segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Da apetência pelo recurso à fraude!


"A ambição faz parte do ser humano. A ânsia do poder, o desejo da vitória e do sucesso, o almejo da glória e a aspiração ao estrelato levam o mesmo a tentar alcandorar-se ao nível dos deuses – senão tornar-se em próprio deus como nos diz Yuval Harari (1). O mesmo Harari que também nos diz que a ganância é inerente ao ser humano. Razões suficientes para que quaisquer meios sirvam para alcançar os fins. Os fins justificam então esses meios. Mas sabendo-se que o topo está lá, que é uma realidade atingível, os meios justificam os fins a serem alcançados.
Com o cancelamento de vários eventos competitivos devido à pandemia, as diferentes modalidades criaram competições virtuais – ciclismo, salto com vara, karate e futebol entre outras – apresentando mesmo atletas reais a competir. Daniel Abt, piloto oficial da Audi na Fórmula E, na ‘Race at home Challenge’, corrida virtual de automóveis, conseguiu através de vários artifícios fazer-se substituir por um jogador profissional de e-Sports, Lorenz Hoerzing, acabando por se classificar em 3º lugar nesta prova. Daniel Abt foi desclassificado, sancionado com uma coima de 10.000€ (a qual reverteria para fins sociais) e, laboralmente foi suspenso pela própria Audi Sport. Aconteceu em Maio de 2020!
O desporto é palco profícuo para a existência de fraudes. Apesar de presentes em todas as modalidades, são mais frequentes no atletismo, no ciclismo, e no futebol.
No atletismo e no ciclismo o mais frequente é os desportistas tentarem encurtar os percursos por outro meio, repartir a distância por vários estafetas ou usar dorsais e chips alheios ou utilizarem outros artifícios para diminuírem os seus tempos. Frequente também a fraude através da utilização de prémios (ou mesmo compra monetária) a fim de alcançar resultados mais glorificantes (etapas no ciclismo há que foram negociadas).
Se em 1904, nos J. O. de St. Louis, depois do vencedor da maratona ser felicitado pela filha do presidente Roosevelt, os juízes descobriram que ele tinha cumprido parte do percurso de automóvel, em 1980 na maratona de Boston a vencedora ao alcançar o terceiro melhor tempo da história apenas correu cerca de 1,6 quilómetros. A sua imagem não aparece nos vídeos ou nas cerca de dez mil fotos tiradas nos primeiros 40 quilómetros da corrida. Aconteceu!
Se em 1904, no ‘Tour de France’, um ciclista viajou de comboio durante uma etapa, em 2015 um outro foi desclassificado depois de ter sido apanhado a agarrar-se a um carro na ‘Vuelta’. Também aconteceu!
Na esgrima, conhecemos o caso do atirador que tinha um botão instalado no punho da sua espada para, ao ser accionado, fazer acender a luz do marcador. Aconteceu nos J. O. de Montreal em 1976.
Menos conhecido é aquele caso do membro do júri de atletismo que aproveitou uma cerimónia protocolar realizada antes do último salto de um atleta, para medir e registar em memória, no instrumento de medida, a marca de 8,38 metros, que corresponderia ao terceiro lugar. Quando o atleta saltou, esse juiz apenas enviou para o quadro electrónico o resultado que estava em memória. Aconteceu em Roma nos Campeonatos do Mundo de atletismo, em 1987!
Nos Estados Unidos imensos são os casos em que jogadores de basebol utilizaram tacos viciados. Foram revelados em 1994, em 1996, em 1997, em 2003 e em 2014 pelo menos. Aconteceram!
Nos J.O. de Sydney 2000, a medalha de ouro foi retirada à equipa paralímpica de basquetebol de Espanha após ter sido descoberto que 10 dos 12 basquetebolistas se tinham feito passar por deficientes. 
No mundial de judo de 2003, os adversários de um japonês queixaram-se por não conseguirem efectuar as pegas nos combates que efectuaram com o mesmo dado que o seu fato se encontrava impregnado com algo que tornava essa pega escorregadia. Aconteceu!
Em França, nesse mesmo ano, o pai de dois tenistas franceses introduzia antidepressivos diluídos em garrafas de água dos adversários dos seus filhos que trocava momentos antes dos jogos ou dos treinos. A morte num acidente de viação de um jovem professor de ténis, depois de ter jogado com o filho mais velho, em cujo corpo foi encontrada uma substância que este nunca tinha consumido, veio revelar estas situações. Em 2006 acabou por ser condenado a oito anos de prisão. Também aconteceu!
Em 2004 o Iraklis Clube de Salónica acusou o Akratitos de Atenas de ter juntado uma substância às suas garrafas de água durante um jogo. Facto posteriormente comprovado por análises laboratoriais! 
Em 2007, Walter Schachener reconheceu, 25 anos depois, que existiu fraude no mundial de futebol de 1982. O resultado do jogo entre a Alemanha e a Áustria, foi combinado (1-0) de modo a seguirem em frente ambas as equipas em detrimento da Argélia. Schachener chamou-lhe fraude, Hans-Peter Briegel preferiu chamar-lhe “pacto tácito de não-agressão”. Aconteceu!
Em 2009 na Fórmula Um e no râguebi foram conhecidos casos de fraudes, tal como em 2012 no badmínton ou em 2015 na NFL (2).
E sobre o mundial de 1986 – numa altura em que Diego Maradona nos deixa – muitos abordaram o golo da «mão de Deus», nos quartos-de-final no México, entre a Argentina e a Inglaterra – talvez não a maior fraude de sempre, mas a mais conhecida – porque foram obrigados a abordar a genialidade do segundo golo desse encontro. Mas essa obra-prima não elimina a fraude anterior: a mão de Maradona chega mais alto que as mãos de Shilton e Ali Bin Nasser valida o golo. Esta a fraude maior cometida pelo astro. Em 2005, num dos programas «La noche del 10» – apresentado pelo próprio Maradona –, transmitido pelo canal 13 da TV Argentina, com Pelé presente como seu convidado, Maradona afirmou que os jogadores brasileiros tinham bebido água com calmantes, oferecida pelos argentinos no intervalo do jogo do mundial entre o Brasil e a Argentina, em Itália em 1990, e ganho por estes últimos. Só ele o poderia confirmar… Dois factos que aconteceram!
Em Portugal também já tivemos «a mão de Vata» em 1990, na meia-final da Taça dos Clubes Campeões Europeus entre o Benfica e o Marselha… E aqui aconteceu mais uma fraude! E validada também!
Mas os métodos refinam-se. E refinam-se a par da evolução da civilização e da evolução tecnológica. Se Sorel (3) nos dizia que a ferocidade antiga tendia a ser substituída pela astúcia, por outro lado Foucault (4) afirmava que havia uma passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude. Assim se chega ao «doping mecânico» em que a fraude se consubstancia na introdução de pequenos motores com as respectivas baterias dissimulados nas bicicletas dos ciclistas. Aconteceu com Femke van den Driessche em 2016 e com Cyril Fontaine em 2017.
A competição exacerbada potencia o recurso à fraude. A fraude não é mais do que aquilo que Jack Lewis (5) define como sendo o impulso básico do ser humano: “maximizar os lucros sem olhar ao impacto negativo que isso pode ter nos parceiros”. O desporto desenvolve nos competidores, nos treinadores e nos dirigentes – não em todos felizmente – a apetência pelo recurso à fraude. É uma das facetas do alcançar a vitória a qualquer preço. E a fraude prolifera no desporto mesmo que não detectada, o que não faz com que não deixe de ser fraude. E abstemo-nos de falar em suborno monetário ou em potencialização bioquímica do rendimento…"

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