quinta-feira, 10 de junho de 2021

SL Benfica | Há 60 anos, a Europa foi encarnada!


"60 anos, velas sopradas no passado 31 de maio. Nesse dia, em 1961, o SL Benfica resistiu heroicamente a um cerco avassalador: três claríssimas bolas de golo salvas sobre a linha e quatro bolas nos postes – quadrados ainda, à época, redondos a partir daí pelos contornos caricatos da derrota espanhola.
Nada, porém, que desmereça o sentido prático português e a capacidade de sofrimento dos onze mágicos que entraram num Wankdorf à pinha (28 mil espectadores) para lutar contra o favoritismo culé. Com a camisola do FC Barcelona surgia uma das linhas avançadas mais afamadas – Kubala, Evaristo, Suárez, Czibor e Kocsis.
Os dois últimos, participantes no ‘Milagre de Berna’, de 1954 – quando Adi Dassler, fundador da Adidas, garantiu o Mundial para a Alemanha Ocidental com recurso à sua tecnologia pioneira de chuteiras com pitons amovíveis -, ocorrido nesse mesmo recinto, entravam pois já desconfiados, com a superstição à perna: e confirmou-se a maldição daquele estádio para a geração de ouro Magyar, prova irrefutável da Lei de Murphy, gerando-se derrota traumática para o FC Barcelona, que só seria vingada em… 1992, no pontapé de Koeman à UC Sampdoria.
O SL Benfica entrava nessa edição da Taça dos Clubes Campeões Europeus sem grandes perspetivas. Só por uma vez um clube lusitano tinha ultrapassado a primeira eliminatória – em 58-59, quando o Sporting CP caiu na segunda ronda frente ao Standard Liège – e os favoritos estavam no país ao lado.
O Real Madrid CF, vencedor das cinco primeiras edições, e FC Barcelona, campeão espanhol e que tinha acabado de despedir o mago Helenio Herrera, por queixas da afición relativas ao aborrecido cattenaccio que conquistaria a Europa anos depois. Numa fase de domínio latino do futebol continental, a Juventus FC de Sívori era outra das candidatas.
O SL Benfica não era protagonista nas casas de apostas e foi com surpresa que se assistiu à eliminação do Hearts FC, campeão escocês. A 29 de Setembro, o Portugal desportivo surpreendia-se com a vitória benfiquista por 1-2 no Tyne Castle Park. Na Luz, o 3-0 fazia igualar o recorde leonino. Seguia-se o Ujpest, representante húngaro e antigo clube de Béla Guttmann, onde fora campeão em 1946-47. Espaço para sonhar?
Sim, havia, e ficou logo comprovado ao intervalo do primeiro jogo, já com 5-0 no marcador. Naquele princípio de novembro, a pressa na afirmação benfiquista resultou em gloriosa avalanche de bom futebol – Cávem no primeiro minuto, Águas aos 6’, José Augusto aos 12’, Santana aos 16’ e novamente Águas aos 28’.
Aterradora entrada e que deu origem ao adágio de ‘Meia-hora à Benfica’, que resultou no 6-2 final que impôs o nome do clube nas bocas da Europa. Agora sim, os holofotes viravam-se para o conjunto português que, no jogo de volta, permite o 2-1 de consolação para o Ujpest, já em clima de descompressão.
Euforia. O País enchia-se de esperança em algo mais: sobretudo quando se soube do adversário na próxima eliminatória. O Aarhus, campeão dinamarquês, não ostentava grandes pergaminhos e vinha de eliminar Légia de Varsóvia e Fredrikstad, o campeão noruguês, currículo que não atemorizava.
Quando visitou o Estádio da Luz, a 8 de março, cedo se percebeu que seria contenda de sentido único: 3-1, com dois de Águas e um de José Augusto. Augusto prometia assim o que acabou por cumprir na segunda mão, quando dinamitou a defesa dinamarquesa e apontou dois golos, exibição categórica que lhe valeu os louvores dos adeptos presentes no estádio (que o transportaram em ombros para as cabines!) e de Gabriel Hanot, reputado jornalista do L’Equipe e responsável pela ideia de criação de uma Taça dos Clubes Campeões Europeus, que o apelidou de “melhor extremo-direito da Europa”.
Chegava-se às meias-finais. Nunca uma equipa portuguesa chegara tão longe e estivera tão perto de tocar no troféu. O sabor mais aproximado tinha sido a conquista encarnada da Taça Latina, onze anos antes. O adversário, o Rapid de Viena, vinha de eliminar o Besiktas, o Wismut Karl Marx – campeão da República Democrática Alemã – e o Malmö. Se chegados ali por mérito próprio, o confronto com o SL Benfica proporcionou-lhes perspetiva alargada quanto ao seu próprio talento, encontro brusco com a realidade.
A 26 de abril, são presenteados com um 3-0 esclarecedor na visita a Lisboa. Atónitos ficaram, assim pareceu pelas promessas de vingança em sua casa. Estavam convictos de que a vantagem benfiquista seria facilmente anulada no Prater. A imprensa austríaca, louca por explicações lógicas que se conciliassem com o seu próprio narcisismo patriótico, justificava assim a força lusitana: “Não estão habituados a leite, mas ao carrascão e do bom, daquele de passar as costas da mão nas beiças”.
É, portanto, fácil de imaginar o reboliço gerado pelo golo madrugador de José Águas, que sentenciava praticamente a eliminatória. O Rapid precisaria agora de quatro golos, inatingíveis dada a exclusiva preocupação austríaca em basear o seu jogo em atitudes irrefletidas, com os nervos à flor da pele.
Perto do fim, penálti por assinalar a seu favor – o árbitro inglês, Reg Leaf, foi de imediato engolido pela equipa austríaca, situação que viabilizou a fuga portuguesa para o balneário antes da invasão de campo – e foi lá que ficaram fechados horas, até o exército conseguir fazer dispersar a multidão em fúria e levar todos os elementos em segurança para o hotel.
Conta-se que, apesar do tratamento a que foram sujeitos no estádio, os benfiquistas decidiram comparecer ao banquete de confraternização: apercebendo-se, só depois, que nem a esse momento se dignaram os austríacos a comparecer, em clara demonstração de falta de fair-play. Atitudes ficam para quem as toma e não era hora de refletir sobre tamanha enxurrada de ofensas e parco sentido de hospitalidade: o SL Benfica estava na final dos Campeões!
Recebidos em clima de apoteose na Portela, aos benfiquistas cabia preparar da melhor forma o decisivo embate. Já com as contas praticamente feitas no Campeonato Nacional, pediu-se ao FC Belenenses o adiamento do jogo da última jornada. Pedido aceite, o que possibilitou a continuação do estágio diretamente em território suíço, em Spiez, no Hotel Éden, a 30 quilómetros de Berna.
Ao todo, foram onze dias – que, se comparados com as circunstâncias blaugranas, podem ser vistos como preparação de elite: o FC Barcelona chegou a Berna apenas dois dias antes, fruto de compromissos para a Taça do Rei, ou Taça Generalíssimo, denominação à época.
Estima-se que dois mil portugueses tenham acompanhado a equipa até à Suiça. A Federação Portuguesa de Futebol vendeu 236 bilhetes, o clube da Luz 342: a estes valorosos que seguiram diretamente do território português juntaram-se muitos outros, confiantes em assegurarem entrada junto ao recinto, onde os esperavam grande parte da comunidade emigrante, que rodeou Wankdorf e deu ambiência lusitana à festa.
O estágio no meio dos Alpes tranquilizou os imortais benfiquistas. Indiferentes às sensações e impressões do exterior, uniram-se em torno de causa maior e concentraram-se no rigor disciplinar que Béla Guttmann impunha nas concentrações. Uma das suas famosas medidas, a abstinência sexual dos seus pupilos nos dias anteriores às peleias – “putanas não, putanas nunca!” -, cumpriu-se temerariamente.
Quem o assegurou foi José Águas, capitão que pouco depois levantaria a Taça à custa de tantos esforços morais: “Antes da final com o Barcelona, quando ganhámos a primeira Taça dos Campeões, tive um descuido, a sonhar, depois de 11 dias de estágio sem relações sexuais. Desabafei com o médico do Benfica, Sousa Pinho, que me disse que falasse com ele antes do jogo. Assim fiz. Levou-me ao bar e mandou vir um café e um brandy. Foi o meu doping”.
Poderemos interpretar, a esta distância temporal, essas exigências do técnico como manias supersticiosas. Como o foi o episódio de Cávem, já lendário: em sonhos ter-lhe-á aparecido um homem de bigode que o aconselhava não desfazer-se da barba se a sua intenção era ganhar a partida. Domiciano não o contrariou. Deu resultado!
31 de maio. Costa Pereira na baliza, Mário João, que substituía Saraiva, o único suplente no banco depois de uma portentosa exibição em Viena nas meias-finais, Germano e Ângelo; Neto e Cruz; e uma linha de cinco, menos popular do que a adversária, mas tão ou mais valente nos seus méritos: José Augusto, Coluna e Santana como interiores, Cávem à esquerda e Águas como ponta-de-lança.
Eusébio era ainda um menino acabado de chegar a Lisboa e envolto em amplos jogos de detetives entre SL Benfica e Sporting CP. Só participaria na campanha seguinte e por esta altura estava a preparar a meia-final da Taça de Portugal, na qual as reservas enfrentariam o Vitória FC no dia um de junho. Ao contrário da boa vontade belenense, em Setúbal não houve abertura para negociações de calendário.
Primeiro minuto, Mário João salva bola em cima da linha, empurrando-a para canto. Entravam a todos o gás, os espanhóis. Dez minutos: Coluna choca com adversário e cai estatelado no chão. Inconsciente, é retirado de campo para assistência médica – numa altura em que não existiam substituições. Voltou pouco depois, ainda ‘abananado’, a tempo de assistir ao tento inaugural de Kocsis.
Não eram bons os primeiros sinais, mas a alma lusitana sempre se agigantou nos momentos mais decisivos. À passagem da meia hora, dois golos de rajada, um de Águas e o auto-golo de Ramallets. Assim se chegava ao intervalo, com grande diferença nas oportunidades flagrantes, 7-1, que se traduzia inexplicavelmente no 1-2 assinalado pelo placard gigantesco do Wankdorf.
 Na segunda parte, um Mário Coluna já totalmente recuperado demora dez minutos para assinar golo inesquecível, disparando em moinho para o 1-3. Com 55 minutos jogados e vantagem de dois golos, coube ao SL Benfica tentar gerir com bola e manter a frescura física. Bem se tentou, mas a pressão culé foi crescendo, asfixiando cada vez mais os 11 corajosos portugueses contra a baliza muito bem guardada por Costa Pereira.
Em entrevista posterior à RTP, o guarda-redes conta de forma divertida as peripécias daqueles momentos de aflição: “É nessa altura (no momento em que Czibor faz o 2-3) que faltam 18 minutos para acabar. No Estádio de Berna havia um relógio numa torre, eu tenho impressão que os ponteiros nunca andavam. Eu dizia para o Germano, «quanto tempo falta?», o Germano respondia-me, « ó Costa, os ponteiros estão avariados!»”, antes de esclarecer quanto ao destino encarnado, apoiado em largas doses de sofrimento e benevolência divina: “O Benfica, contra tudo e contra todos, foi campeão europeu. É certo que tivemos muita sorte. Eu, nesse aspeto, devo dizer, fui talvez o guarda-redes do mundo que mais sorte teve num desafio de futebol”.
Acontece que é após o golaço de Czibor, à passagem do minuto 75, que se impuseram verdadeiramente os ditames que os apostadores previam. A superioridade blaugrana, assente na capacidade técnica da sua linha mais ofensiva, subjugou os esforçados defensores portugueses.
Inúmeros foram os ataques perigosos esbarrados nos cortes in extremis ou nos famosos postes – a ocasião mais famosa, o lance em que um remate de Kubala embate num dos travessões, vai vagarosamente bater no do lado contrário e, por fim, dirige-se para as luvas do keeper português.
No final, o treinador espanhol, Orizada, queixava-se: “Azar assim, bem distribuído, dava para perder dez jogos seguidos. Se houvesse um penalty para Kubala marcar, mesmo que não estivesse lá Costa Pereira, haveria de aparecer um passarinho que levava a bola no bico.”
Sonho concretizado. Águas levantou a Taça e deixa-se fotografar em imagem para a posteridade. À chegada, Salazar e o almirante Américo Tomás recebem a comitiva num aeroporto cheio como nunca antes havia estado, não só com benfiquistas mas com adeptos de todos os clubes portugueses.
Os dois vultos da política nacional tratam imediatamente de premiar toda a equipa, nomeando cada jogador como Comendador, que dará azo a outra das famosas tiradas de Guttmann, sempre envoltas em aura irónica: “Peço a demissão. Como posso treinar 14 comandattori?”."

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