terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Vietname do Benfica


""Miúdo, és de que clube?"
"Sou do Benfica"
"Do Benfica!?!?
Então como é que isso aconteceu?"
Tinha 14 anos e ainda me recordo deste diálogo com um senhor de idade, algures no ano de 1998. Ficou-me na memória por ver na sua cara um honesto espanto de como era possível alguém assumir ser Benfiquista naquela altura, ainda por cima sem ponta de vergonha. Vivíamos os tempos de Vale e Azevedo, com um Benfica em ruínas que só era notícia pelas dívidas ao Manchester United por Poborsky ou por aparecerem misteriosos patrocínios a equipas de pólo aquático em Itália. Vivíamos os tempos do "Vietname". Essa perfeita designação que Pedro Ribeiro, conhecido radialista, utilizou para descrever os anos mais negros da História do Glorioso, em que todos os adeptos da águia sentiram que tiveram que ir à guerra numa selva perdida no meio do nada com uma pedra e uma lança nas mãos e da qual ficaram a precisar de apoio psicológico para o resto da vida. Mas entretanto já passaram 20 anos e podemos falar sobre ele. Certo? É até terapêutico.
Como surgiu o Vietname? Até 1994 o Benfica era indiscutivelmente o maior e melhor clube Português. Mas de forma esmagadora. Nesse ano o clube tinha 30 campeonatos em 60 disputados, ou seja, tinha tantas ligas como todos os outros clubes juntos. Nunca tinha estado mais de 4 anos sem ser campeão. Era o único duas vezes Campeão Europeu. Era o Rei e Senhor do futebol Português. Mas os sinais de menor fulgor já se começavam a sentir. Após o 25 de Abril houve uma clara descentralização do país e aos poucos o centro de decisão do futebol Português começou a fugir de Lisboa para o Norte, principalmente com o aparecimento de um fortíssimo rival liderado por Pinto da Costa e José Maria Pedroto. E o Benfica, talvez convencido de uma natural superioridade que achava que nunca se perderia, respondeu a essa mudança de paradigma com megalomania, aumentando a lotação da Luz para 120.000 lugares e com um investimento desmedido na procura de novo ceptro europeu, como resposta ao título do FC Porto em 1987. Mas a verdade é que por mais que o Benfica comprasse Valdo, Ricardo Gomes ou Magnusson a hegemonia continuava a fugir. Não querendo entrar em polémicas que nem os tribunais conseguiram provar, mas por algum motivo equipas com Futre, Rui Costa e Paulo Sousa não conseguiam ganhar a outra com André, Kostadinov ou Domingos. Até que, tal como Ícaro que voou demasiado perto do sol, o Benfica tanto inchou que rebentou financeiramente. Jorge de Brito, o mecenas do Benfica no início dos anos 90, teve que retirar o dinheiro que graciosamente emprestava ao clube e veio o famoso "Verão Quente" de 1993: Paulo Sousa e Pacheco rescindiram contrato, Futre foi vendido à pressa e mais não saíram por um triz. Aberta esta fenda, o clube ainda fez uma época mágica com o inesquecível título de 93/94, mas a dupla Damásio - Artur Jorge veio associar um rombo desportivo ao rombo financeiro. Repare-se que quando Artur Jorge é despedido em setembro de 1995 já só sobravam 3 jogadores do plantel campeão em 1994: Kenedy, Hélder e João Pinto!
Mário Wilson virou o bombeiro de serviço para as crises da águia e ainda nos ofereceu uma tarde bonita no Jamor, com a conquista da Taça de Portugal em 1996, mas até essa foi manchada com o imperdoável very-light que vitimou um adepto Sportinguista. Seguiu-se Paulo Autuori com a sua famosa "tática do pirilau" que resultou numa manita histórica do Porto na Luz para a Supertaça e Manuel José que se tornou no único treinador da História do clube a ter menos de 50% de vitórias. E ainda perdeu uma final no Jamor para o Boavista. O clube estava em desespero e é nestas alturas que surgem os populistas com as promessas de mundos e fundos. Surgiu assim em cena Vale e Azevedo, com a garantia miraculosa de resolver todos os problemas financeiros do clube e ainda reforçar a equipa de futebol com Rui Costa e a espinha dorsal da Seleção Nacional. Bem sabemos que era tudo mentira e ainda mais afundou o clube. Foram 3 anos de desvarios, roubos, polémicas, contratos rasgados e a construção das equipas mais medíocres que há memória. Desde a "brigada do reumático" de Souness à miserável equipa que perdeu se...set...bom, algo que aconteceu lá para os lados de Vigo. Mesmo assim, tal é a força do populismo, foram necessários o apoio de Eusébio, a promessa de Jardel e um debate para maiores de 18 para convencer os Benfiquistas a mudarem de rumo. Manuel Vilarinho apareceu para salvar o Glorioso quando estava prestes a soar o bombo da derrocada final. Já com este, o clube ainda atingiu a pior classificação de sempre, um inacreditável 6º lugar, mas aos poucos as tropas começaram a fugir do Vietname. Simão Sabrosa foi o general dentro de campo, a que se foram juntando Ricardo Rocha, Luisão, Petit ou Nuno Gomes para terminar com a desastrosa guerra. Apesar de erros estratégicos crassos continuarem a ser cometidos (que poderiam ter feito o clube saltar imensos degraus) como a não contratação do já referido Mário Jardel ou a perca de José Mourinho para o FC Porto, e os pobres soldados continuarem a sofrer com alguns mísseis sem aviso (Gondomar, estou a olhar para ti), o Benfica alcançou dois segundos lugares consecutivos, prova de recuperação desportiva, e o armistício, a machadada final ao Vietname, foi assinada a um 16 de Maio de 2004, quando o clube regressou aos títulos, e logo contra a incrível Armada Mourinhista, prestes a ser campeã europeia. Naquela tarde no Jamor, sob o espírito de Miki Fehér, todos sentimos que podia ainda haver muito caminho pela frente, mas o pior tinha ficado para trás. Tanto que no ano seguinte acabou a travessia no deserto, com aquele título de Trapattoni. Esfarrapados, mas Campeões. Tinham passado 10 longas temporadas para o clube que nunca tinha ficado mais de 4 sem vencer
 Como foi referido no início do texto, já 20 anos passaram desde o Vietname, mas os seus efeitos ainda se sentem e muito. E a sua pior consequência acaba por nem ser os dez anos sem conquistas de relevo, algo que acontece a todos os clubes no mundo, mas sim o modo como alterou a perspectiva com que o clube é olhado, até pelos seus próprios responsáveis e significativa franja de adeptos. O clube que era o Rei e Senhor do futebol Português, que era julgado sob uma exigência extrema, os herdeiros de Eusébio que não podiam ficar um ano que fosse sem conquistas passou a ser um clube que já aceita com uma certa naturalidade perder títulos para o FC Porto, perder jogos para o FC Porto e que se compara muitas vezes ao Vietname para achar que o que existe agora já é bem bom. Que acha até uma ingratidão ou irresponsabilidade alguém dizer o contrário. O Benfica, que tem o dobro dos adeptos dos seus rivais (com o diferencial gigantesco que isso tem ou devia ter nas receitas) ainda arranja vinte anos depois desculpas no Vietname para justificar a incompetência da derrota do presente.
Uma nota final: No ano de 2000 o clube teve uma percentagem de vitórias de 50% e em 2001 de 43%. Quão assustador é verificar que neste ano de 2020 também só tem 57% de vitórias? Já me bastou um Vietname, Benfica..."

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