sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Viva o desporto português, apesar de quem manda!


"Sentei-me a escrever estas linhas depois de assistir, televisivamente, à vitória de um português (Miguel Oliveira) num grande prémio de Motociclismo. Mais ainda: pude assistir a uma vitória total (“barba bigode e cabelo”, como se diz na gíria, depois da pole position, volta mais rápida e vitória) num circuito elogiado por todos, desde o Moto GP à F1 – um circuito português! – com o troféu de primeiro classificado entregue por outro português: Jorge Viegas, o elogiado presidente da Federação Internacional de Motociclismo. Sobrou a “ilusão” de que o Desporto Português transpira saúde! Nem que fosse só o motorizado, depois dos títulos mundiais de António Félix da Costa na Fórmula E e de Filipe Albuquerque na Resistência (LMP2).
A “ilusão” sai claramente reforçada se pensarmos no Vasco Vilaça (vice-campeão do mundo de Triatlo), nas recentes medalhas europeias do Judo e da Canoagem, no êxito do Andebol, no proverbial valor da Ginástica acrobática, na subida de rendimento da Equitação e do Surf, nos sucessos do sempre presente Atletismo, bem como nas incontornáveis conquistas das seleções de Futebol (dos vários “futebóis”). E que dizer do Ciclismo, seja de estrada, de pista ou de todo-o-terreno? Soube muito bem saborear o título de vice-campeão mundial do Tiago Ferreira, depois de, não há muito, o País ter ficado literalmente pregado à televisão a seguir, dia a dia, o João Almeida e o Rúben Guerreiro, durante o “Giro”, e o Rui Costa nas suas persistentes escapadelas na “Vuelta”, tão bem acompanhado pelos “manos” Ivo e Rui Oliveira e, claro, também pelo Nélson Oliveira e pelo Ricardo Vilela. A cereja no topo do bolo, essa, veio no velódromo de Plovdiv, que ficou marcado a verde e vermelho pelos campeões europeus Iuri Leitão e Ivo Oliveira, e pelos medalhados Rui Oliveira e Maria Martins. Fantástico!
Afinal, de um país cronicamente “adoentado”, parece emergir um desporto que, mesmo em tempos de pandemia, aparenta vitalidade, parece transpirar saúde e mostra inequívoca capacidade de vencer. Só faltou mostrá-la contra a França na Liga das Nações, mas, que diabo, esses eram os Campeões do Mundo…
Quase me senti feliz por, num momento em que praticamente tudo nos media é triste, negativo e mórbido, poder contribuir com uma prosa em tom festivo! Mas não há bela sem senão…
Refletindo mais atentamente no momento que atravessa o Desporto Português, não posso deixar de vender a alma ao diabo e de denunciar o enorme paradoxo que, estando à vista de todos, muito poucos sublinham: ao mesmo tempo que o Desporto Português se afirma nos palcos internacionais, as suas bases, os seus alicerces, parecem ruir, nomeadamente a formação desportiva, a massificação da prática e as estruturas basilares que o sustentam: os clubes. Entre os setores sociais onde a crise pandémica se vem metamorfoseando e agigantando enquanto severa crise social e económica, o setor desportivo é, seguramente, dos mais afetados, com consequências futuras de dimensões imprevisíveis, mas seguramente alarmantes à luz dos indicadores atuais. Hoje, muitos dos clubes nacionais, sobretudo muitos dos mais pequenos (as formiguinhas da formação desportiva de base!), estão em inequívoca e irreversível falência, ao mesmo tempo que, por isso, ou talvez como causa disso, o desporto de formação está imobilizado. São mais de 50% as licenças desportivas de praticante federado perdidas no desporto português devido à pandemia, ascendendo este número, nas modalidades “de pavilhão”, a quase 80%! Os técnicos desportivos não têm “clientes” e, portanto, não têm também “ordenado”; migram, geográfica e profissionalmente (se conseguirem…), de qualquer forma despindo do seu saber e experiência o quotidiano de partilha e de formação dos jovens atletas. O que tantos anos demorou a construir, desmorona-se aos nossos olhos! Técnicos desportivos, dos melhor formados no mundo (não nos esqueçamos que as faculdades de desporto portuguesas são as que ocupam melhores classificações nos rankings mundiais específicos!), enfrentam o desespero…
A solução ou, pelo menos, a mitigação do problema passa, naturalmente, pelas medidas que o Estado (o Governo) se disponha a proporcionar ao setor, necessariamente função da importância cultural, social, educativa e higiénica que efetivamente reconheça ao desporto. E esta importância é obvia e surpreendentemente “nenhuma”! Nenhuma, dado o desinvestimento anunciado, nenhuma dada a ausência de apoios aos clubes e aos profissionais de desporto, nenhuma pela silenciosa resposta aos “gritos” responsáveis e construtivos do setor. Nenhuma, mais uma vez, em claro contraponto ao que se observa nos países desenvolvidos; e por manifesta falta de visão e apoucamento cultural dos mesmos de sempre: dos que apregoam dirigir-nos para a convergência com os melhores, mas que recorrentemente falham e falham e falham...
Pesem embora as repetidas advertências, propostas, pedidos (súplicas?) do Comité Olímpico de Portugal, do Comité Paralímpico de Portugal e da Confederação do Desporto de Portugal, o Governo (e não só!) olimpicamente ignora o desporto. Que pena! Lá se esbate, de novo, o calor e a alegria com que nos aconchegam os feitos dos nossos heróis…"

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