terça-feira, 27 de abril de 2021

Superliga: Take One


"Os últimos tempos foram tempos de todos, desde políticos a apresentadores, desde jornalistas a comentadores, desde treinadores a jogadores, aparecerem a construir uma narrativa em torno da Superliga Europeia de Futebol (em desfavor da mesma, entenda-se!). E quase todos – raras foram as excepções – construíram uma narrativa criando um cenário arreigado de verosimilhanças e de lógicas. Inclusivamente assistimos às chamadas manifestações dos adeptos – chamemos-lhes “adeptos” por enquanto…
Identificam-se de imediato duas falácias: a primeira, produto do veiculado pelos ‘media’ e transmitida por pseudo-informados, a segunda pelos que revelam falta de um conhecimento mais profundo do fenómeno desportivo.
O melhor exemplo do funcionamento do capitalismo (liberalismo, neoliberalismo ou coloquem-lhe o rótulo que quiserem) é exactamente o desporto. E é à semelhança do desporto que a sociedade se coloca em marcha. Podemos dizer, na senda de Brohm, Perelman e Redeker, que a sociedade actual é um reflexo do desporto: são os rankings das escolas, são as olimpíadas de toda e qualquer disciplina de ensino, é a quantificação de infectados, de internados e de mortos com os consequentes recordes, é a promoção por meritocracia (com a ausência real de igualdade de oportunidades, um dos mitos do desporto)… e até os juízes (e reparemos que os árbitros de futebol ou de outra qualquer modalidade eram os únicos juízes a ser vaiados, insultados ou mesmo agredidos) e até os juízes, dizíamos, são agora contestados nas suas decisões abertamente nas televisões, nos jornais, nas redes sociais, nas petições. O desporto impõe a nossa ocupação do tempo livre, impõe a nossa maneira de vestir, de calçar, e até somos colonizados pelo vocabulário que, linguisticamente, nos obriga a utilizar – vejamos as novas próximas modalidades no programa dos J. O. em Paris 2024: ‘skateboarding’, ‘sport climbing’, ‘surfing’ e ‘breaking’.
Tudo em prol de uma economia de mercado. E como nos diz Anselm Jaap (1), “a sede de dinheiro nunca pode extinguir-se porque o dinheiro não tem como função satisfazer uma necessidade precisa. A acumulação do valor e, portanto, do dinheiro não se esgota quando a «fome» é saciada, parte de novo e imediatamente para um novo ciclo alargado.”
A formação de uma Superliga Europeia de Futebol não é mais do que o arranque de uma actividade económica formada por operadores societários que cada vez mais apostam neste comércio com base em negócios que nem sempre são os mais transparentes. É fruto de uma ideologia que comanda o mundo, em que aqueles que tudo possuem dominam os muitos que se julgam remediados e os muitíssimos que nada têm. Logo, tudo normal para um grupo bilderberguiano com parceiros como o JP Morgan e a Key Capital Partners.
Vieram a terreiro UEFA e FIFA defender os seus pergaminhos, esquecendo-se que os grandes clubes europeus são controlados por norte-americanos, russos, árabes, chineses, tailandeses e singapurenses, mais interessados no lucro que nos eventuais valores do desporto (Roman Abramovich, Chelsea; Nasser Al-Khelaïfi, Paris Saint-Germain; Sheikh Mansour, Manchester City; Stan Kroenke, Arsenal; Guo Guangchang, Wolverhampton; Vichai Srivaddhanaprabha, Leicester City; Peter Lim, Valência). Mas sobre isto, nada! Sobre os dinheiros associados aos direitos televisivos, nada! Sobre o negócio das apostas desportivas, nada! Sobre os lucros dos intermediários nas transferências dos jogadores, nada! Mas preocupadas com a contrafacção e venda em paralelo de camisolas, cachecóis e bonés dos clubes… Certo é que a Superliga durou apenas dois dias. O caricato, para não dizer a hipocrisia, vem através de Alberto Colombo («O Jogo», 24.04.2021, p.29), secretário-geral adjunto da Associação das Ligas Europeias, ao afirmar que “ao longo dos últimos dias temos assistido à união de toda a comunidade do futebol em torno dos princípios e valores da inclusão, do mérito desportivo e solidariedade.”
O sistema de ligas fechadas proveniente dos Estados Unidos (o arranque deu-se em 1871 com o basebol) – tal como a NFL e a NBA – tem sido apontado como modelo para esta Superliga Europeia. Nada de mais errado! Se nos EUA os campeonatos são disputados sempre pelas mesmas equipas, todos com muito peso económico e grande adesão por parte do público, uma coisa não pode ser descurada: cada uma delas possui pelo menos um patrocinador de traquejo elevado. Se não há promoções ou descidas (ausência do mérito desportivo), também não há critérios desportivos para a entrada de novas equipas mas há critérios económicos e selectivos. Desse modo há a garantia de que estas equipas terão sempre retorno financeiro dadas as autênticas máquinas montadas ao seu redor. Representam grandes cidades e rejeitam outras equipas da mesma cidade para não haver concorrência interna. Por ultimo, estas ligas procuram estender-se para zonas geográficas ainda não abrangidas pelas mesmas de modo a cobrirem o maior número de regiões dos EUA ou até mesmo do Canadá. A Superliga Europeia de Futebol não era compatível com muitos destes requisitos.
E quando Jorge Valdano («A Bola», 25.04.21, p. 32) pergunta se “o povo ainda manda?” surge-nos uma terceira falácia, dado que o mesmo considera que “o povo é o único dono do futebol” e que foi graças a manifestações de rua dos «adeptos» (continuemos a chamá-los assim) que se impediu a continuação deste projecto. Não, o futebol já não é do povo, o futebol é do negócio. O povo vai sendo manipulado, o povo vai-se acomodando…
Quando eram exibidos, nessas manifestações, cartazes com palavras como ‘fans are supporters, not customers’, a perspectiva daqueles que os empunhavam, vítimas já de uma formatação, é exactamente aquela que nos pretendem induzir mas, lamentando desiludi-los, na realidade são consumidores. Consomem ingressos, consomem cachecóis, consomem camisolas, consomem bonés e tarjas, consomem bandeiras, consomem TV, ‘internet’ e electricidade, consomem publicidade que os faz ainda consumir mais e mais e mais... logo, para o grande capital não há interesse em apresentá-los como consumidores mas sim como adeptos. Que ninguém se iluda com o cliché de que foram os «adeptos que salvaram o futebol» porque, na realidade, não foram e são eles que o estão a pagar.
Mesmo quando se aborda a questão da luta «dos pobres contra os ricos», a questão a ser abordada deveria ser precisamente a «dos consumidores enganados contra os ricos» ou a «dos manipulados contra o capital» – o capital precisa deles, o capital forma-os e constrói-os. Logo, a luta «dos pobres contra os ricos» ou os «adeptos, não clientes» não deixa de ser senão uma perpetuação daquilo que nos tem sido inculcado até agora. É a reprodução de que nos falava Bourdieu…
Falácia também quando Daniel Oliveira («Expresso», 23.04.2021, p. 33) afirma que “o clubismo não é alienação, é comunidade. A racionalidade desalmada dos negócios é que aliena as nossas paixões.” A irracionalidade desalmada do lucro é que aliena as nossas paixões e o clubismo não passa de uma outra forma de fundamentalismo.
Independentemente das esferas económicas, políticas e/ou desportivas, assistimos ao nascimento da Euroligue Basketboll (2000) e da International Swimming League (2019)... ligas fechadas… e a Terra continuou a mover-se... e o capital também! Não deixou de haver desportistas explorados, não deixou de haver casos de morte súbita, a violência no desporto não terminou, a morbilidade dos competidores e o fim precoce de carreiras desportivas não desapareceu, alegadamente o doping, a corrupção e as fraudes desportivas continuaram presentes... e continuaram – e continuam – a necessitar do treino intensivo precoce, o tal que motiva a exploração infantil.
Não, não é necessário formar-se uma Superliga Europeia de Futebol até porque já a teremos aí em 2024/25 dado que a UEFA Champions League irá ter um novo formato com 36 clubes participantes. As alterações que se aproximam irão deixar de promover a desigualdade? Deixarão de privilegiar os clubes habituais? Repartirão mais dinheiro pelos mais pequenos? As verbas das transmissões televisivas serão distribuídas equitativamente? Tememos que não. De facto não será uma liga fechada, mas os maiores proventos serão para a UEFA em vez de para os participantes...
Como nos disse Saramago, é preciso sair da ilha para ver a ilha. É um problema de deslocação, é uma questão de nos colocarmos noutro sistema de referência, mas se observarmos o fenómeno a partir de ambos os sistemas compreenderemos melhor o mesmo. Deveria assim o desporto, na esteira de Michel Foucault (2), ser analisado a partir das técnicas e tácticas de dominação e “mostrar como são as relações efectivas de submissão que os sujeitos constroem.”"

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