"A demarcação da fronteira entre o que é desportivamente (e humanamente) aceitável e inadmissível é, muitas vezes, difícil de estabelecer, o que constitui um terreno fértil para a proliferação de uma cultura de normalização e silenciamento sobre comportamentos de risco associados à violência não acidental, quer seja social, física, psicológica ou sexual.
Estes, que constituem violações generalizadas dos direitos humanos, são fenómenos complexos que ocorrem nas várias latitudes do globo, nas diversas modalidades desportivas e níveis de competição, com um forte e negativo impacto, muitas vezes irremediável, na saúde física e mental de crianças e jovens.
Entre 2016 e 2018, foram registados pelas autoridades em Portugal 2752 crimes de abuso sexual de menores (média de 2,5 por dia), mas esta é só a ponta do icebergue, uma vez que no espectro daquela que porventura tenha vindo a ser a intervenção das entidades desportivas, não são conhecidas evidências sólidas sobre 1) o diferencial entre o número de casos denunciados e aqueles que permanecem encobertos pelo silencio, e 2) a extensão do fenómeno na esfera da organização e regulação da prática desportiva.
Não obstante a diversidade de condicionalismos para um conhecimento deste problema, a ausência de capacidade instalada e sensibilização por quem tem responsabilidades de prevenir e regular uma ameaça crescente à credibilidade das organizações desportivas poderá trazer elevadas repercussões ao sistema desportivo nacional, colocando em causa os mais elementares princípios da integridade do desporto, com danos morais, psicológicos e reputacionais dificilmente recuperáveis, como se tem constatado nos casos trazidos à opinião pública.
Neste propósito, espera-se das organizações desportivas, em cumprimento das suas obrigações enquanto entidades com poderes públicos delegados pelo Estado, uma resposta adequada por via da implementação de políticas que garantam a salvaguarda da atividade desportiva e, por inerência, a proteção dos direitos dos seus atletas.
Contudo, a responsabilidade não traduz a realidade que se impõe. Por um lado, as obrigações legais não estão claramente definidas, trazendo à tona as mais profundas vulnerabilidades de um sistema que cruza a generalidade das federações desportivas, entidades governamentais e demais intervenientes e, por outro lado, os agentes desportivos permanecem reféns de numa rede precária, onde predomina a clara falta de autoridade para executar o poder para identificar, investigar e sancionar o abuso de crianças e jovens, do qual resultam dramáticas consequências face à negação de uma realidade que insiste em omitir o dever de agir.
Na ausência de ações robustas e concertadas, o problema vai ganhando contornos de grandeza silenciosa e, por isso, urge adotar uma abordagem transversal e orientada para a ação nas suas várias dimensões, em linha com as principais recomendações emanadas das organizações desportivas internacionais, desde o quadro legislativo e regulador ao desenvolvimento de programas de prevenção e capacitação técnica, passando pelo (real) controlo no registo criminal de agentes desportivos, a partilha de informação e cooperação com autoridades públicas e agências de proteção de crianças e jovens, até à implementação de canais dedicados à recolha e ao acompanhamento da denúncia.
A cada dia que não se atua, o abuso continua…"
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