quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A suprema estupidez do ser humano


"Os olhos do dia incendeiam de luz a aurora; uma vida nova e excitante flui de todo o lado; na praia rebentam ondas mansas como beijos; inaudíveis conciliábulos se adivinham nas searas, nos pomares e nos jardins; as mães acariciam os filhos enternecidos e submissos; as crianças jogam e partilham movimento, alegria e confiança; tudo parece um cântico solidário da natureza e da humanidade. Não há desacordo, entre os políticos, acerca dos cuidados muito especiais que merece o nosso planeta Terra. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente aconselha: “construir uma sociedade sustentável; respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos; melhorar a qualidade da vida humana; conservar a vitalidade e a diversidade do planeta Terra; permanecer nos limites da capacidade de suporte do planeta Terra: modificar atitudes e práticas pessoais; permitir que as comunidades cuidem do seu próprio meio-ambiente; gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e conservação; constituir uma aliança global”. A conversão postulada pelo cristianismo, uma das matrizes (podemos acrescentar mesmo: a principal matriz) da nossa civilização ocidental não se reduz a mera mudança de convicção (teoria) mas, sobre o mais, mudança de atitude (prática) não apenas do ser humano considerado como corpo, como “perceção” (Maurice Merleau-Ponty) mas como ser moral, político, religioso. Há uma dialética inapagável, na mensagem cristã, entre o corpo e a alma, a natureza e a cultura, o biológico e o espiritual, o individual e o social, os homens e as coisas e entre os homens e os outros homens. “A praxis de Jesus implica estabelecer um novo tipo de solidariedade, que supera as diferenças de classe e as inerentes à vida. A todos procura defender em seu direito, especialmente os pequenos, os enfermos, os marginalizados e pobres. Tudo o que divide as pessoas, como inveja, cobiça, calúnia, opressão, ódio, é combatido por Jesus” (Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, Editora Vozes, Rio de Janeiro, p. 30). E o sol continua a iluminar-nos majestoso e sereno; e a tecnociência diz-nos que o mundo pode ser mais saudável e belo e justo; e os valores (aqueles valores sem os quais não é possível viver humanamente) dão-nos uma sede do Absoluto, que não se extingue. O que faltará às pessoas, para descobrirem sentido na História?
E, no entanto, embora a beleza natural e o apelo do Absoluto, que nos enche a alma, diariamente a Informação nos borrifa, desatinada, com notícias de crimes de toda a ordem, de guerras, de violência, do desconsolo de se contarem, por milhões e milhões, na sociedade atual, os pobres, os excluídos, os oprimidos. O próprio desporto que eu (e tantos, melhor do que eu) venho apontando, há bem 60 anos, como um novo e promissor paradigma de comunhão com a vida – até no desporto, a “exploração do homem pelo homem” é tristemente visível. A triatleta portuguesa, Vanessa Fernandes, à pergunta “o que é feito da Vanessa Fernandes?”, dado que ela abandonou a prática da modalidade em que foi medalhada olímpica e campeã europeia e fechou-se num silêncio sepulcral, respondeu com afoiteza: “a minha vida está a ser uma ressaca. Ainda estou assim. Até ter uma nova vida, «e preciso andar neste mergulho comigo mesma. Quero viver o mais simples possível. Fui habituada a viver com estímulos: ganhar dinheiro, patrocínios, fama. Tenho de saber estar na simplicidade. É um alívio grande”. E ainda aduziu: “Vemos os treinadores como se fossem deuses, não se pode dizer que não. Quando me estava a custar, devia ter dito basta e ter uma comunicação diferente” (A Bola, de 2021/10/27). Em 1991 (há 30 anos, portanto), no meu livrinho Algumas teses sobre desporto, escrevi eu: “Há verdadeiro e falso desporto, como há verdadeira e falsa notícia, como há verdadeira e falsa moeda. Distinguir um do outro é tarefa imperiosa e urgente. Mas só se suprime o que se substitui. O desporto não está, aqui e agora, em causa. Nem sequer o lucro que ele pode proporcionar. O que se denuncia é a concepção economicista do desporto, tendo até em conta a falência do colectivismo dito marxista e do neoliberalismo selvagem (que é rei e senhor do mundo em que vivemos). Não se é desportista quando se admite, sem um grito de alarme, que um desporto faccioso e doentio, argentário e ao serviço de escondidos interesses, prossiga, com honras oficiais e sem uma percepção pública da lógica de comportamento dos agentes económicos em geral e dos investidores e empresários em particular” (p. 42)…
“Simon Biles tem um apurado sentido de orientação espacial nos movimentos aéreos, a capacidade de deixar a memória muscular guiá-la contra o julgamento lógico do cérebro. Consegue limpar a sua mente e não pensar em mais nada (…). Observá-la é como tentar capturar a luz. Pensamos: aquilo aconteceu mesmo? Ela salta mais alto e com maior flexibilidade do que a concorrência (…). Bateu os recordes dos seus ídolos – Nastia Liukin, Shawn Johnson, Alicia Sacramore – e eles também acham que ela é inegavelmente a maior. Ela é feita daquilo que são feitos os super-heróis, tirando o facto de ser feita de ossos e músculos que sofren tensão e ruturas. Desta vez, porém, a rutura não foi num osso, foi algo no seu espírito, uma lesão que não podia ser explicada num TAC, ou num exame de raio X”. A excecional ginasta norte-americana tinha sido abusada sexualmente pelo ex-médico da “USA Gymnastics”, dr. Larry Nassar, vivia num mundo que tanto a explorava como a mitificava e, em Tóquio, em plenos Jogos Oímpicos, abandonou as provas em que era, sem quaisquer dúvidas, considerada pelos peritos nesta modalidade, a única favorita. O mundo todo estremeceu surpreso de espanto. Seria possível que a deslumbrante Simon Biles ensombrasse o seu currículo desportivo, com uma decisão caprichosa e apressada?... “Hoje a ginasta de 24 anos sente-se radiante e relaxada, no rosto levemente tocado de maquilhagem (…). Biles sabe que é a maior (…). Teve quatro elementos da ginástica, batizados com o seu nome – um na barra, dois na mesa, dois no solo. Com um total de 32 medalhas, entre Jogos Olímpicos e campeonatos mundiais, é a ginasta mais condecorada de todos os tempos” (Camonghne Felix, New York Magazine, in revista do Expresso, 2021/10/30). Repito: “Hoje, a ginasta de 24 anos, sente-se radiante e relaxada”. Quem tente ir até ao fundo dos seus olhos cândidos encontra uma felicidade que perdera na alta competição desportiva. Ela sabe, hoje, de ciência certa, que este desporto ninguém o pratica para ter saúde, pratica-o porque tem saúde. E que… reproduz e multiplica, demasiadas vezes, as taras da sociedade capitalista! Não, não sou contra a alta competição desportiva – sou, sim, contra uma alta competição que parece desconhecer que “não há jogos, há pessoas que jogam” e que as pessoas são mais importantes, muito mais importantes, do que os jogos e as taças e os campeonatos.
Sei que o meu nome (de um idoso de 88 anos de idade) não agrada a alguns dirigentes desportivos e a alguns professores universitários. Cheguei pobre à velhice porque, acolhendo carinhosamente todas as pessoas, não abdico de criticar-me e de criticar – criticar, por exemplo, a alta competição desportiva, enquanto sucedânea do “panem et circenses”, como se sabe o lema-bandeira do Império Romano, para distrair as massas populares e assegurar a permanência do poder despótico do imperador (hoje, para que o povo interiorize e acriticamente não prescinda da alta competição capitalista, inigualitária e excludente). “Em Outubro de 2010, o presidente do Banco Mundial anunciou que, “pela primeira vez na história, mais de mil milhões de pessoas deitam-se todas as noites, com a barriga vazia. Dados da ONU revelam, por outro lado, que os 2% dos mais ricos do mundo possuem mais de metade da riqueza mundial, cabendo à metade mais pobre dos habitantes do nosso planeta (cerca de 3800 milhões de pessoas) apenas 1% da riqueza global. Entre muitos outros autores, Amartya Sem tem sublinhado que a privação de liberdade económica, na forma de pobreza extrema, pode tornar a pessoa pobre presa indefesa, na violação de outros tipos de liberdade” (António Avelãs Nunes, in revista Vértice, Lisboa, Abril-Maio-Junho de 2021, pp. 81/82). Ora, contam-se entre os 2% dos mais ricos do mundo os donos dos clubes de futebol que adulteram e pervertem qualquer valor que signifique desvelo, solicitude, zelo, atenção pelos jogadores de futebol, na nossa “civilização das desigualdades”. Será saudável obrigar os jogadores profissionais de futebol a competirem, três vezes por semana, em campeonatos nacionais e internacionais?... Por isso não calo esta verdade, para mim, insofismável: não basta correr e saltar, para ter saúde. Verdadeiramente, o que dá saúde é uma sociedade diferente! O que dá saúde é procurar a felicidade! Fazer amor é o mais saudável dos exercícios físicos que se conhecem! Suprema estupidez esconder esta problemática aos próprios “agentes do futebol”. E porque a Filosofia parece coisa sobejante a certas pessoas – que proclamam, com o ar mais seráfico do mundo que a Filosofia “tem unicamente por matéria aquela parte da realidade ainda desprovida de disciplina científica apropriada”. E por aqui me fico, hoje."

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