sábado, 4 de abril de 2020
Neste capítulo não se consentem excepcionalidades
"Será mesmo necessário sacrificar o espírito essencial da prova - ... sem campeonatos não há campeões -, amputá-la da sua componente competitiva, só para salvar as vidas de uma administração? Parece-me uma solução exagerada e pouco democrática
Os ingleses, no intuito de levar a Premier League até ao fim, colocaram a hipótese de disputar na China as jornadas em falta. Os portugueses, não tendo a China à mão, ponderam a hipótese de achinesar o Algarve para que a nossa província mais meridional receba nos meses de Junho e de Julho as 10 jornadas restantes da Liga. Os 90 jogos do campeonato distribuir-se-iam pelos estádios algarvios, do campo do Beira-Mar de Monte Gordo ao campo do Moncarapachense, do campo do Bensafrim ao campo do Silves, passando, naturalmente por Olhão, Portimão e Vila Real de Santo António para tudo terminar, em glória, numa jornada final toda no mesmo dia e, ininterruptamente no Estádio do Algarve, com o primeiro jogo a começar às 8 da manhã, que é muito boa hora para se estar a pé, e com o último jogo a arrancar pelas 9 e meia da noite já depois do sol-posto e com o relvado num estado miserável.
O meu antigo colega e amigo de infância Rui Santos apontou, porém, outra solução 'Se salvar vidas, atribua-se o título ao FC Porto'. Chegou o dia em que nunca estive tão de acordo e, ao mesmo tempo, tão em desacordo com o Rui Santos. Entregar o título de campeão, sem que o campeonato tivesse terminado, ao FC porto salvaria de certeza, as vidas de toda a administração da SAD do FC Porto e da sua cascata de funcionários diligentes em tempo de falência à vista e de eleições com candidatos a sério e tudo. Mas será necessário sacrificar o espírito essencial da prova - é que sem campeonatos não há campeões -, amputá-la da sua componente competitiva, só para salvar uma administração? Parece-me uma solução exagerada e pouco democrática.
Na Bélgica, cheia depressa, a liga nacional não foi em Chinas nem em outros lazaretos e decidiu atribuir o título de campeão a quem ia na frente quando o vírus lá chegou. A UEFA veio ontem questionar a participação das equipas belgas nas competições da UEFA 2020/21 'dado que a participação se determina pelo resultado desportivo alcançado no final das provas nacionais dadas concluídas por completo e uma finalização prematura levanta dúvidas sobre o cumprimento dessa condição'. Se em Portugal, salvar vidas passa por dar o título já ao FC Porto, será de bom-tom perguntara Pinto da Costa e aos seus pares se, vidas por vidas, não preferem, ainda assim, tentar ir à Liga dos Campeões e açambarcar a maçaroca pela via normal que é a apontada pela UEFA, ou seja, jogando os joguinhos todos sob o nosso Sol, sabe-se lá quando.
O Benfica em Fevereiro a jogar à bola foi uma lástima. De meados de Março até este início de Abril, a cumprir a sua função de obra social o Benfica tem sido excepcional. No entanto, se quiser ser (outra vez) campeão de futebol, tem de fazer os 10 jogos que faltam. Neste capítulo não se consentem excepcionalidades."
Benfica 3-0 Celtic. A eliminatória decidida por moeda ao ar que marcou a infância de Rui Águas
"Tenho na memória um jogo que vi no estádio da Luz, quando era miúdo, devia ter uns seis, sete anos. Eu ia muito ao futebol com o meu pai, ao estádio da Luz a maioria das vezes, e tínhamos o nosso lugar, que não era marcado, mas que era sempre na mesma zona.
Recordo-me muito desses tempos, também porque o meu pai já faleceu e essas coisas acabam por ganhar maior simbolismo.
O jogo foi um Benfica-Celtic para uma competição europeia que eu acredito que tivesse sido a Taça dos Campeões Europeus. Na primeira eliminatória o Benfica tinha perdido 3-0, em Glasgow, e depois fez um super jogo no estádio da luz, conseguindo empatar a eliminatória, ganhando também por 3-0.
Na altura terá havido prolongamento, calculo eu, e a decisão, vejam bem, foi por moeda ao ar, que é algo que não deve ter acontecido durante muito tempo no futebol, mas que na altura fazia parte das regras.
Estádio cheio e às tantas há um falso alarme positivo. Ou seja, alguém achou, ouviu ou gritou que a moeda tinha pendido para o lado do Benfica e lançou-se a euforia generalizada. Barulho, festa, aplausos, risos.
Só que, passado algum tempo, não sei quanto tempo demorou o engano, afinal soube-se que a coisa foi ao contrário e foi uma desilusão redobrada.
Então para um miúdo de seis ou sete anos, como eu, que amava futebol, foi algo que me marcou bastante.
Benfica 3-0 Celtic (26 de Novembro de 1969, Taça dos Campeões Europeus)
Benfica: José Henrique, Messias, Malta da Silva, Adolfo Calisto, Mário Coluna, António Simões, Jaime Graça, Toni, Eusébio (45' Vítor Martins), Raúl Águas (62' Diamantino Costa) e Artur Jorge.
Celtic: John Fallon, Billy McNeill, Jim Brogan, Jim Craig, Tommy Gemmell, Jimmy Johnstone, Tom Callaghn (90' George Connelly), Bertie Auld (90' Harry Hood), Bobby Murdoch, William Wallace e Yogi Hughes.
Golos: 35' Eusébio, 40' Jaime Graça, 90' Diamantino Costa."
O fim dos campeonatos sem mérito
"Não há condições para retomar os campeonatos de formação, mas também não podemos apagar o trabalho todo de uma época desportiva. A solução passaria pela contagem dos pontos no final da 1ª volta.
Neste momento, discutem-se, em todo o mundo, medidas de prevenção, contenção e tratamento para o novo Coronavírus (Covid19). A esta preocupação real, séria e que todos deve fazer reflectir, juntam-se medidas para atenuar a instabilidade actual, pensar e projectar o futuro, bem como para dar resposta aos projectos que ficaram suspensos com a propagação desta pandemia.
Louvo a decisão da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) em terminar, neste momento, todas as competições, uma vez que não conseguimos precisar com exactidão o fim desta pandemia. Volto a sublinhar que concordo com a decisão de término dos campeonatos, pois a segurança e saúde pública estão acima de qualquer entidade ou prova, no entanto, tenho outra opinião quanto à forma como os campeonatos finalizarão: sem subidas nem descidas, sem títulos de campeões atribuídos.
Ora vejamos, quando se planeia uma época desportiva são definidos objectivos a curto, médio e longo prazo, tal como acontece numa empresa, que se espera que no final do ano tenha atingido o lucro X com a despesa Y. No futebol também se delineiam (ou deveriam delinear-se) objectivos, assim como em qualquer um desporto.
Na próxima época, aquando da definição dos objectivos para as equipas, é provável que os técnicos e dirigentes se perguntem se os mesmos deverão ser traçados “jogo a jogo” ou, no limite, mensalmente, uma vez que, desta forma, não incorrerão no risco de não atingir — temporalmente — as metas a que se propõem.
Mas não, não é assim que deveremos trabalhar, tal como não deveria ser assim o final da época 19-20! Uma equipa que lutou a época toda, trabalhou semanalmente para conseguir uma subida, vê agora o trabalho, esforço e os fins-de-semana que perderam na companhia das famílias (porque tinham jogo), desperdiçados. Também no final da tabela encontramos um outro senão. Quem lutava para não descer, sem grandes exibições para se “manter” na divisão onde competia, chegando a deixar de acreditar na sua manutenção e, portanto, facilitando a cada jogo, vê agora a manutenção ser garantida, mesmo sem a merecer.
O Lema Olímpico é Citius, Altius, Fortius, isto é, “mais rápido, mais alto, mais forte”. O que aqui está patente é a mensagem de superação, de colocarmos o máximo esforço no que fazemos para conseguir atingir os resultados que pretendemos. As equipas, que adoptaram este lema no início de época, estão agora desiludidas e tristes com o facto do seu esforço ter desaparecido num ápice.
Outro lema informal, que muitos atribuem à motricidade humana determinada por um conjunto de regras que visa a competição, é o de que “perder ou ganhar é desporto”. Quando proferimos o conteúdo da mensagem não devemos interpretar que “ganharmos ou perdemos é a mesma coisa”, o que devemos apreender é de que temos de saber ganhar ou perder, mas que no desporto há um vencedor e um perdedor, mesmo dando o máximo esforço de si.
Sei que perante esta pandemia será difícil decidir quem vai ganhar ou, até, quais os moldes mais justos para todas as equipas. Na minha opinião, não há condições para retomar os campeonatos de formação, mas também não podemos apagar o trabalho todo de uma época desportiva. Ao todo, foram 120 treinos (para uns mais), mais de 18 jogos (oficiais), fins de semana perdidos, e acima de tudo laços criados de companheirismo e amizade que vão permanecer, mas que foram sustentados por este trajecto. O que faria, e digo eu que não tenho autoridade sobre o assunto, sendo apenas um treinador com opinião, passaria pela contagem dos pontos no final da 1ª volta de todas as equipas. Neste momento já todas as equipas jogaram entre si, já conseguimos aferir os patamares competitivos em que os clubes se encontram, assim seria mais justo, não se apagando o trabalho de uma época, mas também não seriamos injustos para aqueles que têm calendários mais desfavoráveis mediante o nível competitivo dos adversários e que já realizaram alguns jogos da 2ª volta.
É importante também reflectir sobre outro agente desportivo, muitas vezes negligenciado, o árbitro! Os profissionais do apito também estão dependes de avaliações, classificações, sujeitos a maus e bons trabalhos, uns agouram outros patamares, entretanto outros não conseguiram ter prestações de determinado nível que lhes permitam continuar nos patamares em que estão. Tal como os atletas, treinadores e dirigentes, perderam fins-de-semana, com dois a três jogos e alguns até cinco, e, caso esta época seja desconsiderada, também eles perdem o esforço de meses de trabalho.
Globalmente estão a ser tomadas medidas tendo em consideração o passado, o presente e o futuro das pessoas. No futebol também têm de ser tomadas medidas com essa índole. Não podemos fugir da realidade, nem podemos apagar o registo desportivo desta época, não podemos favorecer no futuro quem não garantiu, por mérito próprio, a continuidade em determinada divisão.
Reitero que esta minha opinião é enquanto agente desportivo, a equipa que treino não sairá beneficiada nem prejudicada com esta medida."
Salários no futebol
"Os jogadores de futebol das equipas mais ricas vão reduzir uma percentagem do seu salário: uns 30%, outros 70%, outros vários meses sem receber. Parece muito, e, é, não há dúvida nenhuma, estamos a falar de milhões em relação ao comum dos mortais.
Contudo um cidadão normal um corte de 30% tem implicações desastrosas, no seu final do mês com as contas para pagar.
Os jogadores de futebol vivem num planeta à parte, mas quem vive na Terra sabe que este corte dos salários pouca importância tem nas suas vidas. O seu problema é ganharem menos um pouco. Para quem ganha, por exemplo 10 milhões de euros, um corte de 30% equivale a um corte de 3 milhões de euros, mas ainda recebe 7 milhões. Estamos entendidos!
Os salários dos jogadores dos grandes clubes alcançaram somas obscenas e sem jogos, publicidade o dinheiro não aparece. O futebol é uma indústria que está interligada com muita coisa. A primeira é as receitas, a segunda é a publicidade, a terceira é o que recebe nas provas que realiza na Liga dos Campeões e Liga Europa.
A austeridade chegou ao futebol que parecia imparável no seu crescimento e hegemonia.
Esta foi a resposta inevitável, porque o futebol está muito stressado e dependente de liquidez. O futebol funciona em função de resultados que pode alcançar no futuro, isso, por vezes, não é a melhor estratégia de gestão.
Gianni Infantino e a FIFA vão ajudar as equipas e federações que necessitem. Estamos a falar de 2700 milhões, que pode chegar a 5.000 milhões.
É tudo muito bonito, mas com o compromisso de passados uns anos devolverem esse dinheiro. Isto é, não há almoços grátis nem no futebol.
O futebol parecia o olimpo que lidava com milhões mas a sua estrutura tem enormes debilidades e não é tão potente como se poderia pensar em função dos números estratosféricos que maneja.
O provérbio, "o rico e o porco, depois de morto", aplica-se neste caso, a Covid-19 veio demonstrar que o futebol não é assim tão rico e pujante."
À espera de um novo Bosman?
"A disciplina do grupo de trabalho é considerada um ingrediente fundamental do sucesso desportivo. Dentro desse espírito, os estágios de concentração bem como as viagens que antecedem e sucedem à competição tornaram-se práticas quase rituais do desporto moderno. No entanto, será que estes estágios, tal como são hoje configurados pelos clubes, e consentidos pela lei portuguesa, são compatíveis com a regulamentação europeia em matéria de organização do tempo de trabalho? Poderão os atletas, tal como permite o regime legal português, ficar ininterruptamente sujeitos a estágios de concentração que, por vezes, se prolongam por 48 ou 72 horas? E será que as viagens que antecedem e sucedem à competição, tal como são organizadas pelos clubes, com o “aval da lei”, serão compatíveis com o Direito da União Europeia (UE)?
A questão é pertinente porque, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE, que deve ser aplicada pelos tribunais portugueses, o conceito de tempo de trabalho abrange não só o tempo de trabalho efectivo (o tempo durante o qual o trabalhador presta efectivamente a sua prestação), mas também o chamado tempo de disponibilidade (o tempo durante o qual o trabalhador está disponível para trabalhar).
No caso do tempo de disponibilidade, determinante, para aquele Tribunal, é que a disponibilidade se manifeste no local de trabalho ou em local determinado pelo empregador. Assim, se o trabalhador estiver em casa, ainda que deva permanecer “disponível” para trabalhar e podendo ser chamado a qualquer momento, esse tempo já não será considerado tempo de trabalho. A distinção deixa-se compreender pela seguinte razão: nos casos em que está em casa (ou fora do “controlo” imediato do empregador), o trabalhador recupera alguma da sua liberdade para gerir o seu descanso o que, pelo contrário, não acontece quando deve estar disponível para trabalhar no local de trabalho ou em local ditado pelo empregador.
Partindo desta premissa, será que o regime legal dos estágios e das viagens que antecedem e sucedem à competição é compatível com esta jurisprudência? Em relação aos estágios, é preciso considerar, desde logo, que as concentrações ocorrem em local determinado pelo empregador e que os atletas, em regra, não podem ausentar-se sem autorização do clube, estando até sujeitos ao seu poder disciplinar caso o façam. Acresce que, durante esse período, o atleta deve estar disponível para o que vier a ser programado pelo clube, podendo o empregador, aliás, alterar discricionariamente a “agenda” ou “ordem de trabalhos” do estágio e, com isso, do praticante desportivo. Ainda que, durante esse período, o atleta possa dedicar-se a certas actividades de lazer (como jogar consola ou interagir com os seus seguidores nas redes sociais), está permanentemente à disposição do empregador. Tudo somado, esses tempos devem ser considerados tempo de trabalho para todos os efeitos legais, nomeadamente, para o cômputo dos limites aos períodos normais de trabalho (oito horas por dia, 40 horas por semana).
O mesmo se poderá passar no caso das viagens que precedem e sucedem à competição. Embora seja verdade que o Tribunal de Justiça da UE já tenha afirmado que os chamados “tempos de deslocação” não são considerados, em princípio, tempos de trabalho, importa considerar que, no caso dos desportistas profissionais, essas deslocações são realizadas em horário determinado pelo clube e por meios que pertencem à entidade empregadora (como é o caso do autocarro do clube) ou por ela escolhidos (por exemplo, por avião). Acresce que o atleta partilha esse tempo com os companheiros de equipa (tratando-se de desportos colectivos) e também com os representantes do clube, estando, aliás, durante a viagem, num certo sentido, sob as instruções destes. A partir do momento em que o trabalhador está obrigado a deslocar-se nos termos definidos pelo empregador, esse período deve ser considerado tempo de trabalho para efeitos legais.
No início dos anos 90, o modesto futebolista Bosman revolucionou o mundo do futebol ao discutir nos tribunais belgas a legalidade das chamadas indemnizações de transferência. A questão foi levada à apreciação do Tribunal de Justiça da UE que, decidindo a favor de Bosman, afirmou que os interesses da indústria desportiva não podem prevalecer sobre os princípios e regras do Direito da UE. Também o regime do tempo de trabalho dos desportistas profissionais não pode prevalecer sobre o Direito da UE, pelo que, certo dia, não é improvável que um novo Bosman possa aparecer nos tribunais portugueses, questionando o regime vigente em Portugal."
Reflexão
"Só a soma de vontades ajudará a chegar ao fim deste pesadelo do Covid-19 com menos vítimas e menos angústia
Numa época dominada por um só tema, este maldito Covid-19 que sequestrou o mundo com as suas incertezas, discute-se a possibilidade de se terminar os campeonatos fora do calendário habitual. Primeiro era Junho, depois era Julho e agora até Agosto é hipótese para salvaguardar os principais interesses comerciais e compromissos com os patrocinadores e demais interesses económicos que financiam as competições da actual época desportiva. Não tanto por ter de haver um campeão, muito mais por haver contratos por cumprir e interesses económicos e salvaguardar.
Nesta época de reflexões e muito tempo em casa sugiro para quem tem Netflix que veja a pequena série O Jogo Inglês. Trata da origem do futebol, da sua expansão como modalidade popular, da discussão entre o amadorismo e o profissionalismo. Impressionante como 150 anos depois os temas são muito parecidos e as motivações da paixão pelo jogo também. Numa série que retrata a sociedade inglesa da segunda metade do Séc. XIX, onde as verdades não são absolutas e as questões fazem sentido, ainda hoje fica uma interessante reflexão sobre a origens (e actualidade) do futebol. Muito mais do que uma disputa entre o aristocrata Kinnaird e o proletário Suter, muito mais do que um jogo entre os Old Etonians e o Newcastle, muito mais do que um jogo, é a essência do jogo, é a génese da paixão pelo futebol que está bem retratada na série. Arrepiantemente actual.
Neste período onde não faltam exemplos de ajuda e altruísmo, onde a sociedade também tem mostrado o melhor que tem na capacidade de se entregar ao bem comum, sublinho a generosa contribuição do Benfica (como outras), primeiro com uma avultada soma financeira, depois com a doação de alimentos aos sem abrigo e agora com o contributo dado para aquisição de material e equipamento de protecção médica. A doação dos profissionais do Benfica permitiu comprar mais de 50 mil máscaras, 540 mil luvas, 750 óculos de protecção, 750 fatos térmicos e 20 termómetros infravermelhos. É a utilidade, a generosidade e o testemunho numa altura onde só a soma de vontades ajudará a chegar ao fim deste pesadelo com menos vítimas menos angústia. Uma atitude à Benfica."
Sílvio Cervan, in A Bola
Quarentena II
"Diz o povo que em tempo de guerra não se limpam armas. Curiosamente, nesta que vivemos, até convém limpá-las assiduamente, mas as do nosso inimigo, pois trata-se das nossas próprias mãos.
Já se vê, pela lógica deste pensamento, que a quarentena tem os seus efeitos. Há uns dias dei por mim farto de estar em casa e a ir até ao meu carro, onde permaneci umas horas e li parte de um livro da Anna Burns – “Milkman” – no qual é particularmente bem descrito o ambiente de terror vivido nos anos 70/80 na Irlanda do Norte, onde houve, de facto, uma guerra, no sentido clássico do termo. Nesta, que só Pacheco Pereira parece recusar-se a referir-se-lhe nesses termos, pedem-nos para ficarmos em casa, lavarmos as mãos e praticarmos distância social, o que em certos casos nem é grande o sacrifício, talvez seja mesmo uma benesse.
Para quem tem saúde e não é obrigado a arriscá-la em nome de outrem, e ainda para quem não começa a sofrer já com a paragem da economia, além das saudades de familiares e amigos, os maiores desafios têm sido ocupar o tempo entre paredes (perdeu-se a desculpa “não tenho tempo para ler”) e estar atento aos noticiários de algumas TVs (salva-se a RTP) para se mudar de canal imediatamente antes do início da evangelização diária dos pivots de serviço, num tom que alterna entre a reprimenda e a (proto) inspiração. Como não percebo do assunto, nem me preocupo com audiências, preferiria ouvir notícias. E garanto-vos que não haverá discurso tão inspirador quanto os actos praticados por pessoas e instituições, por vezes pouco ou nada noticiados, entre os quais as doações avultadíssimas do Benfica e dos elementos da sua equipa profissional de futebol, que mereciam mais destaque."
João Tomaz, in O Benfica
Corona de espinhos
"Não é fácil esta vida de quarentena. E não estou a falar da minha, que estou sentado em casa a escrever, com tranquilidade, boa net, frigorífico abastecido e família em segurança. Eu não me queixo, limito-me a cumprir a minha parte para que todos terminemos vencedores, como espero que vocês também estejam a fazer.
O que me anda a incomodar são outras vidas.
Imaginemos aquele senhor que tem dificuldade em manter o cuspo dentro da boca sempre que diz mal do Sport Lisboa e Benfica. Como pode ele agora comentar, insinuar, mentir, fingir, atacar, dar azo à sua loucura em directo na televisão? Com a covid-19, eu sei bem quem é que não se sentaria à sua frente com risco de apanhar uma das milhentas gotas de saliva...
Ou será veneno?
E o que dizer do outro que não vive sem dar bicadas através do passarinho azul? Sim, esse, o funcionário do mês que vai ter tantas explicações para dar em tribunal. Com os campeonatos parados, como pode ele inventar mais linhas imaginárias, desculpas de mau pagador (literalmente) e truncar e-mails para cozinhar o seu polvo, duro, ressequido, sem gosto?
Como deve estar a ser difícil a vida desta gente que precisa do Benfica para viver. Passam os dias fechados nas suas cavernas, à espera de qualquer migalha para fazer um banquete, mas não têm sorte nenhuma. Ainda se agarram à OPA ou às possíveis contratações, mas só levam com chapadas de classe: é o trabalho da Fundação, são os ventiladores, o apoio a idosos em situações de risco, as máscaras e as luvas, o capitão de voleibol Hugo Gaspar a dar lições de profissionalismo e solidariedade, as redes sociais em favor de uma causa... eu sei lá."
Ricardo Santos, in O Benfica
Uma quarentena bem divertida
"Então, estimado leitor, como vai essa quarentena? A minha tem sido produtiva. Já aprendi a falar klingon devorando The Big Bang Theory, fiz três maratonas de Harry Potter e ainda cheguei a 2050 no Fottball Manager. O Benfica já ultrapassou o Real Madrid na lista de vencedores da Liga dos Campeões; Pinto da Costa ainda é o presidente do FC Porto aos 112 anos; o Sporting foi finalmente campeão, em 2042, depois de uma vitória épica em Alvalade, na última jornada, diante do V. Setúbal, superando assim o Varzim na luta pelo título da II Liga. Rui Santos, que assumira a presidência do clube em 2039, acertou em cheio na escolha de Vítor Oliveira para alcançar o objectivo da subida, depois de Jérémy Mathieu ter falhado a manutenção dois anos consecutivos no papel de treinador-jogador. A queda para o CNS pelo menos permitiu vingar aquela eliminação da Taça frente ao Alverca em 2019, goleando os ribatejanos por 5-0 com um póquer de Manuel Fernandes, neto da velha glória leonina que actualmente é comentador residente no Você na TV! apresentado por Bruno de Carvalho. Sim, tenho o FM na versão mais completa.
Conforme o leitor pode verificar, é possível ficar em casa sem desesperar. Podemos até tornar a experiência bem divertida. Experimente ler, fazer exercício ou dar uma limpeza à arrecadação. Se nenhum destes passatempos - ou qualquer outro praticado dentro de portas - for suficiente para o leitor, lamento imenso, mas ainda assim terá de sujeitar à quarentena. Porque o dever de impedir que este vírus continue a matar não tem sequer comparação com a vontade de suas excelências irem para a praia matar saudades do mar."
Pedro Soares, in O Benfica