quarta-feira, 14 de abril de 2021

Justiça microscópica


"Há por aí muita gente a dizê-lo à boca cheia, sobretudo entre os simpatizantes do clube de Alvalade - que, em terra de cónegos, aquilo foi um roubo de igreja. Mas sejamos claros: o que a uns pareceu um escândalo, a outros terá parecido uma decisão sensata e justa - invalidar o golo do Pote por um fora-de-jogo de dois centímetros.
Proponho-me sugerir uma terceira via para apreciar o caso: aquilo foi um excesso de zelo e foi, sobretudo, um equívoco. Por quê? Simples:
Não há condições tecnológicas suficientemente fiáveis que permitam determinar, com rigor e acima de qualquer dúvida, a objectividade da infração. Desde logo, porque o instrumento tecnológico é sempre manipulado por seres humanos cuja percepção do real é inelutavelmente condicionada: o objecto observado é sempre afectado e contaminado pela situação do observador - conforme proclamou Heisenberg (1901-1976), ao estabelecer o princípio da contingência observacional, da “indeterminação objectiva” e a que prefiro designar como a indeterminabilidade do objecto, porque este é sempre esquivo por via do condicionamento gerado pela carga situacional do sujeito que observa. Sim, os pensamentos, as emoções e o sistema de crenças constituem aquilo que o grande filósofo espanhol, Julian Marias (1914-2005), consagrou como “a estrutura empírica” da existência individual.
Além do mais, nós, os humanos, não somos particularmente dotados para captar o movimento. Exemplo?
O nosso planeta, que é, digamo-lo assim, a nave na qual viajamos na imensidão do espaço, no seu movimento de translação à volta do sol, viaja a uma velocidade na ordem dos 107000 km/hora e roda sobre o seu próprio eixo a uma velocidade aproximada de 1700km/hora e, não fora a irrevogável declaração científica do contrário, e juraríamos, a pés juntos, estarmos parados no mesmo lugar, ou, para sermos mais rigorosos, só aceitaríamos os movimentos lentos, precisamente aqueles que se coadunam com o ângulo da nossa limitada percepção.
Eis, pois, uma razão mais que ajuda a explicar o facto de raramente haver consenso entre especialistas na análise e avaliação dos lances duvidosos nos jogos do fim-de-semana. E, sintomaticamente, tal divergência é particularmente flagrante sobretudo nos jogos em que intervêm os ditos clubes grandes, precisamente os que mais avassaladora torrente passional alimentam: um benfiquista e um sportinguista raramente estarão de acordo sobre o penálti assinalado ou por assinalar - cada um observa o facto a partir do seu próprio condicionamento.
Está bem de ver, pois, que o actual protocolo do VAR enferma de uma fragilidade congénita e insuperável: consagra e impõe o primado do critério do rigor, quando a prioridade deveria ser atribuída à ludicidade, elemento constitutivo deste desporto, para além de que é, como vimos, inviável uma observação totalmente exacta e rigorosa: o VAR não vê o que é realmente visível, mas aquilo que quer ver, uma vez que o seu olhar está inelutavelmente condicionado pela sua concreta situação, como sugestivamente e de forma lapidar, escreveu o poeta espanhol Ramón de Campoamor (1817-1901):
“En este mundo traidor
Nada es verdad ni mentira
Todo es del color
Del cristal con que se mira”.
E Vergílio Ferreira (1916-1996) afirmava frequentemente: “vê mal quem só vê o que se vê bem”. 
 Estamos, em suma, perante o mito da tão reclamada objectividade, além de ser essa pretensão de total rigor claramente dissonante com o carácter lúdico da actividade em análise. Bem vistas as coisas, estamos no domínio da fruição, não tanto da lei - esta desempenha, neste caso, um papel subsidiário em relação àquela. A hierarquia é clara: à cabeça, o jogo (que, para sê-lo verdadeiramente, deve nortear-se mais pelos impulsos do coração que pelos ditames da cabeça) e só depois vem a lei (a normatividade) e com a exclusiva missão de garantir a genuinidade ludico-agonística deste desporto.
Qualquer jogo, independentemente da sua gestualidade específica, deve, por força de sua própria natureza, privilegiar uma certa poeticidade a que deve submeter-se o rigor da própria matemática. Como proclamou Gaston Bachelard (1884-1962), a ciência constrói-se também com a políssémica ingerência da poesia, descartando, com isso, a vã pretensão de um rigor objectivista.
Que fazer então? Convocar o bom senso (Popper) e negociar um novo protocolo que, no que ao capítulo do fora-de-jogo diz respeito, acolha e acautele um espaço razoavelmente seguro de tolerância a prever justamente a falibilidade do juiz. Sugiro um valor a rondar os 10/15 centímetros - e, deste modo, fica consagrado o desígnio de resgatar o jogo das amarras do formalismo e de favorecer a criatividade atacante. E eis como em coisa de uns escassos centímetros se pode jogar o futuro do futebol!"

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