sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Pouco importa, pouco importa


"Embirro há anos com a canção de adeptos celebrada no Euro 2016. E não é pela melodia, simples e orelhuda, antes pelo conjunto de versos aparentemente inofensivos mas que traduzem todo um pensamento que se instalou – era ver como até os jogadores campeões o entoavam com orgulho - e cuja fatura é agora paga em frustração nacional. “Pouco importa, pouco importa se jogamos bem ou mal”, cantava-se e – para mal dos nossos pecados – continuou a cantar-se, e a praticar-se, nos últimos anos. No fundo, assumia-se um caminho sufragado tacitamente: não interessa a qualidade de jogo desde que haja resultados. O problema é que só muito pontualmente se consegue ter resultados sem qualidade de jogo. E Portugal não só pode como deve - e tem mesmo de - jogar muito melhor. E até já jogou, por exemplo na Liga das Nações, que curiosamente também ganhou e frente a adversários de qualidade, como a Suiça e a então Holanda.
“Portugal jogou para empatar”. Para começar são ideias altamente discutíveis, já que ninguém minimamente conhecedor acredita que os jogadores portugueses não queiram estar no Mundial ou que Fernando Santos tenha sugerido empatar, sendo óbvio que nem sequer se abordou este jogo (em termos de sistema ou de opções para o onze) de modo diferente de tantos outros. Mais que discutível este tipo de debate é essencialmente inútil, que não é decerto a efabular sobre a atitude dos jogadores ou a ambição do treinador que se sai deste labirinto em que a seleção tem vivido e que é essencialmente tático. Vamos ao que interessa e que passa por uma relação fundamental, a que se estabelece entre os jogadores e a forma de jogar.
Pergunta mais repetida ontem: como é que uma equipa com tanto talento tem jogado tão pouco? Jornalisticamente a pergunta é inatacável, o problema é que tem um vício de origem. Muito do talento – destaco Bruno Fernandes, João Félix e Ruben Neves – estava no banco, não no campo. De talento criativo, daqueles jogadores que criam mesmo e descontados os laterais (principalmente Cancelo), de início só havia Bernardo Silva no relvado da Luz. Não, nem Renato Sanches nem Diogo Jota são criadores para os outros, nem a Ronaldo se pede hoje que o consiga ser. Fernando Santos admitiu no fim que só Bernardo quis ter a bola. Só está mal o verbo: Bernardo não quis, Bernardo quer sempre dar critério e ligar com os demais. Não pode é ser só ele a querer, tem de haver mais dos que se associam, dos que protegem a posse. Os outros que começaram o jogo ontem têm qualidades fartas e indiscutíveis, mas não para isso.
Se os nossos melhores são craques de facto é com a bola, convém tê-la mais tempo. E a escolha dos jogadores é determinante para isso. A chamada geração de ouro dominava jogos porque tinha Paulo Sousa, Rui Costa, João Pinto ou Figo, muito mais do que por um modelo de jogo prévio e bem definido. Do mesmo modo que houve acrescento de soluções com Deco, Maniche, Simão e Cristiano e isso valeu ainda mais que a capacidade motivacional de Scolari. Mais que uma ideia de jogo construída com tempo, até porque é mesmo pouco o tempo disponível para treinar numa seleção – quantos treinos de verdade há num conjunto nacional ao longo de um ano? Dez? Quinze? – o mais determinante resume-se em dois pontos: colocar os melhores em campo (o que não tem acontecido) e motivá-los rumo a uma ambição (como bem fez Fernando Santos em 2016).
Aliás, ver Fernando Santos transformado na origem de todos os males, agora que a seleção vacila perante um apuramento cantado, parece-me não só injusto como incoerente, sobretudo por parte de quem antes, na hora dos triunfos, não ousava apontar-lhe nada ou até tomava qualquer análise negativa por crime de lesa-pátria. Com a autoridade de quem sempre foi pontualmente crítico, venho lembrar que Portugal foi eliminado do último Europeu com um meio campo composto pelos jogadores que o “povo” queria e maioria dos comentadores reclamava, designadamente Palhinha e Renato Sanches. Nós somos o país que reclama ter jogadores de talento mas depois vibra é com os mais “físicos”. A propósito, tendo visto o que Bernardo Silva produziu ontem durante mais de uma hora, todos (!) os diários desportivos escolheram Renato Sanches como a unidade de melhor rendimento na seleção portuguesa. Ou seja, queremos um jogar diferente mas desvalorizamos jogadores diferenciados. Pedimos futebol de ataque mas passamos meses inteiros a ouvir elogios ao pragmatismo, sugerimos jogo de risco mas insistimos em que as defesas é que ganham campeonatos, pedimos técnica mas exacerbamos a intensidade, preocupámo-nos mais com a perda de bola do que com o que fazer com ela. Por isso, reclamamos Palhinha a titular, fazemos bruáá a cada arrancada de Renato, mas encolhemos os ombros perante a repetida suplência de João Félix. Queixámo-nos hoje da forma de jogar que mais vezes se vê elogiar. No fundo, o que sentimos após este jogo da seleção pode comparar-se ao despertar após uma noite mal dormida. O que verdadeiramente nos desagrada é a nossa própria imagem refletida no espelho."

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