terça-feira, 28 de abril de 2020
Decidir ou não decidir: eis a questão
"Há uma Secretaria de Estado do Desporto, que, infelizmente, é uma Secretaria de Estado do Futebol, Similares e Afins
1. O presidente da UEFA varia de opinião mais vezes de que o meu papagaio diz «Benfica!», ao longo do dia, independentemente de se jogar ou não, e do resultado. Já ouvi milhentas versões de como podem vir a decorrer a presente época, as competições europeias, as semanas para as selecções nacionais e, claro está, a próxima temporada. Não é que seja fácil tentar encaixar tudo no calendário anual, que indiferente ao coronavírus, se mantém igual, ainda que bissexto em 2020. Bem pelo contrário, tentar conciliar tudo, mesmo o inconciliável, é uma tormenta. Acontece que, salvo melhor opinião, a UEFA não existe para dar palpites, divulgar opiniões de momento, divagar em forma volitiva de simples desejos. Afinal, esta organização, tão poderosa, inclusiva e fulminante em sancionar clubes e em encaixar fartos fundos, agora está a ser posta à prova num assunto em que, apesar de todas as dificuldades e imprevisibilidade, se exige uma rota menos ziguezagueante para orientação geral.
Já ouvimos n datas para se poder finalizar a Champions e a Liga Europa (taças que, infelizmente, só indirectamente nos interessam), bem como para o reinício e fecho da temporada. Já lemos a recusa de aceitação de cancelamento de campeonatos (por exemplo, o belga) num dia e, em outro a seguir, a possibilidade de considerar essa situação, desde que tudo seja transparente(?). Já se falou tanto de não haver férias de Verão, como o seu contrário, ou até a sua passagem para um mês mais frio. Quanto ao defeso, também há x cenários, que é como chamam à confusão de não decisão. Também já ouvimos, a nível da FIFA, promessa de montantes de apoio aos clubes de um modo tão genérico, que se resumem a um denso nevoeiro.
2. E nada ou muito pouco se tem reflectido sobre o necessariamente diferente paradigma, que vai ser o do futebol de alta competição no futuro. Tal como nas diferentes federações que, umas mais, outras menos, andam longe destas preocupações, apenas assestando baterias para a resolução desta época. Este tempo é um teste fundamental para das duas, uma: ou se mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, numa lógica falsamente reformadora; ou se enfrenta radicalmente o futuro que jamais coincidirá com o quadro até agora vivido e se começam a reformar as instituições, as leis, as regras, as sociedades desportivas, as competições, o papel da intermediação, os direitos televisivos e de imagem, a fundamentação e sustentação dos níveis salariais.
Sejamos claros: talvez em 2022, possamos ir todos encher estádios sem a angústia de contágios. E até lá como vai ser? Transformar o futebol numa coisa distante visionada sem ser vivida? Manter as cosias como se a normalidade estivesse assegurada? Considerar os jogadores uma espécie de artistas de circo, que se exibem através de uma tela, onde a emoção será quando muito liofilizada? Considerar os atletas cobaias de retoma, indiferentes a segundas vagas pandémicas (o caso da Alemanha, por exemplo)?
3. É ridículo o modo como algumas equipas voltaram aos treinos. Ridículo e legalmente discutível se considerarmos que ainda estamos na vigência do estado de emergência. Um desporto associativo treinado em regime de separação total dos plantéis, cada qual nos seus privativos metros quadrados (e, neste pormenor, aprofundando a diferenciação entre os clubes que têm campos e instalações que o permitam, aspecto que não se verifica da maioria dos clubes), tomar o duche em casa, etc. Enfim, um simulacro que pode até parecer bem no marketing mediático, mas que é de todo inconsequente. É que, certamente por um qualquer milagre operado, umas semaninhas depois já podem andar todos ao molho e, outras poucas semanas após, jogarem para as competições, não sei se com máscara (como está ser falado na Alemanha em cada 15 minutos de jogo!). Aí, os veremos correndo, chocando, saltando, caindo sozinhos ou em grupo, ainda que, hilariantemente, talvez não possam festejar os golos e, nalguns casos, fazer as rodinhas do antes e do depois.
Sinceramente, acho que, na maioria dos países, se está a forçar uma situação para reatar tão breve quanto possível os jogos por disputar. Percebo a pressa, mas não compreendo a precipitação. Os clubes precisam, naturalmente, de voltar a produzir o serviço que prestam à sociedade. Até aqui nada de diferente de outra qualquer actividade económica de produção de bens ou serviços. Claro que a primeira tendência dos poderes políticos, mais do que das autoridades sanitárias, é de acelerar tanto quanto seja possível a autorização e disponibilização deste bem desportivo e lúcido e com reflexos em muitas outras actividades que vão dos operadores de telecomunicações, a estações de televisão e radio, a publicidade, apostas desportivas e online, etc. Assim o poder reforça a sua perspectiva popular e é aplaudido pela população desejosa de voltar a ter na tela uma catrefada de jogos em modo de salsicharia. No fundo, trata-se de fingir um rápido regresso à normalidade. Acontece que a normalidade já não vai ser o que era, ainda que todos finjam, por agora, que vai. Repisando pontos que já tratei nesta coluna, este frenesim quase planetário leva a um conflito de interesses entre o como acabar a presente época e como deve ser a próxima temporada. Tudo empilhado e encavalitado, onde até agora só tenho visto palpites e suposições. Acresce que, na minha opinião, se está a considerar a eventual pré-época para concluir as competições, como se tratasse de uma pré-época típica do Verão. Creio que as condições de partida para os atletas serão bastante diferentes. Mais tempo de paragem (não menos de 2 meses), uma situação clínica e desportivamente inédita, não existência de um planeamento com conta, peso e medida, como é compreensível, sem jogos amigáveis de preparação e de exigência desportiva, maior dificuldade em percepcionar ou prevenir lesões e consequências para a época seguinte. Depois, imaginemos dois jogos por semana no mês tradicionalmente mais quente e sufocante, como é o de Julho, em que para garantir as transmissões televisivas haverá jogos a horas absolutamente nada recomendáveis. A isto se somam as competições internacionais de selecções e de clubes, o Europeu 2021 (perdão, 2020, depois da corajosa decisão da UEFA) e os Jogos Olímpicos do mesmo ano, a definição dos tempos de defeso e de contratações que corre o perigo de se transformar, ainda mais, numa espécie de amiba transaccional, na qual os mais fortes são sempre beneficiados.
4. Por fim, o absoluto domínio do futebol sobre todos os outros desportos colectivos. Verdadeiramente só se fala do futebol nesta contingência. Parece que o resto não existe ou é desprezível. Basquetebol, hóquei em patins, voleibol, râguebi, andebol, futsal despertam, quanto muito, umas breves notas de rodapé sobre o que lhe está ou pode acontecer. Os atletas estão mais desprotegidos, um qualquer lay-off não suscita interrogações de maior, tudo numa boa visto de fora. E, no entanto, imagino as brutais dificuldades de clubes, não só dos eclécticos e grandes, mas sobretudo dos mais pequenos sem que o seu grito se ouça mediaticamente. Até por uma questão de gratidão, importa considerá-los, pelo muito que, tão abnegadamente, são à modalidade em que competem e à terra que deles se orgulha. Eu, que gosto de futebol, sinto a falta dele, como do hóquei, do basquetebol, de voleibol. Não tenho uma visão totalitária do futebol e recuso olhar para a actividade desportiva centrado apenas neste desporto. As modalidades bem precisariam de um verdadeiro provedor que defendesse os seus valores e interesses. Há uma Secretaria de Estado do Desporto, que, infelizmente, é uma Secretaria de Estado do Futebol, Similares e Afins. Mais uma vez, tudo reflexo dos interesses económicos que o futebol possibilita e as modalidades não envolvem, tudo medido em tácticas posições de retorno político que aquele garante e estas não permitem. Numa imagem caricatural, as modalidades neste tempo de pandemia estão para o desporto global, como as pessoas velhas estão para o resto da população. Descartadas, descentradas, esquecidas.
P.S. - Mesmo neste tempo de insondáveis desafios, há comentadores e jornais da tribo que continuam obcecados, no compulsivo registo habitual,como o inimigo SLB. Façam o favor de olhar para dentro, se querem ter motivos bastantes para se preocuparem ou dar fartas notícias."
Bagão Félix, in A Bola
Só o Benfica resiste
"Fez três anos que Luís Filipe Vieira teve uma afirmação muito polémica e que foi manchete em A Bola. Afirmou ele: «Estamos dez anos à frente da concorrência»
O comité executivo da UEFA, na reunião da última quinta-feira, anunciou uma mão cheia de nada em termos de medidas concretas para combater a influência da pandemia no negócio do futebol. Pelo contrário, assumiu a derrota e, no limite, reconheceu às federações liberdade para decidirem em função das orientações recebidas das autoridades de saúde dos respectivos países.
Por cá, o Sporting chegou a um entendimento com o plantel para a redução dos vencimentos em 40 por cento nos meses de Abril, Maio e Junho, no caso de não haver mais competição esta época, com promessa de devolução de 20 por entro se o campeonato recomeçar, paga em duas prestações de dez por cento, a primeira em Dezembro deste ano e a segunda em 2021. Entretanto, ficou a saber-se ainda que, por causa do coronavírus, a administração leonina está a trabalhar na revisão do orçamento 2020/2021, que deverá baixar dos 70 milhões inicialmente previstos devido à contratação do Ruben Amorim. Em concreto, haverá menos dinheiro para «aplicar noutras aquisições ou noutro investimento», conforme esclareceu o administrador Salgado Zenha (A Bola de 22 de Abril).
Nesse mesmo dia soube-se que a equipa técnica do FC Porto aceitara o corte nas remunerações, já partir deste mês, em 40 por cento, enquanto as competições não forem retomadas. No sábado, A Bola noticiou que idêntico acordo fora alcançado com o plantel e que o atraso no entendimento com os jogadores ficara a dever-se a divergências sobre o recebimento da diferença, que deverá ser feito assim que for garantida a entrada na Liga dos Campeões.
Nesta última semana, de terça a terça, o Benfica também foi notícia, mas em contramão ao sentido de leões e dragões. Na quarta-feira (dia 22), foi divulgada o teor de uma carta de Luís Filipe Vieira às casas e associados do clube. No essencial, o presidente encarnado quis dirigir uma palavra de conforto aos sócios («a alma deste clube») e expressar o reconhecimento pela acção das Casas do Benfica («exemplo de solidariedade com as suas comunidades locais»).
Vieira apelou à união do universo benfiquista em momento particularmente severo através de uma mensagem de confiança e de esperança, mensagem confirmada no dia seguinte com a notícia do pagamento na totalidade à estrutura profissional do futebol e com a informação de que eventual revisão salarial apenas será colocada em cima da mesa a partir de altura em que não se vislumbrar outra solução, o que, por ora, não é o caso. E não é porque, como explicou Domingos Soares Oliveira, o administrador executivo da SAD e CEO do grupo Benfica, mesmo em tempo de muitas sombras, a marca está bem preparada e só por isso lhe foi possível reembolsar os investidores do empréstimo obrigacionista 2017-2020, no valor de cerca de 50 milhões de euros, «no meio da maior crise que cada um de nós já viveu».
Domingos Soares Oliveira comunicou ainda que o Benfica reduziu a dívida bancária para «valores quase históricos» e tem em caixa 50 milhões de euros, o que lhe permite olhar em frente com «uma confiança moderada», confiança essa que é sustentada pela condição económico-financeira de águia, com suas disponibilidades de tesouraria, mas, paralelamente, com as reservas que se impõem na medida em que ninguém sabe o que «o futuro nos reserva».
O Benfica é o único que mostra capacidade para resistir aos efeitos da pandemia e é essa estabilidade que irrita, os seus adversários por verem nele, mesmo não o querendo admitir em voz alta, o mais forte de todos. É o maior dos grandes e, devido a essa evidência, a figura de Luís Filipe Vieira é tão massacrada: pelos rivais externos, por terem percebido há muito que enquanto ele tiver saúde e vontade será muito difícil travar a ascensão da águia, e também pelos internos, os quais, sentindo uma irreprimível atracção pelo seu lugar, mas não podendo ignorar a magnífica obra edificada, se agarram à demora do futebol profissional em recuperar a hegemonia que o FC Porto lhe roubou.
É o único argumento, embora falacioso, que poderá gerar incómodo entre família encarnada, apesar de na última década se ter vindo a consolidar essa recuperação: Benfica, seis campeonatos e FC Porto, quatro, nos últimos dez anos, e Benfica cinco e FC porto um nos últimos seis.
Pode parecer pouco aos mais agitados, mas é um inequívoco sinal de mudança, além de não ter sido por falta de condições de trabalho ou de défice de qualidade dos plantéis que o Benfica falhou os títulos de 2012 e 2013, no tempo de Jorge Jesus (excesso de vaidade), de 2018, com Rui Vitória (fraca ambição), e, muito provavelmente, o de 2020, com Bruno Lage (fala de tarimba). No total foram três campeonatos deitados à rua e um quarto em vias disso. Dizia o professor Medeiros Ferreira que todos os treinadores são carprichosos, o problema é que esses caprichos, geralmente, saem caro aos clubes.
Fez agora três anos que Luís Filipe Vieira teve uma afirmação muita polémica e que foi manchete na edição de A Bola de dois de Março de 2017. Afirmou ele: «Estamos dez anos à frente da concorrência».
Não sei se os anos serão tantos, mas o Benfica está muito à frente. Sobre isso não tenho dúvidas."
Fernando Guerra, in A Bola
Treinador decisivo nesta miniépoca
"Se o campeonato recomeçar - e esperamos, evidentemente, que sim - não recomeçará do ponto em que ficou. Aliás, para dizer a verdade, o campeonato da época da 2020 finou-se de forma tão imprevista abrupta. O que se promete começar é um pequeno campeonato, aliás, decisivo e que terá, do primeiro, a herança dos pontos. Nada mais do que isso.
O que pode ser importante e desportivamente justo, mas qualquer recém chegado ao mundo da competição entenderá que fundamental é a qualidade da pré-época que, agora, começa. O que coloca a decisão do título, e de outros lugares de qualificação, mais nas mãos dos treinadores do que nos pés dos jogadores. A questão que se coloca é nova. O período de paragem foi demasiado para haver uma continuidade e, assim, há que preparar uma miniépoca, de mês e meio, com jogos duas vezes por semana, por isso curta e muito intensa.
Nenhum treinador estava preparado para tal e nenhuma equipa, alguma vez, teve esta experiência. Daí que, mais do que qualquer outro, seja um campeonato de um só homem. O vencedor terá, pois, um misto de mérito de competência, por ter pensado e planeado com rigor técnico esta novidade competitiva, e, também, de sorte, porque ninguém poderá jurar o sucesso de uma ciência por experimentar.
Temos, pois, de aceitar que, este, seja um campeonato único, entre todos aqueles que se disputaram em Portugal. Mais tarde, mesmo depois de muitos anos passados, poucos se lembrarão de dizer que o clube P, ou o clube B, soma X títulos... mais um, que foi aquele muito especial na época de 2019/2020. Nem tudo a História recorda."
Vítor Serpa, in A Bola
Aquele homem que vinha do ano 2000
"Em Barcelona, no Camp Nou, num amigável disputado em Outubro de 1966, Eusébio teve momentos fascinantes e marcou um golo que deixou de boca aberta mais de 60 mil espectadores. Enfim, repetia o que havia feito pouco antes, em Inglaterra, no Mundial
Estou preso. Estamos todos? Do alto da varanda vejo o Sado. Saí pela manhã, caminhei pelas ruas estreitas com as portas todas fechadas, dei a volta ao Campo de Touros, caminhei ao longo do rio, de encontro ao sol, semicerrando os olhos, voltei para a varanda onde escrevo, onde escrevo todos os dias, a todas as horas agora sem tempo, qualquer hora serve desde que os textos cheguem com tempo à redacção, é apenas isso que esperam de mim, e não estou habituado a viver sem exigências.
Estou preso no meu sótão, que, como já disse, se debruça sobre o Sado, e escrevo até cansar os dedos no qwert desta nova máquina de escrever que é o computador, e eu tenho saudades da minha antiga Remington, de ferro bruto que herdei do meu avô Joaquim e metralhava ao longo das madrugadas.
Estou preso entre papéis antigos, jornais que perderam as datas. Há um que diz: 'Como vamos viver no ano 2000!'
Tenho vontade de perguntar 'e como vivíamos em 1966?', que é o ano que aparece na capa, por debaixo do título.
Faz tanto sentido uma coisa como a outra, não acham? Não conhecer o futuro é como esquecer o passado. E, porra!, como 2000 já é passado!
Rapaz do futuro!
Uma misturada de coisas, página a página.
O Benfica está em Barcelona, diz uma página.
O professor Joseph Tropes, da Universidade de Washington, avisou que ia provocar os alunos e desatou a tirar a roupa no meio de uma aula até ficar só peúgas.
Um americano reivindicou parte da superfície lunar e avisou que quem lá puser os pés vai ter de pagar uma taxa.
Morreu um cão que gostava de cerveja. A culpa é da cerveja? Não diz. Jornalismo incompleto.
Anuncia-se a construção de um autódromo na estrada Estoril-Sintra. E não é que construíram mesmo?
Foram detidos dois carteiristas na Baixa.
Ainda acham que não há nada para fazer nestas tardes em que nos fecharam em casa? E o mundo todo lá fora? Até este mundo que já foi?
Fernando Riera revelou de véspera a equipa que irá jogar em Camp Nou, contra o Barça, um jogo particular: Costa Pereira; Cavém, Humberto, Jacinto e Cruz; Santana e Coluna; José Augusto, Torres, Eusébio e Iaúca.
Eusébio vai receber um prémio: Troféu Euroevent, troféu para o melhor futebolista do Mundial de Inglaterra, oferecido pelos seus colegas espanhóis, já que a FIFA preferiu Bobby Moore.
Tenho de ir à procura do jornal do dia seguinte para saber resultado: 1-1.
Dia 13 de Outubro de 1966.
60 mil pessoas em Camp Nou: despedida de dois dos favoritos do Barça, Vergés e Gràcia. Ficou desde logo combinado que o Barcelona jogaria na Luz para o jogo de despedida de Ângelo.
Zaballa fez 1-0 no minuto 1.
Os culés levantaram os rabos dos assentos e festejaram felizes, confiantes na vitória gorda.
E os jogadores do Benfica, sobre a relva, como se nada tivesse acontecido, como se continuasse tudo a zeros, trocando a bola, lançando movimentos pelas alas, escutando as ordens de Coluna.
Os catalães ficam confusos. Pareciam senhores dos acontecimentos e, afinal, andavam atrás dos adversários, obedeciam ao seu ritmo, vogavam à bolina da vela que este erguia no meio-campo e no ataque, Pereda, Zaldúa e Zaballa irritavam-se uns com os outros, gesticulavam a torto e a direito, e a bola sempre nos pés dos portugueses, pela direita, pela esquerda, pelo meio, de repente Eusébio, Eusébio o repentista, de fora da área, pontapé fulminante de canhão carregado de pólvora, golo e que golo!, até o guarda-redes Sadurní abriu os braços como se dissesse: 'Que diabo podia eu fazer?' De facto, não podia.
Era amigável. A expressão caiu em desuso, mas era assim que se dizia e escrevia: amigável. Depois de uma hora em que vermelhos e azul-grenás fizeram um esforço real para ganhar, a modorra tomou conta de Camp Nou. O público tivera direito aos seus 60 minutos de espectáculo (e sobretudo àquele remate tonitruante de Eusébio), os jogadores achavam-se agora com direito ao seu descanso ou, melhor, ao seu recreio, iam desenhando movimentos estéticos mas de balizas ao longe, o tempo a passar, substituições atrás de substituições, o contrato estava cumprido, ninguém saía com razão de queixa, vendo bem.
Da minha varanda sobre o Sado sou capaz de imaginar o golo de Eusébio. Vi-lhe tantos e tantos e tantos. 1966: tinha sido, em Inglaterra, um tipo extraterrestre. Alguém vindo do futuro para jogar um futebol que ninguém ainda vira ser jogado. Talvez continuasse no ano 2000. Tão, tão à frente de todos os outros. Sempre tão Eusébio!"
Afonso de Melo, in O Benfica
Águas de ouro
"Com 2 golos, Rui Águas devolveu o Benfica a uma final da Taça dos Clubes Campeões Europeus
'Porquê afinal este continuo e amargurado adiar, ano após ano, do velho sonho de ver o Benfica regressado às suas grandes noites europeias? Porquê, afinal, continua o monstro adormecido?' A cada desaire, os benfiquistas faziam a mesma pergunta.
Na temporada 1987/88, o Benfica, após ter eliminado o Anderlecht nos quartos de final, defrontou o Steaua Bucareste. A 1.ª mão, jogada em casa dos romenos, causava enorme expectativa, pelas dificuldades que as equipas de Leste impõem no seu recinto. Para agravar a situação, Rui Águas tinha 'uma ligeira lesão na tíbia' contraída na partida frente ao Penafiel, da 28.ª jornada do Campeonato Nacional.
Na Roménia, o Benfica lidou com uma equipa extremamente agressiva, com os jogadores e sofrerem entradas excessivas, 'uma carga violenta sobre Rui Águas e logo de seguida uma cotovelada desferida no rosto de Elzo'. Contudo, o Clube apresentou uma estratégia bem delineada e conseguiu um resultado que dava boas perspectivas para o encontro em Lisboa, o empate a zero.
Com o Benfica cada vez mais próximo da final, a expectativa dos adeptos era elevada. Com início às 21h, as bancadas do Estádio da Luz 'estavam completamente repletas desde as 18h45'. Quando o Steaua entrou em campo, ecoou 'limpidez do assobio, enquanto o semblante individual e característico dos romenos se transforma num confuso desenho de contornos e terror, admiração e desconfiança. O «inferno» estava em chamas'. O Benfica entrou determinado na partida, com uma exibição 'à altura dos pergaminhos de um verdadeiro finalista, com períodos fulgurantes, coroados com dois golos e uma autoridade sobre o adversário que não deixou dúvidas'. No segundo tempo, controlaram o encontro e seguraram o resultado.
Os adeptos aguardaram de pé pelo apito final, 'numa contagem decrescente beijada pelas palmas, exultada no cântico rouco'. Quando o árbitro deu o encontro por terminado, 'não há memória de alegria semelhante, tudo chora, muita gente. Ninguém tem vontade de regressar a casa para recuperar para o dia de trabalho seguinte'. Os filhos queriam viver ao máximo um momento que tantas vezes ouviram os pais contar.
A alegria tinha sido proporcionada por Rui Águas, que de forma literal acedeu ao pedido do treinador do Benfica, Toni, que tinha solicitado para 'que não jogassem com o coração, mas sim com a cabeça!'. Desta forma, o avançado imitou o pai, José Águas, que tinha apontado o golo dos 'encarnados' na 2.ª mão das meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus 1961/62, garantindo o acesso à final.
Saiba mais sobre este e outros jogadores do Benfica que inscreveram o seu nome na lista dos goleadores do Clube na área 20 - Águias-Mores do Museu Benfica - Cosme Damião."
António Pinto, in O Benfica
Devolvam-nos o futebol
"Tem sido sugerido que o regresso do futebol é importante para resolver as classificações finais das competições profissionais desta temporada ou, até, pelo contributo económico do sector. Não desvalorizo nenhum destes aspectos.
Sem definição do acesso às competições europeias e sem que se apure quem sobe e quem desce, não será fácil encontrar critérios partilháveis que possibilitem o início da próxima época. Do mesmo modo, o futebol português movimenta centenas de milhões de euros, se considerarmos o seu impacto directo e indirecto na actividade económica. Dos media ligados ao jogo, passando pelas empresas que têm a sua imagem de marca associada à modalidade, até, claro, aos pequenos negócios alavancados pelas competições.
São muitos os que dependem economicamente das competições de futebol mas talvez a questão essencial seja outra: a forma como as nossas sociedades dependem colectivamente do futebol.
Este fim de semana, na sua coluna do 'Financial Times', Simon Kuper recordava que o escritor Hunter S. Thompson, criador do 'gonzo journalism', se suicidou quatro dias depois de deixar uma nota lapidar num bloco: 'A temporada futebolística terminou'. O exemplo é extremo - o suicídio que, sabemos desde pelo menos Durkheim, é, em muitos casos, precipitado por alterações profundas nas circunstâncias sociais - mas a preocupação de Kuper era demonstrar como é mais difícil para todos mantermos a sanidade mental sem desporto. A questão não é nova.
O desporto desempenhou um papel crescentemente importante no processo civilizacional. Para recuperar a reflexão de Norbert Elias, o desporto, quer na sua prática competitiva ou de lazer, quer para aqueles que assistem, é um espaço privilegiado para a racionalização dos impulsos e para controlo da violência física (foi recentemente reeditado entre nós o volume 'A Busca da Excitação - desporto e lazer no processo civilizacional', cuja leitura é ainda mais oportuna). O desporto teve sempre um papel funcional na estabilização das nossas sociedades.
Mas num momento em que muitas outras formas de pertença vão perdendo relevância, é também no desporto que encontramos um último reduto de pertença colectiva (somos cada vez mais adeptos dos nossos clubes, enquanto se vai diluindo a pertença a igrejas, partidos ou sindicatos). Acima de tudo, o futebol em particular traz consigo uma memória de experiências emocionais não contaminadas pela racionalidade. Nas alegrias, vibramos no estádio, abraçados a amigos, familiares ou desconhecidos, mas sofremos as derrotas também em conjunto. Num país sem futebol, perderíamos uma parcela da nossa humanidade que nos parece escapar no resto do quotidiano. Precisamos todos que nos devolvam o futebol."
Mensagem do treinador do basquetebol, Carlos Lisboa
"Estamos em pleno segundo mês da quarentena e o único desafio que temos pela frente é ficar em casa. É altura de imperar a resiliência, de cada um cumprir mais do que nunca com o seu papel em prol de si e dos outros. O nosso bem será consequentemente o bem do próximo e temos de continuar fiéis a essa linha orientadora, não podemos ser egoístas e pensar que só acontece aos outros.
Foi essa linha que nos fez e nos faz superar diariamente as dificuldades, contribuindo para que a situação não seja tão dramática na linha da frente de combate a este vírus, isto comparando com o que aconteceu em países como a Espanha ou a Itália. Mas, tal como acontece na discussão de um título/troféu de basquetebol, a vitória final ainda não foi alcançada, fomos conseguindo alguns triunfos importantes, mas também é verdade que temos vindo a sofrer algumas derrotas – é preciso nunca esquecer que continuam a morrer pessoas por causa da COVID-19. Por isso, nesta caminhada, é importante não menosprezar este adversário extremamente difícil, que ataca de forma invisível, que coloca a nu as nossas fragilidades enquanto seres humanos.
Face a esta nova realidade inesperada, a opinião comum é que nada será como dantes. Pensando no futuro que aí vem, as palavras das pessoas têm mesmo de passar aos actos. Os portugueses têm mostrado, na sua generalidade, uma enorme capacidade de resistência, temos sido já elogiados por outros países pela forma como atacámos esta situação. Sim, a palavra é atacar. É que se as defesas ganham campeonatos, os ataques ganham jogos. E este é o jogo da vida que temos de vencer, para conquistar um título maior, o de uma sociedade mais responsável, onde o respeito e o cuidado pelo mais próximo terá de passar a falar mais alto. Um século depois – a pneumónica de 1918 afectou também o mundo – temos a oportunidade de ser um exemplo para as gerações vindouras, de construir uma base para um futuro ainda melhor, como, por exemplo, em termos climáticos. Tem sido um dos reflexos deste isolamento forçado.
Outro ponto importante nesta altura é a família. Além de ser um antigo atleta e actualmente treinador, como todos sabem, sou pai. Este é o momento também para todos aproveitarem esta oportunidade de estarem juntos. Muitas áreas, entre as quais a nossa do desporto, sofrem com as privações familiares. São muitas horas de ausência de casa, com muitas viagens ao longo de uma época, o que faz com que o tempo com as nossas famílias seja bastante sacrificado. Este período tem o lado positivo de recuperar algum desse tempo perdido.
Aproveito esta mensagem para sublinhar a forma preventiva e rápida como o Sport Lisboa e Benfica reagiu a esta pandemia, ao proteger os seus atletas, treinadores e demais colaboradores. Também aqui o nosso Clube mostrou estar na linha da frente e a sua contribuição para ajudar neste combate é um exemplo reforçado disso mesmo. Um estudo divulgado há umas semanas indicou que somos o único clube entre as marcas que mais ajudam. Não poderia haver sinal mais positivo para o futuro de todos nós.
Carlos Lisboa"
Juízes com clube não são isentos?
"Perante a evidência clubística de um juiz, a quem calhara, em sorteio, o julgamento do processo do já famoso caso Rui Pinto, foi levantada uma dúvida sobre a isenção e o próprio pediu para ser retirado do caso. Decidida a mudança de magistrado, o julgamento passou para as mãos de uma juíza, à qual foi levantada suspeição idêntica, agora, por ser cliente de um advogado que terá sido alvo do acusado.
Atrevo-me a admitir que, na próxima indicação, o sorteio escolha um juiz que seja, reconhecidamente, do FC Porto e, assim, seja levantado novo incidente, na perspectiva de que o amor ao clube possa ser mais forte do que o dever de julgar com isenção.
A verdade é que questão se torna bem mais complexa do que a princípio possa parecer. Porque a dúvida sobre a influência que o clube do juiz possa vir a ter numa decisão que deveria ser técnica, será, certamente, a mesma que se levantará ao conhecerem-se as opções políticas, sociais, religiosas, de um magistrado que tiver de julgar em causas que envolvam casos, ou personalidades, que contrariem algumas das suas convicções, enquanto cidadão.
É evidente que o juiz é, apenas, humano, mas, calculava eu que, dadas as funções que exerce, estivesse suficientemente preparado para julgar sem interferência das suas opções pessoais. Ou que, a provar-se essa interferência, ela deveria ser reconhecida em recurso da sua decisão e o decisor devidamente castigado por um sistema de justiça que tem de zelar pela sua credibilidade e honorabilidade. Se assim não for, temos, todos, o direito de temer pela nossa segurança."
Vítor Serpa, in A Bola
O show da trampa em dias sem bola
"Dias confusos. Dias em que confundo «Trump show» com «show da trampa».
Não confundam medicina séria e competente com a sugestão boçal de um shot de desinfectante.
Não confundam o Brasil com o monumento à ignorância que agora o preside.
Não confundam a sensibilidade democrata de Chico Buarque com a empatia bovina e o preconceito histérico dos bolsominions.
Não confundam o fundamento umbilical da União Europeia com as palavras sujas de um ministro neo-liberal holandês.
Não confundam a Casa da Democracia portuguesa com as palavras asquerosas de um fascista com assento parlamentar.
Não confundam Liberdade com o direito de querer voltar às entranhas nojentas do Estado Novo.
Não confundam o trabalho heróico do nosso SNS com o abuso de pensamento das elites das negociatas PPP.
Não confundam as saudades pelo futebol com a irresponsabilidade de ter futebol antes do tempo certo.
Não confundam confinamento e cautela com passeios de risco num dia quente de sol.
PS: vivemos tempos extraordinários, únicos pela dimensão da calamidade na saúde pública. São tempos tentadores para o assalto ao poder de populistas catavento e ditadorzecos de meia tigela, especializados na produção de fake news e na manipulação de marionetas descerebradas. Aproveitemos a celebração de Abril e da revolução dos cravos para erguer a voz democrata e tirar a máscara aos defensores dos «shows da trampa»."
27 de abril de 1983: URSS ganha 5-0 a um Portugal sem fruta, nem leite, mas com “debilidade, pasmaceira e pés como chumbo”
"Faz 37 anos que a seleção nacional foi a Moscovo ser goleada e sofrer a única derrota na caminhada para o Europeu de 1984, onde só pararia nas meias-finais. O choque, à época, foi pano para crítica, como se recorda no pedaço de jornal que o "Diário de Lisboa" dedicou ao resultado. E foi piorado com as declarações de Manuel Bento, o guarda-redes do Benfica que se queixou de falta de fruta e leite no dia anterior ao jogo
Eram noventa mil almas soviéticas aos berros, toda uma arena a torcer contra, gritos tão imperceptíveis na tradução quanto claros no significado. O contexto contradizia fortemente quem era português e o estado das coisas no Estádio Lenine, em Moscovo, não estava afim de se colocar a jeito para que Portugal dali retirasse uma alegria futebolística da qual ressacava há quase 20 anos.
Além da Finlândia e da Polónia, na fria constelação de equipas que calhou no grupo da selecção nacional havia a União Soviética, a favorita para dali sair e chegar ao Europeu de 1984. A época tinha-a como uma das equipas mais fortes do continente, a reputação justificava-se por o treinador ser o inovador Valeriy Lobanovskyi e o craque Oleh Blokhin, do Dínamo de Kiev.
Lá tiveram os portugueses que visitar os soviéticos, onde acabariam engolidos pela apoteose que se ergueu contra eles. Pietra, Bastos Lopes, João Cardoso, o capitão Humberto Coelho, Fernando Festas, João Alves, Carlos Manuel, Jaime Pacheco, Nené, Fernando Gomes e Costa perderiam por 5-0, humilhação numérica e vistosa na letargia com que Portugal foi atropelado a 27 de Abril de 1983.
No dia seguinte, com a hipótese de um regresso às provas de selecções a escurecer, José Neves de Sousa pintou no "Diário de Lisboa" um negro retrato. “De um lado, viu-se velocidade, acção, entrega, expediente, soberania. Na outra trincheira, apenas debilidade e pasmaceira, sonolência e pés como chumbo. A falta (mais que nítida) de preparação física para ombrear com uma turma que tinha asas nas botas”, foram as taciturnas palavras.
Julgava-se que a barrigada de golos encaixados eram tempos idos. Em 1934 foram 9-0 da Espanha, em 1947 houve os 10-0 da Inglaterra e, em 1953, também a Áustria encheu as duas mãos. Portugal já tinha ido pomposo a um Mundial, a selecção mostrara-se com o poderio de Eusébio, mas, desde então, temia-se uma nova decadência, que o jogo em Moscovo aproximou da realidade.
Pareceu “um jogo altamente sofisticado, como se a nossa moçada funcionasse apenas como leve parceiro de treino e os soviéticos fossem teleguiados para o melhor sentido das jogadas por um invisível transistor dirigido da lateral pelo responsável, assim a modos que Lobanovski de megafone e Otto [Glória, seleccionador nacional da altura] com rolha na boca”.
O relato, assim, até doía mais que o relatado.
E as coisas piorariam em falatório, polémica, crítica e apontamento de dedos quando a Manuel Bento perguntaram as razões para tal derrota. Respondeu o guarda-redes do Benfica e da selecção que “gostava era que a União Soviética passassem em Portugal” aquilo que os jogadores passaram em Moscovo: “Até fome chegámos a passar. Não havia líquidos, não havia leite, não havia fruta e tivemos muitas privações”.
Podia soar a música vinda do argumentário das desculpas, uma tentativa de bigodear vinda do guardião de bigode do Benfica, que teve de aguentar com as consequências das suas palavras.
Os jornais escreveram que, durante vários dias, à porta da loja pronto-a-vestir de Manuel Bento, no Barreiro, onde vivia, tinham sido colocados fardos de palha. O Barreiro era um bastião comunista e suspeitava-se que o que dissera o guarda-redes não fora ali ouvido com gosto.
A galhofa cruzada com a crítica foi engordando como a goleada encaixada em Moscovo, que durou até Novembro, quando, no Estádio da Luz, a selecção nacional logrou uma desforra com maior significado do que os números: só tinha de ganhar por um golo à URSS, ganhou por 1-0 e garantiu o apuramento para o Campeonato da Europa, ficando os soviéticos de fora.
Mais tarde, Bento abordaria o que explicou ser um mito urbano: “Limitei-me a dizer a verdade, aliás não seria preciso esperar muito tempo para se perceber bem que não mentia. Mas essas histórias da loja destruída e dos fardos de palha foi muito mal contada. Um homem como eu continuaria a viver e a amar o Barreiro se isso se tivesse passado? Eu é que, para promoção das calças de ganga, fiz montras com fardos de palha como adereços e alguém confundiu tudo e lançou a boato”.
Em 1983, o guarda-redes não falou de líquidos, leite e fruta como se justificar, disse não querer que tal servisse “de desculpa para o resultado, mas que foi uma ajuda, disso [estava] convencido”. De uma derrota, Manuel Bento ganhou ser personagem de uma estória popular. Desde então que a selecção não mais perdeu por tantos: “O que falhámos não sei, não consigo encontrar uma explicação para isso. A verdade é que a equipa portuguesa parecia que tinha chumbo nos pés”."
O desporto faz parte da cultura
"Um dos traços característicos da nossa sociedade contemporânea tem a ver com o lugar de destaque que é dado ao desporto no nosso quotidiano. Ele faz parte do conjunto das formas de viver, de sentir, de agir e de pensar de um grupo importante de cidadãos. É um compromisso e/ou investimento corporal, fenómeno capaz de entusiasmar as multidões ou de as fazer frustrar, vitrina institucional ou política, lugar de transacções financeiras desmedidas, fonte de conflitos e de derrapagens, etc. Assim sendo, podemos falar de uma cultura desportiva como uma “ferramenta” de afirmação colectiva.
A nível mundial, a difusão do desporto é favorecida pelas diversas redes que participam para a expansão do comércio e da acumulação de capital a partir de 1782. No final do século XIX e no início do século XX, a cultura desportiva, com os seus valores e usos sociais, expande-se em toda a Europa, e para além desta, a partir do berço da Revolução Industrial, a Grã-Bretanha.
O capitalismo acentuou a comercialização do desporto e deu-lhe uma legitimidade social. Num mundo movido a dinheiro, dificilmente se concebe que ele escape a esta tendência geral. O casamento entre o desporto e o dinheiro complexificou-se e transformou a imagem das estruturas económicas e sociais. As grandes competições desportivas são objecto de apostas colossais na Internet. Na obra “Sport: l’imposture absolue” (2014), Michel Caillet refere que “num deserto ideológico que atravessa a sociedade moderna, o frenesim desportivo exerce uma função compensadora evidente” (p. 141). Para o autor, “os defensores de um desporto-progresso, popular e humanista, promovem um combate interessante, corajoso, mas patético, na medida em que não se pode colher as rosas sem os espinhos” (p. 169). Não comungamos de um quadro tão pessimista, na medida em que o desporto é uma visão do Homem, da sua finalidade de acção e de liberdade."
Quarentena V
"Gustave Flaubert, na eclosão da guerra franco-prussiana, confrontado com todos os que se desdobravam na asserção de que nada seria igual no futuro, afirmou, contrariando e expondo a vacuidade dessas palavras, que “seja o que for que aconteça, continuaremos estúpidos”. O futuro encarregou-se de validar o seu cepticismo face à humanidade...
É por isso, talvez, que sinto dificuldade em acolher declarações reveladoras de intenções benévolas emanadas de uma suposta introspecção motivada por circunstâncias extremas, por parte de quem, no passado, pela sua conduta, só demonstrou mover-se por interesses próprios ou, pelo menos, nada fez para alterar o curso dos acontecimentos.
Veja-se o exemplo de Infantino, presidente da FIFA, ao dizer que “este período de pausa é perfeito para reformar o futebol mundial”. O mesmo que, conhecendo-se os escândalos relacionados com a atribuição do mundial ao Qatar, não conseguiu – terá tentado? – que o mundial deixasse de ser organizado por esse país ou que não enjeitou a oportunidade de se manifestar satisfeito com o progresso das obras dos estádios no Qatar, participando na escamoteação das condições sub-humanas a que muitos dos trabalhadores dessas empreitadas foram sujeitos... Deve ser levado a sério?
Razão tem Tiago Pinto ao afirmar que “por mais que o mundo mude, o Benfica vai ter a necessidade de continuar a ganhar”. Desenganem-se aqueles que acham que, no essencial, haverá grandes modificações. Assim como o Benfica terá de continuar a ganhar, a deriva anti-benfiquista, sediada em Contumil com uma sucursal no Lumiar, na qual não interessam os meios para se atingirem os fins, persistirá desesperada e insistentemente. Não duvidemos!"
Esperem para ver
"A semana passada foi de efemérides: os 30 anos da meia-final da Taça dos Campeões com o Marselha e os 32 anos da meia-final da maior competição da Europa com o Steaua de Bucareste. Da noite dos dois golos de Rui Águas aos romenos à noite de Vata frente aos franceses, o Sport Lisboa e Benfica vive momentos históricos, únicos, inesquecíveis. E ambas as campanhas poderiam ter sido ainda mais gloriosas se não nos tivesse faltado aquela pontinha de sorte. Se Veloso não tivesse sido castigado, se Diamantino não se tivesse lesionado, se, se... Hoje vivemos uma realidade muito diferente daquela a que assistimos no fim da década de 1980. E não estou a falar do sonho europeu, os cínicos que se acalmem. O SLB de há 30 anos era uma belíssima equipa de futebol. Hoje, o SLB é um belíssimo clube. Quem não entende isso, é porque ainda não percebeu em que século estamos.
Querem comparar ambas as realidades? Então temos de comparar as conjunturas destes dois momentos históricos. A Liga dos Clubes Campeões Europeus. Na altura só lá estavam os melhores. Agora, a principal competição da Europa aceita até quartos e quintos classificados de ligas nacionais. Tudo pelo negócio, pelos milhões que valem pontos. O Glorioso dos outros tempos tinha a sua realidade estruturada em torno de uma equipa de futebol e de um estádio. Hoje, o Benfica é outra coisa. Continua a ter como combustível a equipa A e a Nova Catedral, claro - nem outra coisa seria de esperar -, mas há muito mais: televisão, museu, centro de estágios, equipas masculinas e femininas nas principais modalidades, marketing, bolsa, departamento internacional, casas espalhadas, pelo mundo ligadas em rede, fundação, comunicação, merchandising. Tudo! E estas são as bases para que se possa pensar no sucesso desportivo que já é uma realidade. A covid-19 pode mudar tudo isto? Pode, mas não para nós. Nenhum clube está em melhores condições para ultrapassar a crise que aí vem. Esperem para ver."
Ricardo Santos, in O Benfica
Obrigado, Humberto Coelho
"Segunda-feira, 20 de Abril, o nosso Humberto Coelho celebrou 70 anos de vida. Nunca o vi jogar, no entanto conheço os números, testemunhos inapagáveis do brilhante percurso no Benfica. A velha glória conquistou 8 campeonatos nacionais e marcou 77 golos de águia ao peito, o que até nem está mal para um avançado, quanto mais para um defesa-central. Aos 33 anos, na temporada 82/83 - a penúltima antes de pendurar as botas - igualou o melhor registo da carreira (11 golos), apesar de não ter conseguido juntar o êxito na Liga e na Taça de Portugal à Taça UEFA, perdendo afinal e duas mãos com o Anderlecht. Não tive o privilégio de conhecer o talento de Humberto Coelho dentro de campo, porém tive a sorte de nascer a tempo de me entusiasmar com a encantadora equipa que levou ao Euro 2000. Rui Costa, Figo, Nuno Gomes, João Pinto. Lembro-me de tudo, até porque o meu pai gravou os jogos em VHS para depois eu vê-los cerca de 500 vezes a cada um. Por dia. A reviravolta frente à Inglaterra (3-2) - três assistências do Maestro -, o golo do Costinha à Roménia (1-0) no último segundo, o hat-trick do Sérgio Conceição à Alemanha (3-0) - quando ele ainda nem sonhava que um dia iria assistir de bem perto à #reconquista. O bis do Nuno Gomes à Turquia (2-0), sem esquecer o penálti defendido pelo Vítor Baía antes do intervalo - quando ele ainda nem sonhava que um dia seria capaz de defender bolas que já tinham ultrapassado a linha de golo. Enfim, um conto de fadas até àquela infeliz meia-final com a França (1-2), entretanto vingada. Estou grato a Humberto Coelho, não só pelo legado no Benfica, mas também por ter sido um dos responsáveis a fazer-me apaixonar pelo futebol."
Pedro Soares, in O Benfica