quinta-feira, 2 de abril de 2020
A inteligência em forma de eficiência do Criador
"Angel Di Maria é um dos jogadores do ano em solo Europeu. Aos trinta e dois anos contrariou todas as teses que acreditavam que perderia rendimento de forma abrupta com a queda das suas capacidades condicionais.
O argentino foi na última década capaz de se reinventar. Deixou de ser apenas um jogador que se valia do seu talento natural, expresso numa habilidade motora para lá de excepcional, para se tornar num jogador eficiente no seu gesto – Algo que sempre compensou com a tal habilidade extraordinária.
Hoje, precisa de menos toques, menos tempo e menos acções para desequilibrar – Faz bem, faz mais rápido e com a idade, se perdeu velocidade de deslocamento, ganhou capacidade para fazer acelerar ainda mais o jogo quando tal se pede.
Este é um jogo de habilidade, gesto e muita aptidão física e motora, mas é o cérebro que lhe potencia o rendimento."
Mensagem do capitão do Futsal, Bruno Coelho
"Vivemos um período de isolamento, muito difícil para todos nós. Só numa fase tão complicada como esta que estamos a viver é que percebemos o que realmente de bom temos na vida. Nunca estivemos tanto tempo com a nossa família como agora e existe esse lado positivo de poder ver o desenvolvimento e o crescimento das nossas crianças, dos nossos filhos. É bom ver e perceber o que eles aprenderam na escola, ajuda a ter esperança no futuro.
É que esta é uma fase dura, a que todos nós temos de nos habituar. Estar fechado em casa não é um hábito do nosso povo, mas desta vez não há volta a dar. Temos de respeitar e fazer o que os responsáveis de saúde nos pedem. É um período muito difícil em que temos de estar todos unidos, Portugal inteiro, para conseguir superar esta pandemia.
Falando um pouco de como tenho passado estes dias com a minha família, confesso que tem sido um desafio enorme. Temos dois miúdos e não tem sido fácil entretê-los em casa. Antes tínhamos o especial cuidado de alertar para que não se agarrassem tanto às tecnologias, neste momento recorremos a tudo o que existe para distraí-los, desde brincar com eles, fazer jogos, tentar adaptar actividades que fazíamos normalmente num parque… É assim que os vamos mantendo ocupados.
Eu próprio e todos os nossos atletas do futsal treinamos em casa, fazemos os exercícios de treino planeados pelo nosso preparador físico consoante o que podemos fazer. Têm sido assim os meus dias, os nossos dias. Hoje é só mais um, mas o que é realmente importante é que estou com a minha família em casa e aquilo que peço aos portugueses, agora que estamos em estado de emergência, é que todos respeitem este momento, que todos façam o que é pedido e que se cuidem. Virão tempos difíceis, em que temos de estar todos unidos para um futuro melhor e para que isto passe rápido. Beijinhos e abraços enormes de conforto a todo o país e a toda a Família Benfiquista.
Bruno Coelho"
Francisco dos Santos
"Quem será o Fergus Suter português? E que até jogou numa das melhores equipas italianas...
A série “The English Game”, da autoria de Julian Fellowes (o criador de “Downton Abbey”), tem sido muito falada entre aqueles que amam o desporto-rei, já tendo sido mencionada nesta página. O enredo conta-nos, com alguma subjectividade dramática, como é natural, a história de como o futebol passou da aristocracia para a classe operária da Inglaterra dos finais do século XIX. O principal protagonista é o escocês Fergus Suter, que foi o primeiro jogador de futebol a ser pago para o fazer, bem como a ter alguma fama e notoriedade.
E em Portugal, como terá acontecido isto? Quem terá sido o Fergus Suter português? A verdade é que não deverá haver um equivalente exacto.
Podemos apontar alguns nomes que se destacaram no início do século XX, como Artur José Pereira (que se destacou no Belenenses), Cândido de Oliveira, Pepe (também do Belenenses), Francisco Stromp (Sporting), entre outros. Mas falemos do primeiro jogador luso que, tal como Suter, se aventurou no estrangeiro: Francisco dos Santos.
Primeiro, o contexto. As origens do futebol no nosso país remontam à ilha da Madeira, quando em 1875, na Camacha, se terão dado os primeiros toques na bola. Tudo devido à forte presença de marinheiros e estudiosos ingleses pelas praias portuguesas, que foram ensinando as populações locais a praticar aquele desporto novo.
Três anos, depois, em 1878, nascia em Rio de Mouro, Sintra, Francisco dos Santos. Filho de uma família da classe média, Francisco perde o pai aos 2 anos de idade. Aos 10, com a ajuda do padre da freguesia, ingressou na Casa Pia de Lisboa, onde revelou uma forte propensão para a arte e para o desporto, apesar de ser um rapaz baixo e franzino. O seu percurso académico continuaria com a matrícula na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1893.
Na última década do século, Francisco, para além de ter terminado o curso com distinção, ia jogando futebol com os seus amigos casapianos. A 22 de Janeiro de 1898, a equipa do colégio venceu por 2x0 os ingleses do Carcavellos Club, equipa invencível até então. Um feito notável e mediático, numa altura em que os ingleses dominavam a modalidade e quando havia na sociedade portuguesa um forte sentimento anti-britânico devido a motivações políticas – o maior exemplo disso é o próprio hino nacional, escrito em 1890, que originalmente dizia “contra os bretões, marchar, marchar!” em vez da versão que hoje conhecemos.
O futebol começava assim a fazer parte da vida do artista. Em 1903, ganhou um concurso de escultura cujo prémio era uma bolsa de estudo na Escola de Belas Artes de Paris. Na cidade-luz, Francisco passou por muitas dificuldades ao nível financeiro, pois o dinheiro da bolsa nem para o essencial chegava. Na velhice, admitiu que chegou a usar folhas de jornais por dentro das roupas para se aquecer.
Sempre que regressava a Portugal, Francisco dos Santos jogava futebol com alguns ex-colegas da Casa Pia nos vermelhos e brancos do Sport Lisboa, clube fundado em 1904, que anos mais tarde se fundiria com o Grupo Sport Benfica para dar origem ao Sport Lisboa e Benfica, clube que julgo que os leitores desta página já devem ter ouvido falar.
Em 1906, Francisco beneficiou da fortuna que o Visconde de Valmor deixou em testamento à Academia de Belas Artes de Lisboa para residir em Roma, e seria na capital italiana que iria consolidar a sua reputação, tanto na arte como no futebol (passe o pleonasmo).
Numa manhã de 1907, estava a passear o cão nos jardins de Villa Borghese quando encontrou a equipa da Lázio a treinar. Conversa puxou conversa, e foi assim que um jogador português começou a jogar pela primeira vez por um clube estrangeiro, apesar do amadorismo que ainda perduraria por algumas décadas no Calcio italiano.
A sua passagem pelos biancocelesti ainda hoje está bem documentada para os padrões da época. Estreou-se a 1 de Setembro de 1907, em Perugia, numa goleada frente ao Siena por 5x0, por ocasião de um torneio inter-regional, e ainda nesse ano conseguiu reclamar para si nada mais nada menos que o estatuto de capitão de equipa.
Francisco dos Santos era conhecido por ser um futebolista de qualidade, e de uma enorme resiliência. Consta que num desafio em Pisa, depois de um choque contra um adversário, partiu 2 costelas… e continuou em campo. Já o oponente, teve de ser encaminhado para o hospital.
A 20 de Janeiro de 1908, o “homem-cacto”, como ficou conhecido em Itália devido à sua estatura, participou no primeiro derby entre o seu clube e o Foot Ball Club de Roma – clube que nada tem a ver com o AS Roma, fundado apenas em 1927. O célebre jornal Gazzeta Dello Sport mencionou-o num artigo sobre o jogo: “em evidência estiveram o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi impressionante, dos melhores em campo…”. Com a camisola dos azuis e brancos da Cidade Eterna, Francisco conquistou, que se saiba, a Coppa Tosti e a Coppa Baccelli, dois torneios inter-regionais da época.
Em 1910, regressou a Portugal, onde ingressou no Sporting. De acordo com jornais desportivos da época, como o “Os Sports Illustrados”, Santos era half-back esquerdo, e também jogava a forward, numa altura em que a cultura táctica estava ainda longe da modernidade. De leão ao peito, jogou ao lado de nomes bem conhecidos do conjunto de Alvalade, como Francisco Stromp. Fez parte dos primeiros conselhos técnicos do clube, e como se não bastasse foi também árbitro e um dos fundadores da Associação de Futebol de Lisboa.
Não se pode dizer que tenha sido, como Fergus Suter, pago para jogar futebol. Aliás, é muito provável que não tenha porque consta que em Itália, para além da escultura, dava aulas de francês para ir conseguindo pagar as dívidas e pôr comida na mesa, que já era pai de um menino chamado Francesco. No entanto, para além de ter aproveitado as viagens grátis da equipa para visitar museus e galerias de arte em solo transalpino, conseguiu a proeza notória de capitanear um clube histórico do futebol italiano.
As peripécias futebolísticas deste indivíduo de que falamos, apesar de fascinantes, em nada se compararam ao seu legado artístico, mais precisamente como escultor, que tentei evitar ao longo deste artigo por estarmos numa aula de futebol e não de Artes Plásticas. No entanto, guardei a maior surpresa para o fim.
Entre as obras mais conhecidas do escultor/jogador, estão o Monumento do Marinheiro ao Leme, no Cais do Sodré, a estátua “Prometeu”, no jardim Constantino (em Arroios), o Busto Oficial da República Portuguesa, e por último (rufem os tambores) … O Monumento do Marquês de Pombal, bem no coração de Lisboa.
A vida tem destas coisas. Neste caso, um ex-jogador do Sport Lisboa e também do Sporting foi o principal responsável pela construção de uma estrutura que, nos dias de hoje, é bastante associada à celebração de títulos de futebol dos dois maiores clubes de Lisboa. Na estátua podemos ver o Marquês, acompanhado de… um leão. Apesar deste elemento significar força e poder, há quem não resista em reclamar o “sportinguismo” da obra, numa daquelas picardias eternas dos rivais da Segunda Circular.
A porta fechada
"O verde que entra por esta porta é a lembrança de que não acaba o que deixamos à entrada. os ténis enlameados, o chapéu de chuva velho, a chave derrotada, são tudo marcas deste entremundo novo. as intermitências da vida são pintalgadas de chamadas, vídeos e filmes que viram séries. o tempo não passa e o mundo esquece que as pandemias vão e voltam, mas a memória resiste. da rádio à tv, das videocassetes aos dvd, tudo se tornou um cardápio feito perigosamente à nossa medida. somos ditadores de sofá, cheios de razão e razões para criticarmos tudo. rimo-nos dos muros de livros dos outros e não se percebe que eles contam mais histórias do que todos os ecrãs de televisão, uns meros filhos ilegítimos da black trinitron. se nos livros cá de casa encontro o conforto das viagens que ganham pó na to do list, nas conversas noctívagas do #benficadequarentena descubro as raízes de ser Benfica. todas as noites recebo em casa as personagens principais das histórias que os nossos avôs ensinavam, que os pais repetiam e que nós vivemos no estádio que já é nosso. sorrio. amo a história do Benfica, e amo a nossa história, aquela que contamos , relembramos e que acrescentamos o olhar que é tão nosso. a não maldição de guttmann, o brinco do baptista, o campo do cartaxo, as reviengas no 3-6, o belga que voa na baliza, as finais perdidas, ou o 10-0, são histórias individuais de uma memória colectiva, é isso que faz "de muitos, um" a nossa vida. hoje a minha porta está fechada, o meu estádio encerrado, os meus jogadores ausentes e os meus dias já foram mais luminosos. a ausência custa, a saudade dói, mas sei que há tempo, que agora é hora de outras lutas, de estarmos, protegermos e amarmos os que são mais nossos, e sei também que voltaremos mais fortes, como pessoas, como comunidade, como Benfica.
abraço forte (e lavem as mãos)"
Pepê, o parceiro de Cebolinha
"Tal como Pedrinho que viajará para Lisboa para defender as cores do SL Benfica, Pepê participou no Torneio Pré-Olimpico pela selecção do Brasil, encontrando as redes adversárias por três vezes – Uruguai, Paraguai e Bolívia, contribuindo decisivamente para o apuramento da canarinha.
Aos vinte e três anos prepara-se para “casar” o seu potencial com rendimento.
Aos vinte e três anos prepara-se para “casar” o seu potencial com rendimento.
Destro, tem actuado maioritariamente como Extremo Esquerdo no 4x3x3 do Grémio, onde vai revezando o tempo de jogo com Alisson – À direita joga sempre Everton Cebolinha. Impressiona a frieza com que finaliza cada lance, demonstrando classe sempre que chega a hora do toque final, onde não raras vezes termina a desviar a bola do guarda redes com enorme leveza. Não tem ainda o impacto em zonas de criação que demonstra na hora de finalizar, mas executa com primor e velocidade. Em Portugal poderá funcionar como um segundo avançado. Os hábitos defensivos não são proeminentes, e actuar na ala de um 4x4x2 (algo a que não está habituado) obrigaria a uma adaptação rápida, que nunca será demasiado difícil se houver disponibilidade. Contudo, tal opção afastaria Pepê das grandes áreas adversárias, onde tem bastante impacto, mesmo que seja um extremo com características mais tradicionais – Aceleração, procura do drible e forte com espaço para correr.Depois de Pedrinho, Pepê é mais um jovem internacional brasileiro coagitado para ingressar numa Liga que foi perdendo imensa qualidade com o abandono que SL Benfica e FC Porto fizeram dos mercados sul americanos nas últimas temporadas."
Os otários não acabam assim...
"Ginésio era um daqueles fulanos com jeito para tudo, embora tivesse sido preferível que não tivesse tido jeito para certas coisas
Dois caipiras e um colono italiano chegam a São Paulo. Perdidos na cidade grande, pascácios por natureza, deixam-se enganar por um malandrim que lhes vende um ’bonde’, que é como eles por lá chamam aos eléctricos. «Lá vem a lua por detrás da pimenteira/Já me dói o céu da boca de beijar moça solteira», ouvia-se na banda sonora do filme que contava essa história dos caipiras e do colono italiano e que tinha o título de Acabaram-se os Otários. Na vida real, os otários eram um só, um desgraçado de um mineiro burro que achou por bem gastar todo o seu dinheiro na aquisição de um ‘bonde’ a um caviloso sem escrúpulos. Isto passou-se em 1929 e Ginésio Soares de Arruda Junior tinha assinado o primeiro filme sonoro da história do cinema brasileiro.
Ginésio era um daqueles fulanos que tinha jeito para tudo, embora assim à distância até fosse de agradecer que não tivesse tido jeito nenhum para algumas coisas, como a música sertaneja, por exemplo, da qual foi um dos precursores sem ter percebido a devido tempo que estaríamos todos um pouco melhor sem ela.
Em Acabaram-se os Otários, Ginésio não se contentou em ser realizador. Como eram precisos dois caipiras, fez questão de ser um deles. A imagem colou-se-lhe ao pêlo como o chapeuzinho de palha se lhe colou à cabeça. Sentiu-se bem como parolo e só não se tornou num porque já o era desde o dia em que nasceu, em Campinas, no dia 28 de maio de 1898.
Não vale cair no exagero de dizer que Ginésio se limitou a ser caipira como caipiras eram os seus programas na_Rádio Tupi, de São Paulo, ou o seu grupo de teatro Genésio Arruda e Sua Gente. Se em 1929 fez o primeiro filme falado em portuguez, assim mesmo com Z, como anunciavam os cartazes, dois anos mais tarde saiu-se com outra novidade que deu brado por todo o Brasil: dirigiu Campeão do Futebol, com Otília Amorim, a cantora de Desgraça Pouca é Bobagem –
«Jurei, que nunca mais na vida
Havia de querer ninguém
Mas você veio sem piedade e compaixão
E entrou como um raio de sol
Pela janela aberta do meu coração»
– e Paraguassu, o tal que tinha o céu da boca dorido de beijar moça solteira mas ainda teve o descaramento de entoar:
«Foi num beijo verdadeiro
Que trocamos, o primeiro
A selar o nosso amor
E depois desse momento
Só me deste de tormento
Me tornaste um sofredor».
Convenhamos que é preciso pachorra para tanta caipirice...
Vem a calhar a pergunta: que fazem estes dois caipiras, Otília e Paraguassu, num filme sobre futebol? Estariam melhor em Acabaram-se os Otários, não se desse o caso de Paraguassu já ter passado por otário na película referente. Basicamente, limitam-se a cantar musiquinhas pouco imaginosas ao longo de uma espécie de biografia dos melhores jogadores brasileiros até à época. Biografia sim, mas bastante ficcionada. Ginésio tinha mais alma de palhaço do que de director. Talvez tenha sido esse o motivo para convidar gente com nomes tão estrambóticos como Araken Patusca, do Santos, ‘Ministrinho’, do Palestra Itália, ou Tuffy, o guarda-redes do Corinthians.
Friedenreich não podia faltar, mas esse nem era por causa do nome esdrúxulo, filho nascido de um imigrante alemão e de uma nega fulô que lhe servia de empregada, e sim porque todos o consideravam o melhor dos melhores. Além do mais era um actor nato, coisa que Genésio só conseguia ser através de papéis nos quais pudesse enrolar a língua e repetir a palavra aperreado para aí uma dúzia de vezes.
Arthur Friedenreich foi, sem dúvida, a estrela maior de Campeão do Futebol. Jogava então no São Paulo e estava à beira de tomar uma das decisões mais difíceis da sua vida: alistar-se no exército paulista para combater, de espingarda na mão, a ditadura de Getúlio Vargas. Foi sempre uma figura do espectáculo, até quando alisava a carapinha à custa de brilhantina para fazer de conta que era branco em vez de mulato. Diz a lenda que Fried, ‘El Tigre’, marcou 1329 golos ao longo da sua carreira. E que nunca falhou um penálti. O próprio alimentava esses número como quem dá milho a um canário. E dizia: «Uma mentirinha nunca fez mal a ninguém».
Já Pedro Sernagioto, que ganhara a alcunha de ‘Ministrinho’ por ter tomado o lugar de outro grande ponta-direita chamado Giovanni del Ministro, transferiu-se para a Juventus, de Turim, enquanto Araken Patusca de Oliveira abandonou o futebol para trabalhar num laboratório de produtos químicos antes de se tornar jornalista e escrever um livro com o título Os Reis do Futebol. Também daria um bom filme. Aliás, todos eles deram um filme. O filme do caipira Genésio. Infelizmente para todos eles o filme além de ser fraco foi do tempo do sonoro. Teria sido melhor vê-los em silêncio. Mesmo com a desesperante voz de Paraguassu ao fundo, em tremeliques de pinga-amor:
«Já tudo dorme, vem a noite em meio
A turva lua vem surgindo além
Tudo é silêncio; só se vê nas campas
Piar o mocho no cruel desdém».
Mais caipira era impossível. Campas e tudo."
Dia das Mentiras [Futebol Português Edition]
"- Não sofremos de clubite.
- Primeiro somos adeptos de futebol, e só depois do nosso clube.
- A nossa equipa joga sempre bem.
. Mas sabemos reconhecer quando somos beneficiados.
- Ao contrário dos nossos adversários, que são gente feia e mal cheirosa.
- Todos acreditamos que os árbitros erram sem ser propositadamente, nunca pomos em causa a sua honestidade, nem os mandamos para locais pouco decentes com as suas progenitoras libertinas.
- Quem faz isso são os adversários, gente feia e mal cheirosa.
- Conseguimos ver jogos de futebol sem nos exaltarmos. Às vezes lá sai um ocasional «Buuhhh, que decisão indecorosa!», mas fora isso somos anjos.
- Damos mérito à equipa adversária quando ganha.
- Ao contrário dos adeptos adversários, pois gente feia e mal cheirosa não tem fair play.
- Sabemos ver os jogos com um desportivismo saudável.
- Só gritamos «É penálti!» quando achamos mesmo que é penálti.
- E sim, a nosso favor é sempre penálti.
- Os jogadores da nossa equipa nunca ofendem o árbitro.
- Os jogadores da nossa equipa, quando muito, praguejam contra as grandes injustiças do mundo.
- Os jogadores da nossa equipa são sempre correctos e não fazem fita.
- «É óbvio que ele está magoado! Não se vê, mas aposto que tem um lanho na perna, coitadinho!».
- Se a nossa equipa perde um Clássico, damos sempre a cara e nunca entramos em quarentena futebolística de dois meses.
- Já se a nossa equipa ganha um Clássico, nunca mandamos mensagens a gozar com os amigos, durante meses, ou até a nossa equipa levar na pá.
- Os portugueses não veem programas de debate clubístico. É pura mentira.
- Nem usam esse tipo de argumentos em discussões de café.
- Só os nossos adversários, que são gente feia, mal cheirosa e de má índole.
- Por fim, em Portugal ninguém chora por causa de bola.
- Ninguém se chateia com os amigos por causa de bola.
- Ninguém deixa de fazer coisas por causa de um jogo da sua equipa.
- E muito menos só bebe a cerveja que patrocina o clube. Era o que faltava!
-Quem faz isso são os adversários, que como é do domínio público, são gente pouco fotogénica, pouco higiénica, com poucos princípios e péssimo gosto.
- Fora isso, somos adeptos perfeitamente equilibrados.
Espero que tenham tido um feliz dia das Mentiras. Em casa. Com os vossos. E com saúde.
Que seja esta a melhor das verdades."
“Levántate y mira la montaña”
"Da minha varanda não se espreitam montanhas. Apenas o rio, os campos de arroz, às vezes o voo longo dos bandos de flamingos. Se me debruçar, espreito a solidão, hoje sem chuva. Algo veio aí para tornar todos os dias domingos. Alcácer tem as águas-furtadas espreitando a tristeza dos outros e já nem os cães uivam à noite porque, na sua intuição de cães, compreenderam a frase de Omar Khayaam: “Nem todas as tuas lágrimas apagarão a palavra escrita”.
Não, a palavra escrita nunca se apaga. Talvez por isso escreva, pode ser que me leias e não esteja, afinal, sozinho por entre muros brancos e pessoas que não vejo e só adivinho para lá das paredes. O tempo passa devagar como é próprio dos domingos, mesmo deste domingo que o não é. Ontem já foi tão longe, não foi? E, no entanto, olho o rio correndo para a foz e parece-me um dia normal. Se calhar, é esse o problema: é parecerem todos dias normais (vá lá, domingos normais) e estarem ao mesmo tempo carregados de mortes já morridas e outras mortes ainda por morrer. Como uma promessa sinistra neste fim de tarde em que o Sado vai consumindo a luz e as estrelas surgem, uma a uma, para fazerem desenhos no céu.
O sorriso moreno dos teus olhos devia levar-me de braços abertos às montanhas.
“Levántate y mira la montaña
De donde viene el viento, el sol y el agua
Tú que manejas el curso de los ríos
Tú que sembraste el vuelo de tu alma”, cantava Victor Jara. Era uma canção de crença. “Levántate y mira la montaña, coño!” Mirar a montanha é descobrir a miragem mais bonita que a noite seja capaz de inventar. Reconheço constelações de cor, e a escuridão do espaço faz delas poemas inteiros. Mesmo que não rimem.
“Levántate y mírate las manos
Para crecer, estréchala a tu hermano
Juntos iremos unidos en la sangre
Hoy es el tiempo que puede ser mañana”.
Não é tempo de apertar a mão de ninguém. Nem mesmo de irmão para irmão. Mas, acredita, ainda voltarei atrás para devolver o abraço que te devo."
Que filmes e séries ver nesta Quarentena? The English Game
"A série The English Game fez-me ter uma visão um pouco diferente sobre o futebol e sobre o porquê de ser um desporto tão apreciado, com todos os seus prós e contras. Em pleno período de isolamento social, a Netflix brindou-nos com uma das séries mais incríveis que já vi. Isto pode parecer uma opinião chocante para alguns, até porque nunca fui muito viciado em séries.
Na segunda metade do século XIX, o futebol era um desporto fundado e praticado por antigos alunos de colégios ingleses. Num tempo em que só os jovens nascidos em famílias ricas tinham a possibilidade de se formarem e tirar um curso, o futebol era então um desporto praticado por cavalheiros e elementos da alta sociedade.
Estes mesmos cavalheiros, viriam a tomar posse da Football Association e orgulhavam-se do futebol ser praticado por senhores cultos e inteligentes, e de ser um desporto amador e que representaria a lealdade entre as mais altas classes sociais.
No entanto, com o avançar dos anos, também iam aparecendo clubes de futebol formados por operários, que representavam o povo e as classes sociais mais baixas. Porém, estes clubes não costumavam chegar muito longe na FA Cup (a única competição que existia na época), muito graças à tamanha diferença de realidades entre operários e cavalheiros.
Enquanto os cavalheiros tinham vidas financeiramente desafogadas e tempo para treinar, os operários não podiam treinar, porque trabalhavam de sol a sol para conseguirem pôr comida na mesa e sustentar as suas famílias.
Porém, a série retratou a melhor prestação de um clube operário na competição: em 1879, o Darwen, um clube formado por operários de uma fábrica de algodão, chegaria aos quartos-de-final da FA Cup, onde defrontariam os Old Etonians, o principal representante da alta sociedade, liderado por Arthur Kinnaird, que era o jogador com mais presenças em finais da Taça de Inglaterra.
Com a ajuda de Fergus Suter e Jimmy Love, dois operários de Glasgow recrutados ao Partik, o Darwen conseguiu levar a eliminatória para um segundo jogo, onde seriam facilmente derrotados, mas este seria o jogo que viria a desencadear uma série de factores, e que se tornou na chave que iria abrir o cadeado que fechava o futebol na classe da alta sociedade.
Antes de mais, o confronto entre estas duas equipas mostrado na série, fica marcado por um paradoxo no mínimo curioso: os Old Etonians, o clube dos cavalheiros, tinha um estilo de jogo muito físico e viril, que a meu entender, nada condiz com a postura cavalheiresca que os define.
Mais do que o estilo, o futebol também os tornava vaidosos e arrogantes, não apenas dentro de campo, mas também quando este se tornava tema de conversa nos jantares de grupo que faziam quase diariamente. Como chegou a dizer Alma, esposa de Arthur Kinnaird: “o futebol revela tudo o que há de mau nele”.
Por outro lado, no clube dos operários, a chegada de Fergus Suter e Jimmy Love à equipa introduziu um novo conceito de jogo na mesma, um estilo mais assente no passe e na organização de jogo. No entanto, a componente táctica é o ponto menos importante neste confronto que começaria a unir os diferentes estatutos sociais na série The English Game.
O que o Darwen fez no primeiro jogo dos quartos-de-final fez o povo acreditar no futebol, fê-los acreditar que este os levaria a um outro estatuto social que seria impossível obter de outra forma. Por isso, disponibilizaram-se a pagar a viagem da equipa para o jogo de desempate contra os Old Etonians. Viviam com pouco e precisavam do dinheiro, mas para eles, o futebol era única alegria e o único tubo de espace para se distraírem das vidas difíceis que levavam.
Porem, na classe dos cavalheiros, principalmente aos elementos da Football Association como Francis Marindin, não lhes agradava o facto de existirem cada vez mais clubes operários a competir na FA Cup, considerando-os como uma praga. Eles tinham orgulho no facto do futebol ser um desporto amador essencialmente praticado por cavalheiros e queriam a todo o custo que este não saísse da bolha em que estavam inseridos.
Ainda antes de haver futebol, já eram evidentes as diferenças entre cavalheiros e operários. Mas neste caso, havia um aspecto em que ambas as classes sociais estavam de acordo. Num tempo em que o profissionalismo ainda era ilegal no futebol, tanto cavalheiros como operários não gostavam do facto de haver jogadores a serem pagos para jogar. Daí que a chegada de Fergus Suter e Jimmy Love não fosse bem vista pelos restantes jogadores, mas isso seria apenas o início de o desencadear das rivalidades nesta série The English Game.
Após essa edição da FA Cup, apareceria um novo clube operário: o Blackburn. Com a ambição de fazer do Blackburn o primeiro clube operário a vencer a FA Cup, o seu presidente investiu muito dinheiro a recrutar os melhores jogadores do país, fazendo-lhes propostas irrecusáveis, sendo que Fergus Suter e Jimmy Love fizeram parte do rol. A ida de Suter e Love para o Blackburn caiu muito mal no povo de Darwen, que se sentiu traído e desencadeou uma batalha campal no amigável disputado entre as duas equipas.
Mas mais do que isso, os incidentes ocorridos no The English Game só reforçaram as ideias de grande parte dos cavalheiros, desde a ilegalidade do profissionalismo, ao facto de considerarem os operários como pessoas selvagens e pobres de espírito, que não tinham classe para dominar o futebol. Estes entendiam que jogadores que jogavam por dinheiro nunca teriam o mesmo empenho e dedicação que aqueles que jogavam por amor ao jogo e diziam orgulhosamente que depois de cada jogo, clubes como os Old Etonians e os Old Carthusians faziam parte da mesma equipa: os cavalheiros; enquanto os operários não abordavam o futebol da mesma forma, vivendo as rivalidades de forma muito mais intensa e fervorosa.
Entretanto, quando ocorreu a final da FA Cup em 1880 entre o Blackburn e os Old Etonians, o futebol já era muito mais do que um jogo, um confronto entre duas equipas. Era também o confronto entre estatutos sociais, onde jogadores e adeptos procuravam afirmar-se individualmente através do futebol. Por isso, a rivalidade que então existia entre o Darwen e o Blackburn foi posta de lado, reconhecendo que havia uma causa maior pela qual teriam de lutar.
Mais do que o resultado e a forma como ocorreu o jogo, é preciso perceber o impacto que o futebol começaria a causar na sociedade. Daí para a frente, o futebol profissional passou a ser legal, de modo a torna-lo num desporto para todos e não só para alguns, num desporto que promove a democracia e a igualdade entre classes sociais. Porque no final, mesmo que uns sejam cavalheiros e outros sejam operários, todos somos iguais.
E a série The English Game mostra-nos isso mesmo: a forma como o futebol começou a abrir as portas pelo mundo fora, tornando-se naquilo que é hoje: num negócio que envolve rios de dinheiro, mas também num desporto apaixonante que tem milhões de adeptos espalhados pelos quatro cantos da Terra."
Covid-19. Riscos de uma epidemia emocional
"As notícias de um surto de Covid-19 na China longínqua (mais um), foi vivido pela generalidade dos portugueses como se de um “tsunami” se tratasse – inicialmente, um tsunami que atingiria “apenas” a costa daquele país.
Contudo, o avassalador impacto em Itália (e as notícias que de lá foram chegando), a classificação do surto de Covid-19 como pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde, a instalação do Estado de Emergência em Portugal e a exploração massiva deste tema pelos media (e pelas fake news) arremessaram o quotidiano dos portugueses não só para um conjunto de alterações abruptas para as quais dificilmente estariam preparados mas também para um cenário de elevada turbulência emocional e marcada imprevisibilidade.
As inúmeras noticias de despedimentos e as raríssimas informações sobre diferentes sectores empresariais onde estão neste momento a surgir fenómenos de expansão (e consequente contratação de colaboradores), o destaque dado aos óbitos e não às recuperações, aos obstáculos e não às soluções ou, em boa medida, à forma como a população se tem organizado, correspondido às imposições de restrição de mobilidade ou, em muitos casos, à forma como se tem organizado espontaneamente em movimentos de solidariedade na comunidade, acabaram por vincar ainda mais instalação, por vezes subliminar, de quadros de medo e ansiedade generalizada na população.
Reféns do Medo
Naturalmente que, o quotidiano que nos cerca é denso, pesado e muitas serão as famílias impactadas, lamentavelmente pelo falecimento de familiares que entrarão para as estatísticas relacionadas com esta pandemia.
Importa, porém, e a título de mero exemplo, recordar que, em média, quatro mil famílias todos os anos enfrentam o luto dos seus familiares vitimas da gripe sazonal ou, num outro exemplo, um número largamente superior que vive esta mesma dor por efeitos de uma “pandemia silenciosa” (uso incorrecto certamente, mas apenas usado para acentuar o elevadíssimo numero de óbitos anual) que, apenas por resultar num processo mais longo e demorado (logo não abrupto), acaba por não intimidar de forma tão avassaladora a população – o cancro.
Vão, de facto, haver óbitos e o luto irá entrar na casa de muitos portugueses – este é um facto assente.
Contudo, este não será, por certo, o maior impacto na vida das famílias portuguesas – esse será, sem dúvida, determinado pela forma como conseguiremos “sobreviver” a este período e, em boa verdade, o tempo que iremos demorar a reerguer-nos do mesmo – e, aqui, como indivíduos, organizações e nação.
E, o medo paralisa, congela e, em muitas situações individualiza-nos e faz-nos desconfiar da nossa capacidade de adaptação, do outro, do meio – um medo que, enfim, nos divide.
Divide-nos, numa altura em que precisamos aprender a ser unidos – não por causa desta “crise”, mas porque foi algo que nunca conseguimos verdadeiramente aprender e, agora, temos de facto a oportunidade de o experienciar e integrar na nossa existência (de preferência, definitivamente).
Soluções?
Muitas, há muitas mesmo – especialmente centradas na forma como podemos organizar o nosso dia-a-dia, afinal a única coisa à qual devemos dedicar a nossa energia, uma vez que é o que de facto a única coisa que “controlamos”.
Inúmeras tem sido já as diretrizes que estão a ser lançadas, no sentido de dar suporte à comunidade para que possa atravessar este período com o menor prejuízo possível da sua saúde mental.
Ajudar os cidadãos a focarem-se num sem número de estratégias que ajudarão a implementar rotinas que urgem ser instaladas, para que a “nova normalidade” a que o estado de emergência obriga possa ser mais “fluidamente” activada, tem sido por isso uma preocupação e um foco de acção de diferentes organismos. Exemplo disso são a Direção Geral de Saúde (www.dgs.pt) ou a Ordem dos Psicólogos Portugueses (www.opp.pt), que tem feito um enorme esforço em munir a comunidade com um conjunto de recursos que possam devolver a normalidade “possível” ao quotidiano dos portugueses.
Desafios?
Muitos também – grandes crises agregam sempre enormes oportunidades.
Para o indivíduo, para as famílias, para as escolas, para as empresas, para a nossa experiência de estar e “ser” comunidade.
Desde logo, o fantasma da incerteza, seja acerca da nossa capacidade em nos protegermos (e aos nossos) da doença, da nossa capacidade em manter os empregos/subsistência ou da realidade que nos espera após este período, da “vida” que nos espera a seguir.
Uma incerteza que, sendo desde sempre nossa companheira, nem sempre a consideramos por ser mais seguro observar e procurar sinais de uma aparente estabilidade com as quais alimentamos a nossa necessidade de securização.
Uma incerteza que se constitui como o maior desafio à nossa confiança, à nossa crença acerca dos recursos que possamos ou não possuir para navegar em “aguas desconhecidas” por um tempo que, agora, nos parece indeterminado.
Uma incerteza que precisamos aceitar no nosso quotidiano, não como sinal de ameaça, mas como uma oportunidade de progressão.
E, aqui, curiosamente, o desporto transporta ensinamentos fundamentais pois, em alta competição, a incerteza é uma realidade quotidiana e a única “arma” possível é apostar na preparação e no treino específico que permita a optimização das capacidades de dia para dia (não deveríamos nós, fazer o mesmo?).
Agora, para a generalidade dos portugueses, o maior desafio (pouco perceptível para muitos por certo), centra-se de facto de saber “parar” – metaforicamente falando, que desafio transporta um estado de emergência ou uma quarentena? – e aproveitar para avaliar o rumo a que as nossas decisões e acções nos têm transportado e apostar fortemente em redirecionar as nossas vidas de forma mais planeada e consciente.
Em boa verdade, o maior e mais importante desafio espera-nos no “pós” pandemia – quando procurarmos voltar à “antiga” normalidade que, inevitavelmente, pelos contornos da experiência única que todos estamos a viver, já não nos “servirá” da mesma forma e, por essa mesma razão, nos conduzirá a uma nova “forma de crise”, essa sim mais impactante pelo potencial que tem de se arrastar muito mais no tempo.
Esta será uma realidade, principalmente para quem, no “durante”, não exigir de si uma reflexão, uma redefinição de prioridades e objectivos – inevitavelmente mais centrada no sujeito, na experiência de família e de comunidade.
Ou não fosse esta a maior aprendizagem a que estamos a ser expostos - a certeza da fragilidade que o isolamento nos traz e da força que em Comunidade obtemos."