quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Os homens brutos da Floresta de Sherwood


"1973, Junho. O Benfica conquistou o Troféu Vinho do Porto à custa de vitórias sobre o Nottingham Forest (3-0 na Luz) e Boavista (1-4 no Bessa. Eusébio marcou, no fim da festa, um dos golos mais excepcionais da sua carreira excepcional.

O Nottingham Forest é, para mim, um dos mais fascinantes clubes do mundo. A começar por aquele pormenor adorável de ter mais Taças dos Campeões (duas) nas suas vitrinas do que taça de campeão de Inglaterra (apenas uma). Fundado em 2 de Setembro de 1865 na cidade de Robin dos Bosques, tem um campo pequeno mas terrível, o City Ground, à beira do rio Trent, de onde se vê, a pouco mais de um quilómetro de distância, na outra margem, o estádio do grande rival, o Notts County.
Em 1995 e 1996, na altura a trabalhar para o jornal A Bola, viajei por toda a Inglaterra, tanto para fazer reportagens sobre os lugares onde a selecção nacional iria jogar como para cobrir o Mundialito de 1995 e, em seguida, o Euro 96. Fiquei com um carinho especial por Nottingham, uma daquelas cidades que nos recebem bem e nos fazem sentir em casa.
Ontem lembrei-me de Nottingham. E lembrei-me, igualmente, de que o Benfica tinha defrontado o Forest nos anos 70. Mais precisamente em 1973, dia 20 de Junho. Estava em jogo o Troféu Vinho do Porto, e Boavista e FC Porto também estavam na liça. Uma espécie de meia-final, portanto, o Benfica - Nottingham do Estádio da Luz, à hora tardia das 21h45. Sempre cavalheiros, os ingleses resolveram fazer uma pequena festa na embaixada para agradarem tanto aos encarnados de Lisboa como aos encarnados de Nottinghamshire. A bola rolaria depois... Ou pelo menos era ssim que deveria ter sido.

A dureza dos ingleses
Nessa noite da Luz, o Benfica desfez o Nottingham por 3-0, mas os moços da floresta de Sherwood jogaram com a brutalidade de um João Pequeno. O facto foi indesmentível e entrou pelos olhos adentro: estavam mais interessados em acertar nas pernas de Jordão, Eusébio, Nené e Jaime Graça do que propriamente na bola. Azar o deles, podemos dizer. Os encarnados levaram a coisa a peito e não estiveram para aturar aquela agressividade excessiva, mesmo à escala britânica que vê no jogo qualquer coisa de bruto. A forma como os médios e os avançados, sobretudo Jaime Graça e António Simões, resolveram embrulhar a violência contrária foi notável. Os passes curtos, bem medidos, de uma rapidez estonteante, enervaram os ingleses ao ponto de os deixarem como baratas ziguezagueantes: quando chegavam ao portador da bola, para fazerem a pressão individual, já a bola ela tinha mudado de pés, e assim por diante.
É preciso acrescentar que, nessa altura, o Nottingham Forest estava na II Divisão inglesa. Depois, com a chegada de um treinador formidando, Brian Clough, explodiu por entre as estrelas: em dois anos consecutivos foi campeão da II Divisão e da I Divisão. Depois conquistou a Taça dos Campeões. Mas ainda iriam ter de esperar mais oito anos até lá.
Nelinho, Eusébio e Jordão marcaram os golos do Benfica. A vitória foi tão categórica, que, no final, os jogadores do Nottingham acabariam por pedir desculpa por alguns exageros. Que tinham sido muitos, mas não aleijaram nenhum dos artistas lisboetas. Distribuíram-se handshakes, soaram umas palmadas nas costas, e prometeu-se um reencontro que nunca veio a acontecer.
Na outra meia-final, se assim lhe quisermos chamar, o Boavista bateu o FC Porto por 1-0. O golo de um tal Rufino, que tinha vindo da Guiné-Bissau à experiência, e não deixou marca por aí além.
Belíssimo Boavista esse, com Rogério, Salvador e Moinhos na frente. Sendo o nome do troféu Vinho do Porto, entende-se que a final tenha sido marcada para o Porto. Neste caso, para o Bessa. E aí se encontraram, frente a frente, Boavista e Benfica.
Enquanto o FC Porto batia o Nottingham Forest no desempate por grandes penalidades e atirava os ingleses para o último lugar da classificação do torneio, Eusébio voltava a ter uma das suas tardes plenas de magia. Os joelhos massacrados podiam fazê-lo sofrer de uma forma que pude testemunhar muitas vezes, seu amigo que fui. Mas, de repente, soltava-se dele o duende do Lorca, e ninguém era capaz de pará-lo.
O resultado da partida foi de 4-1 para o Benfica, golos de Eusébio, Jordão(2) e Vítor Martins contra um de Salvador.
Diz quem viu que  golo de Eusébio foi de dar arrepios na espinha. À beira do final, arrancou com a bola colada ao pé direito e começou a deixar adversários pregados ao chão. A cada passada, a sua velocidade aumentava como se se tratasse de uma locomotiva ganhando poder à medida que o carvão derrete nas caldeiras. Quando se encontrou com o guarda-redes pela frente e com o espaço cortado ao mínimo, decidiu picar a bola, assim com a parte de dentro do pé, num corte perfeito que levou a bola a bater na trave antes de entrar. Aimoré Moreira, o treinador do Boavista, figura ímpar no mundo do futebol, seleccionador campeão do mundo com o Brasil em 1962, não esconderia no final: 'O golo de Eusébio é das coisas mais extraordinárias que jamais vi num campo de futebol!' Falava quem sabia. E muito!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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