a luta para encontrar a melhor versão do Benfica não aceite distrações que não sejam encontrar essa melhor versão. E quando se olha de cima para baixo para os adversários já se está a perder tempo fundamental para se continuar o caminho de encontrar a sua melhor versão.

PS: Bem sei que este é um espaço onde se fala maioritariamente das organizações tácticas das equipas. Mas, sabendo que essas organizações são afetadas por inúmeros factores, sou da opinião que um olhar mais global sobre o que é uma equipa e um clube pode ajudar a que mesmo organizações tácticas funcionem melhor. Afinal de contas para cada organização táctica há um objectivo, e quanto menos esses objectivos mexerem negativamente com a psique dos jogadores, melhor. E o Benfica é um caso paradigmático, especialmente olhando para o primeiro ano de Lage e comparando com o que se tem agora. Porque é que a equipa voava quando quis encontrar a sua melhor versão e porque é que estancou quando se enredou nos objectivos? Não é assim crível para mim que uma organização se torne competente só por aspectos tácticos (os quais valorizo imenso). O rendimento dentro de uma organização, de um modelo, está dependente de inúmeros factores, e o problema que descrevo acima tem sido nuclear ao criar reações adversas nos treinadores e jogadores do Benfica. Facto bem visível na noite passada frente ao Gil Vicente e que parece não atenuar por se mudar entre 442, 433 ou 343. Pelo contrário, quando a saúde mental é forte, pode-se alternar entre vários esquemas sem perder rendimento – já o vimos demasiadas vezes em futebol para o negarmos."

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