sábado, 12 de junho de 2021

O nariz que salvou a Itália


"Gino Bartalli, o italiano alegre do nariz triste, ganhou vida e recuperou a coroa do Tour. Em Itália já não havia lugar para a política...

Se havia algo saliente em Gino Bartalli era, sem dúvida, o nariz. Escreveram-se, em Itália, livros e livros sobre Gino: Una Bici Contro il Fascismo; L’Uomo d’Acciaio che Salvó l’Italia; Campione Toscano; Un ‘Santo’ in Bicicleta; Un Naso in Salita. Era mesmo aqui que eu queria chegar: à obra de Massimo Guglielmi. Em português podíamos chamar-lhe: Um Nariz Montanha Acima. Belo título por sinal.
Terceiro dos quatro filhos de um pequeno proprietário de terras de Ponte de Ema, não longe de Florença, Gino era, sem dúvidas, senhor do seu nariz. Embirrou desde miúdo com as enxadas e as ceifeiras. Tratou de avançar com o seu próprio negócio e passou a vender ráfia aos produtores de vinho que a usavam para forrar as garrafas de chianti. Em seguida arranjou um emprego numa fábrica de bicicletas e, a partir daí, nunca mais a vida deixou de correr-lhe sobre rodas. Começou a competir com 13 anos e fez-se profissional aos 21. Pelo meio casou-se com um rapariga chamada Adriana Bani. A boda foi consumada pelo cardeal Della Costa e recebeu bênção papal e tudo. Foi a forma de Pio XII lhe agradecer a bicicleta que Gino lhe enviara de presente.
Há um episódio na vida de Gino Bartali, O Nariz que Salvou a Itália, que todos contam, cada um à sua maneira. Gino estava numa esplanada sobre a praia, em Cannes, tomando notas para a etapa do dia seguinte da Volta à França. Decorria no dia 14 de julho de 1948. Um homem de gabardina esperara pacientemente em frente à praça de Montecitorio. Não era um homem sequer, apenas ainda um fedelho. Viajara entre Génova e Roma para assassinar Togliatti, o chefe do Partido Comunista Italiano. Disparou por quatro vezes. Três balas atingiram Togliatti, uma delas na cabeça. A quarta perdeu-se. Os jornais da tarde berravam em manchete: Togliatti colpito a morte in Piazza Montecitorio.
A Itália entrou em convulsão. Por toda a parte havia movimentos de revolta, cenas de pancadaria, os passeios sujos de sangue. O país precisava de Gino Bartalli, tal como precisara dele durante a II Grande Guerra para formar uma rede clandestina que permitiu a fuga de centenas de perseguidos pelo regime nazi-fascista.
O empregado do hotel surgiu na esplanada e dirigiu-se a Bartalli. Havia um telefonema urgente à sua espera, Gino sobressaltou-se. Pegou no auscultador e ouviu uma voz do outra lado: «Pronto, Gino, ciao, sono Alcide De Gasperi...». Ao sobressalto seguiu-se a incredulidade. O primeiro-ministro de Itália? A que propósito?
De Gasperi traçou o quadro negro dos confrontos que tinham tudo para degenerar numa guerra civil. Precisava de um momento de distração, Ou melhor: de um momento de união. Perguntou: «Gino, puoi vincere il Tour?» Gino tinha 34 anos, gastara muito as pernas em duras compitas nas montanhas de Espanhas, Itália e França. Não era à toa que lhe chamavam l’Intramontabile. Sabia que estava perante a tarefa impossível, a vinte minutos de distância do líder, Louis Bobet. Mas respondeu com o seu sotaque de ferro: «Eccellenza, il Tour non lo so, ma la tappa di domani la vinco».
A etapa do dia seguinte era uma etapa para soldados do pelotão: Cannes-Briançon-Aix-les-bains. O que se segue é uma das lendas da Volta a França: Bartalli voa na frente de todos os seus opositores, pedala furiosamente como se trouxesse toda a Itália nos pés, os franceses estão boquiabertos, já não o imaginavam capaz de algo tão violento. Gino ganha a etapa. E também a do dia seguinte. De repente, o Tour está de olhos postos em Ginettacio.
A Itália está também de olhos postos em Bartalli. A raiva acalma. Discutem-se nos cafés as etapas que aí vêm e esquece-se a política.
Paolo Conte escreve uma música sobre Gino. Toda a gente a aprende de cor:
«Oh, quanta strada nei miei sandali 
quanta ne avrà fatta Bartali 
quel naso triste come una salita
quegli occhi allegri da italiano in gita 
Io sto qui aspetto Bartali
scalpitando sui miei sandali
da quella curva spunterà
quel naso triste da italiano allegro».
O italiano alegre de nariz triste está no coração de todos os compatriotas. Em plena sessão do parlamento, o deputado Tonengo, do Partido Democrata-Cristão, inicia o seu discurso com a notícia de que Gino Bartalli acaba de vencer mais uma etapa da Volta a França, a etapa decisiva. As palmas estralejam. Nas aldeias da sua Toscânia natal, rebentam foguetes e surgem festas espontâneas pela madrugada. No dia 16 de julho, os jornais italianos só têm um assunto com o qual encher as primeiras páginas: Gino Bartali ha vinto al Tour De France. La guerra civile è scongiurata. Gino Bartali ha salvato la patria. Gino do nariz triste. Uma vitória no Tour dez anos após a primeira..."

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