terça-feira, 25 de maio de 2021

A Superliga e implicações no Modelo Europeu do Desporto


"Existe um risco objetivo de só sobreviverem os desportos mais atrativos comercialmente e, dentro de alguns desportos, alargar-se o fosso entre grandes e pequenos clubes europeus.

A recente controvérsia da Superliga sobre a iniciativa de alguns clubes se organizarem ad hoc dos organismos internacionais e nacionais, numa competição paralela, fechada, de elite, não assente no princípio da promoção/despromoção, pressupondo um corte na lógica da solidariedade do profissional e mais rico para o amador e o mais pobre, justifica uma reflexão das repercussões europeias e nacionais do modelo de organização do desporto, do seu financiamento e regulação.
Os organismos legisladores e as entidades produtoras e reguladoras do desporto devem refletir sobre a existência de “estruturas organizadas” que, não obstante os contornos jurídicos, invocam a liberdade associativa ou de iniciativa económica, fundada numa alegada violação das normas da concorrência, imputada aos atuais regulamentos, de alegado abuso de posição dominante.
A questão do monopólio, apesar de discutida mais acerrimamente pelo futebol, já foi espoletada noutras modalidades, com modelos de organização paralela similares, como é o caso, por exemplo, do basquetebol e da natação. Em 2000/2001, os clubes de basquetebol, insatisfeitos com a forma de repartição das receitas, decidiram criar a Euroliga, então organizada pela ULEB (União das Ligas Europeias) e fora do âmbito da FIBA (Federação Internacional de Basquetebol).
Durante mais de uma década, a Euroliga e a FIBA tiveram uma coexistência pacífica, até que a FIBA decidiu criar, em 2015, a Liga dos Campeões de basquetebol para voltar a integrar os grandes clubes. A Euroliga contra-atacou ao assinar um contrato por 10 anos, que previa a distribuição de 36 milhões de dólares anuais entre as equipas com lugar fixo na competição, as 13 equipas permanentes em cada edição da Euroliga, mais outras duas “convidadas” pela organização da Euroliga.
Na natação, para garantir maior visibilidade, foi criada, em 2017, uma nova organização, denominada por ISL (International Swimming League), pelo bilionário ucraniano Konstantin Grigorishin. Nessa sequência, a FINA (Federação Internacional de Natação), comunicou a todas as 209 federações nacionais para não cooperarem com a ISL, sob pena da desqualificação de um a dois anos pela FINA e não homologação de quaisquer recordes mundiais estabelecidos durante os eventos organizados pela ISL.
Se o processo Bosman teve repercussões financeiras determinantes para o desporto na Europa, a Superliga trará consequências igualmente profundas, quer na estrutura de financiamento do desporto, cada vez mais dependente das receitas derivadas dos patrocínios e de outras relações comerciais, quer de organização dos monopólios naturais em que há uma federação por modalidade, não prevendo ligas fechadas.

Modelo Europeu Desporto (MED)
A organização do MED nos Estados-membros está baseada em clubes, associações territoriais, federações nacionais com uma posição monopolista, que regulam, por imposição legal, todas as questões da modalidade, desde a organização de campeonatos, representatividade internacional e funções de regulação. No topo da pirâmide estão as federações europeias, afirmando a sua posição pela imposição de regras que preveem geralmente sanções para os participantes em campeonatos que não foram reconhecidos ou autorizados, implicando a interdependência entre os diferentes níveis, não só do ponto de vista da organização, como também do da competição.
A promoção e a despromoção são uma das principais características do MED. Noutras latitudes, como nos Estados Unidos da América (EUA), vigora um modelo de campeonatos fechados e de federações desportivas múltiplas, com as equipas que participam num campeonato continuarem a jogar sempre na mesma liga, como na NBA (National Basketball League).
Por forma a normalizar o modelo, em setembro de 1998, a Comissão Europeia publicou um documento em que definia a sua política em matéria de desporto, reconhecendo, além da importância económica, a sua relevância como parte integrante da identidade europeia, cuja função social foi ratificada na conferência intergovernamental organizada para rever o Tratado de Maastricht, sendo anexada ao Tratado de Amesterdão uma declaração relativa ao desporto.
Esta relevância foi reforçada no tratado de Lisboa, de 2007, com as novas atribuições e competências no sentido de apoiar, coordenar e completar a ação dos Estados-membros com o objetivo de desenvolver a dimensão europeia do desporto (artigo 165.º do TFUE), assente em três partes temáticas principais: a função social do desporto; a dimensão económica do desporto; e a organização do desporto.
O verdadeiro impacto económico surgiu em meados da década de 1980, quando a televisão estatal perdeu o seu monopólio na maioria dos países da Europa Ocidental, o que motivou uma concorrência feroz pela exploração dos direitos de propriedade intelectual dos eventos desportivos, como as licenças de transmissão ou a venda de artigos promocionais, importantes fontes de rendimento para o desporto profissional, cujos direitos eram e são regulados pelas federações internacionais de modalidade.
Neste particular, a Comissão recomendou que se estabelecessem mecanismos para a venda coletiva destes direitos, com vista a assegurar uma redistribuição adequada das receitas, respeitando plenamente a legislação da UE em matéria de concorrência e mantendo, simultaneamente, o direito do público à informação.
Outra das características do MED foi a contribuição para o financiamento do desporto, em todos os Estados-membros, das atividades ligadas ao jogo (incluindo as apostas desportivas e as lotarias), geridas por operadores privados ou pelo Estado, complementarmente aos fundos da UE para projetos e ações destinados a apoiar estruturas desportivas sustentáveis.
Sobre a dimensão da organização do MED, o tratado refere que a promoção da gestão adequada do desporto é uma condição indispensável para a autonomia e autorregulação das organizações desportivas, considerando a existência de princípios que a sustentam, a nível europeu, como a autonomia (nos limites previstos na lei), a democracia, a transparência e a assunção de responsabilidades no processo de tomada de decisão.
Não obstante o reconhecimento da especificidade do desporto, conceito jurídico estabelecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia assumido pelas instituições da UE em diversas circunstâncias e analisado em pormenor no Livro Branco sobre o Desporto, expresso no artigo 165.º do TFUE, o facto é que há questões que devem ser mais aprofundadas, discutidas e promotoras de alterações que sustentem a base programática do MED em termos futuros.
MED: clarificação concetual. Urge a reflexão sobre o conceito atual de desporto e sua sistematização permitindo, no quadro do MED, o entendimento das múltiplas e variadas atividades, não previstas na distante carta europeia do desporto de 1992, com a revisão de temas controversos como o E-Sports e outras formas de manifestação performativa (breakdance). Urge uma versão atualizada, revista e aumentada do modelo pentadimensional de geografia variável proposto por Gustavo Pires.
MED: papel das Federações. Até à década de 1980, as federações desportivas eram principalmente órgãos reguladores. Quando os direitos de transmissão televisiva adquiriram importância, começaram a negociar esses direitos, agindo como qualquer outra empresa comercial, colocando em causa o seu monopólio. Reconhecendo-se que a sua estrutura é a forma mais eficiente de organizar o desporto, não invalida a necessidade da revisão e aprofundamento da sua missão institucional, especificamente a reflexão:
1. Da separação das funções de regulação e comerciais (venda dos direitos televisivos, celebração de contratos) e as funções de promoção do desporto e de organização das competições, garantindo sempre condições de equidade;
2. Da integração da responsabilidade de organização de manifestações desportivas de grande escala, assumindo o controlo da “marca” em todos os domínios de intervenção, mesmo com a coordenação com empresas comerciais;
3. Do reforço, em sede orgânica federativa, da representatividade e função dos clubes e atletas nos termos destes estatutos, de forma que o ato desportivo possa ser valorizado com repercussão direta para os interessados.
MED: mecanismos de solidariedade. Apesar da importância económica do desporto, a maioria das atividades ocorre em estruturas sem fins lucrativos baseadas no voluntariado, justificando-se o reforço deste estatuto para a correspondente valorização da importante função social que desempenham (dirigentes, árbitros, treinadores). Complementarmente, importa aprofundar os mecanismos de solidariedade que garantam a sustentabilidade financeira de um modelo que se quer reforçar (MED), nomeadamente:
1. A solidariedade entre grandes e pequenas federações desportivas sob a forma de centros de partilhas de competências e recursos;
2. A solidariedade, em cada federação, entre o desporto profissional, ligas e os grandes clubes e as pequenas organizações desportivas de base;
3. A existência de mecanismos de regulação social, com a canalização de fundos públicos eminentemente para as federações sem expressão comercial.
MED: competições. O MED devia reforçar a regulação das condições de licenciamento de competições, garantindo, nas competições abertas, as condições da promoção e despromoção e respetivos mecanismos de redistribuição, acabando com os monopólios e, nas competições fechadas, os riscos associados à(s): probabilidade dos grandes clubes deixarem de participar nas competições nacionais, desvalorizando-as; ameaça da ligação entre o desporto e a identificação de uma nacionalidade; dificuldade de relacionamento entre as ligas e as federações; e, por fim, questões associadas à disponibilidade dos atletas participarem em competições nacionais, pela justaposição no calendário competitivo.
MED e mecanismos de fiscalização. Os governos devem reforçar os mecanismos que permitam uma supervisão eficaz, mediante auditorias de controlo prévio e regulares das organizações passíveis de serem financiadas publicamente, impondo princípios de boa governação, não abdicando da necessária autonomia de regulação, respeitando condições básicas, como: garantias eficazes de que as eleições respeitam princípios de integridade, livres e democráticas, os organismos de controlo são independentes, entre outras.
MED, mecanismos de financiamento e de promoção do desporto. É fundamental assegurar um financiamento sustentável do desporto, fontes privadas e públicas, e a sua sustentabilidade considerando, nesta equação, a prestação de serviços ligados ao jogo no âmbito do mercado interno, dependentes do interesse junto do grande público com níveis diferenciados. Existe um risco objetivo de só sobreviverem os desportos mais atrativos comercialmente e, dentro de alguns desportos (exemplo do futebol), alargar-se o fosso entre grandes e pequenos clubes europeus.
Justificam-se por isso modificações, no pleno respeito pela legislação na UE em matéria de concorrência e mercado interno, que se orientem no sentido de:
1. Proteger, de forma efetiva as fontes de receita, garantindo um financiamento independente da atividade desportiva, com a salvaguarda da existência de um mecanismo de repartição que preserve o equilíbrio desportivo, com uma maior distribuição pelas entidades produtoras do desporto;
2. Regulação da separação entre os fundos públicos, para a promoção do desporto, e as receitas privadas, geradas por atividades comerciais (venda dos direitos de transmissão televisiva; exploração dos jogos online), que provocam uma distorção no modelo de financiamento global, e que prevejam a proteção das organizações com funções públicas delegadas.
Em suma, urge um aprofundamento do MED, com implicações imediatas."

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