"A disciplina do grupo de trabalho é considerada um ingrediente fundamental do sucesso desportivo. Dentro desse espírito, os estágios de concentração bem como as viagens que antecedem e sucedem à competição tornaram-se práticas quase rituais do desporto moderno. No entanto, será que estes estágios, tal como são hoje configurados pelos clubes, e consentidos pela lei portuguesa, são compatíveis com a regulamentação europeia em matéria de organização do tempo de trabalho? Poderão os atletas, tal como permite o regime legal português, ficar ininterruptamente sujeitos a estágios de concentração que, por vezes, se prolongam por 48 ou 72 horas? E será que as viagens que antecedem e sucedem à competição, tal como são organizadas pelos clubes, com o “aval da lei”, serão compatíveis com o Direito da União Europeia (UE)?
A questão é pertinente porque, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE, que deve ser aplicada pelos tribunais portugueses, o conceito de tempo de trabalho abrange não só o tempo de trabalho efectivo (o tempo durante o qual o trabalhador presta efectivamente a sua prestação), mas também o chamado tempo de disponibilidade (o tempo durante o qual o trabalhador está disponível para trabalhar).
No caso do tempo de disponibilidade, determinante, para aquele Tribunal, é que a disponibilidade se manifeste no local de trabalho ou em local determinado pelo empregador. Assim, se o trabalhador estiver em casa, ainda que deva permanecer “disponível” para trabalhar e podendo ser chamado a qualquer momento, esse tempo já não será considerado tempo de trabalho. A distinção deixa-se compreender pela seguinte razão: nos casos em que está em casa (ou fora do “controlo” imediato do empregador), o trabalhador recupera alguma da sua liberdade para gerir o seu descanso o que, pelo contrário, não acontece quando deve estar disponível para trabalhar no local de trabalho ou em local ditado pelo empregador.
Partindo desta premissa, será que o regime legal dos estágios e das viagens que antecedem e sucedem à competição é compatível com esta jurisprudência? Em relação aos estágios, é preciso considerar, desde logo, que as concentrações ocorrem em local determinado pelo empregador e que os atletas, em regra, não podem ausentar-se sem autorização do clube, estando até sujeitos ao seu poder disciplinar caso o façam. Acresce que, durante esse período, o atleta deve estar disponível para o que vier a ser programado pelo clube, podendo o empregador, aliás, alterar discricionariamente a “agenda” ou “ordem de trabalhos” do estágio e, com isso, do praticante desportivo. Ainda que, durante esse período, o atleta possa dedicar-se a certas actividades de lazer (como jogar consola ou interagir com os seus seguidores nas redes sociais), está permanentemente à disposição do empregador. Tudo somado, esses tempos devem ser considerados tempo de trabalho para todos os efeitos legais, nomeadamente, para o cômputo dos limites aos períodos normais de trabalho (oito horas por dia, 40 horas por semana).
O mesmo se poderá passar no caso das viagens que precedem e sucedem à competição. Embora seja verdade que o Tribunal de Justiça da UE já tenha afirmado que os chamados “tempos de deslocação” não são considerados, em princípio, tempos de trabalho, importa considerar que, no caso dos desportistas profissionais, essas deslocações são realizadas em horário determinado pelo clube e por meios que pertencem à entidade empregadora (como é o caso do autocarro do clube) ou por ela escolhidos (por exemplo, por avião). Acresce que o atleta partilha esse tempo com os companheiros de equipa (tratando-se de desportos colectivos) e também com os representantes do clube, estando, aliás, durante a viagem, num certo sentido, sob as instruções destes. A partir do momento em que o trabalhador está obrigado a deslocar-se nos termos definidos pelo empregador, esse período deve ser considerado tempo de trabalho para efeitos legais.
No início dos anos 90, o modesto futebolista Bosman revolucionou o mundo do futebol ao discutir nos tribunais belgas a legalidade das chamadas indemnizações de transferência. A questão foi levada à apreciação do Tribunal de Justiça da UE que, decidindo a favor de Bosman, afirmou que os interesses da indústria desportiva não podem prevalecer sobre os princípios e regras do Direito da UE. Também o regime do tempo de trabalho dos desportistas profissionais não pode prevalecer sobre o Direito da UE, pelo que, certo dia, não é improvável que um novo Bosman possa aparecer nos tribunais portugueses, questionando o regime vigente em Portugal."
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