"Reformar o Pensamento é o título de um livro de Edgar Morin. Foi editado, em Portugal, pelo Instituto Piaget. Nele recortei o seguinte: “Existe a inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os nossos saberes separados, partidos, compartimentados entre disciplinas e por outro lado as realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, globais, planetários (…). De facto, a hiperespecialização impede ver o global (que fragmenta em parcelas) assim como o essencial (…). Ora, os problemas essenciais nunca são os parcelares e os problemas globais são cada vez mais essenciais”(p. 13).
Por palavras minhas direi que não pode conhecer-se, separando o cognoscente do cognoscível. Por outro lado, ninguém conhece sozinho. Mas, na esfera do conhecimento, há um crime que demasiadas vezes se esconde e, no meu entender, é de todos o primeiro: precisamente a ignorância produzida pelos regimes opressores. No Portugal, sob o domínio de Salazar, Marx não se estudava, nas licenciaturas de Filosofia, “por imposição superior”. O mesmo acontecia, na Europa pró-soviética. Numa universidade polaca, em 1976, perguntei a um professor desta mesma instituição, se conhecia o “Ópio dos Intelectuais” de Raymond Aron (1905-1983). Confidenciou-me, imediatamente: “É um autor marginalizado pelo regime”. Quem promove a ignorância e a cegueira políticas impõe, quase sempre, arrebatamentos populares que manipulam e alienam. Como é possível um corte epistemológico e político, a partir das bases, sem bases conscientemente formadas, para a ciência, para a filosofia, para a política? Sem um escol esclarecido, não há pensamento, no campo teórico, que acompanhe e desenvolva a revolução, no campo político. Um conhecidíssimo revolucionário deixou-nos o aviso; “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionario”. Por isso, no estrito campo universitário, sejamos elitistas, contra uma sociedade elitista. O ser humano não é um ser puramente económico, mas um ser que, pelo movimento intencional e solidário da transcendência, produz e reproduz o caminho do Absoluto. Este movimento da transcendência, portanto, não é como categoria epistemológica que deverá estudar-se tão-só, pois que a transcendência é matéria e vida e espírito, simultaneamente. Para mim, toda a dialética é materialista, quando no seu radical posicionamento não se vislumbra a mediação humana, como espírito.
“O maior contributo do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento” (Reformar o Pensamento, op. cit., p. 61). Portanto, estudar uma área do conhecimento é dialogar com a incerteza. E, diante da incerteza, “todos somos irmãos”. Muitas vezes cito o Hegel da Ciência da Lógica: “A Verdade é o Todo”. E leio agora o José Barata Moura: “A totalidade encontra-se intimamente ligada ao concreto. Enquanto forma categorial subjectiva de reflexo da realidade objectiva, ela visa precisamente, avançar já no sentido de melhor determinar, de um ponto de vista estrutural o concreto de que o saber parte e aonde regressa finalmente, num estádio sintético superior (…). O característico de uma visão imediata do real é precisamente esta permanência do disperso, no separado, no isolamento dos diferentes elementos que a experiência nos fornece ou impõe” (Totalidade e Contradição – acerca da dialéctica, Livros Horizonte, Lisboa, 1976, pp- 120/121). Portanto, há sempre uma visão abstracta da realidade numa hiperespecialização que esquece o todo de um fenómeno, ou seja, que faz do parcelar, do imediato, do unilateral o absoluto. Descambam na absolutização do parcelar aqueles antigos praticantes de uma modalidade desportiva que desconhecem a “plurideterminação do concreto” da prática de um desporto. A verdade do que o desporto é supõe o todo. E, porque “não há jogos, há pessoas que jogam”, a pessoa que o jogador é desempenha o papel nuclear na análise (por exemplo) de um jogo de futebol. Que o mesmo é dizer: sabendo muito do futebol que faz, um ex-jogador profissional de futebol pode saber muito pouco do futebol que faz um seu camarada de profissão. De facto, na análise de um jogo de futebol, no todo que é o futebol, há muito mais do que futebol. Na nossa sociedade do conhecimento, o conhecimento supõe a informação e a informatização, que rivalizam com o próprio capital. Ou seja, na análise de um jogo de futebol, ou de qualquer outra modalidade, deverá apelar-se para todas as estruturas envolvidas, em qualquer instância prática de intervenção da motricidade... humana!
“Se tivéssemos de escolher um qualificativo, para a sociedade ocidental moderna, não hesitaríamos em considerá-la uma sociedade tecnocientífica e tecnocrata. É óbvio que poderíamos enumerar muitas outras características desta nossa sociedade mas, sendo parcelares, não deixariam de ter, porventura de dependência ou de consequência com o complexo científico-tecnológico que nos envolve como o ar que respiramos” (Mário Pissarra, in AA.VV., A Filosofia Face À Cultura Tecnológica, Associação de Professores de Filosofia, Coimbra, 1988, p. 58). No entanto, a tecnociência e a tecnologia não valem por si, são indissociáveis do mundo humano, onde são meios e não fins. Ambas fazem parte do real, mas utilizam-se num fundo de relação e num horizonte de pertença à totalidade humana que as transcende na sua imediatez. Todo o conhecimento científico, técnico e tecnológico é, como sistema, um conhecimento social e humano. Por isso, não me canso de afirmar que é, como ciência humana que o desporto deverá estudar-se. A psicologia, a sociologia, a economia, a antropologia, a história, a linguística, etc., etc., definidas pela especificidade crescente dos seus objetivos e métodos, são, todas elas, ciências autónomas e diferentes mas procuram, afinal, oferecer-nos a complexidade humana como objeto final da investigação. A constituição das ciências humanas consolidou-se a partir de três correntes do pensamento que, entre os anos 20 e 60 do século passado, provocaram um corte epistemológico, uma revolução científica, na esfera das humanidades: a fenomenologia, o estruturalismo e o marxismo – mas todas referentes a um único princípio sistémico ou organizacional, o ser humano! Reformar o pensamento, no desporto, com consequências iniludíveis científicas, filosóficas, culturais, significa fazer da pessoa humana o radical fundante de tudo o que se diz e faz. Em qualquer equipa de futebol, ou de andebol, ou de basquetebol, desportiva em suma, não pode reformar-se a equipa, se antes não se reformaram as mentalidades, nem previamente reformar as mentalidades, se previamente não se reformaram as equipas. Nos sistemas humanos, a tendência habitual é evitar o “caos”. Mas importante se torna também evitar uma ordem inflexível, que se transforme em dogma. O “limiar do caos” encontra-se presente em qualquer sistema. É numa tensão incessante entre a ordem e o caos que se alimenta a dialética.
“Existem resistências formidáveis a esta reforma simultaneamente una e dupla. A enorme máquina da educação é rígida, endurecida, coriácia, burocratizada. Muitos professores estão instalados nos seus hábitos e nas suas soberanias disciplinares (…). A cada tentativa de reforma, mesmo menor, a resistência cresce” (Edgar Morin, op. cit., pp. 105/106). Por tudo isto, que o Edgar Morin sublinha, com vigor, foi com um discurso sucinto e resguardado que tentei um “corte epistemológico” físico-motricidade humana. Tenho a certeza, porém, que a motricidade humana, como paradigma, está a colar-se a tempos novos e… tem futuro! Este paradigma surge como uma escola de humanidade, repleta de referentes históricos e leituras multifacetadas, capazes de transformar o desporto (um exemplo, entre outros) em teoria e prática inovadoras e urgentes. Aprender, através do movimento intencional e solidário da transcendência e aprender para o movimento intencional e solidário da transcendência parecem-me ser os dois movimentos essenciais da motricidade humana. De ambos emerge a máxima: aprender, jogando, pois que toda a transcendência é um jogo onde me realizo como ser em procura incessante do Absoluto. De ambos emerge Natureza e Cultura. Foi Hegel e, depois dele, Marx que enfatizaram a Cultura como História. Em Hegel, o tempo é o modo como a Razão se manifesta (a religião, as artes, as ciências, as instituições políticas, a cultura). Para Marx, descobre-se em Hegel um erro básico, ao desconhecer que o movimento histórico da Razão se realiza na “luta de classes”. Dando um salto apressado sobre a obra monumental de Hegel e Marx, realço agora que o jogo não é fundamental unicamente na didática da chamada “educação física”, mas até na prática desportiva, altamente competitiva. O desporto profissional é jogo e trabalho: o jogo (como atividade festiva e livre) e o trabalho (como atividade imposta e utilitária). Mas na alta competição, há menos jogo do que trabalho, há mais religião do que indiferente agnosticismo. A história do desporto, como a História em geral, depende, sobre o mais, da liberdade. O determinismo histórico é, para mim, uma falácia, pois que, em qualquer situação, podemos ver sempre um “ponto de partida” e não tanto um “ponto de chegada”. Reformar o pensamento, no desporto, significa, acima de tudo, que o futuro está por escrever. No desporto e na vida…"
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