segunda-feira, 3 de maio de 2021

Que jogo mais feio


"Regularmente, a violência verbal que domina o nosso futebol transborda para a agressão física. A idade não tem feito bem ao jogo mais bonito, como o futebol foi um dia caracterizado, que se tem vindo a tornar bastante feio. Foi isso que aconteceu há uma semana, com a agressão a um jornalista por um empresário de futebol e agente de jogadores no final do Moreirense-Porto. Esta violência, muito grave em si mesma, é, no entanto, manifestação de uma doença mais profunda que o ocupa o corpo do futebol há bastante tempo. Tal como a Superliga, e os inúmeros casos de corrupção e criminalidade económica que têm vindo a lume, são sintomas de problemas sistémicos num mundo que suscita tanto interesse público como ausência de escrutínio pelo mesmo. O caso da semana passada deveria, pelo menos, servir para nos alertar para alguns desses problemas.
Comecemos pela incapacidade que continuamos a manifestar em parar a escalada de violência no futebol. Existe hoje uma Autoridade para a Prevenção e Controle da Violência no Desporto com poderes de interditar a ida a recintos desportivos. Fui consultar as suas decisões. Não é possível conhecer o seu conteúdo, mas as sanções aplicadas têm sido bastante leves. Esperemos para ver o que irá fazer neste caso. Mas esta violência física não pode ser desligada da violência verbal tão generalizada no nosso futebol e que começa nos dirigentes, treinadores e atletas. Não quero responsabilizar uma pela outra, mas a verdade é que quem age com violência se sente, frequentemente, legitimado pelo discurso desses responsáveis desportivos. Sente-se a fazer justiça pelas próprias mãos.
E a violência verbal no nosso futebol não é meramente reativa. Ela é parte de uma estratégia que visa influenciar os outros agentes do jogo, se necessário intimidando-os. Os árbitros são o objetivo principal dessa intimidação. É sabido que há inúmeros lances subjetivos em que a pressão emocional pode influenciar, inconscientemente, as decisões arbitrais. Há estudos pós-pandemia que demonstram que, sem público nos estádios, o número de decisões arbitrais favoráveis às equipas da casa diminuiu de forma significativa. Em Portugal, essa pressão, mais do que exercida pelo público, é-o pelos próprios agentes do futebol. A seguir aos árbitros, são os jornalistas os mais sujeitos à intimidação. Isto tem consequências, na falta de escrutínio a que os dirigentes do futebol estão sujeitos.
Mas, em última análise, a responsabilidade principal é nossa, dos adeptos. Somos nós que continuamos a aceitar dar poder absoluto aos presidentes dos nossos clubes (desde que ganhem...). Somos nós que os continuamos a proteger desse escrutínio. Este caso também revelou que este empresário tem, aparentemente, um papel central na gestão e negócios do Porto, sem nunca ter sido eleito ou estar sujeito ao escrutínio dos sócios. Esta opacidade é possível devido a falhas graves nos modelos de governo dos clubes. Poderíamos começar por aqui. Mas também deveríamos começar por sancionar de forma eficaz esta violência verbal. Tal tem de ocorrer, no entanto, ao mesmo tempo que se reforça a credibilidade dos órgãos independentes do sistema: mandatos únicos, não renováveis, proibição de portas giratórias com o mundo do futebol, proibição de contactos, direta ou indiretamente, com qualquer responsável ou representante de um clube etc. 
 A comunicação social também deveria adotar um conjunto de princípios sobre a forma como se relaciona e cobre o futebol. E a política e a justiça deveriam manter fronteiras claras com este mundo que devem regular em vez de explorar. Políticos e juízes são livres de amar o futebol. Mas não podem confundir-se com ele. Isto exige, no mínimo, não estar na política ou magistratura e no futebol ao mesmo tempo."

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