terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A fraca lição dos mestres...


"Em Fevereiro de 1948, o Rangers veio a Lisboa para defrontar o Benfica no Estádio Nacional. Os cronistas foram unânimes em reconhecer a superioridade do jogo dos encarnados, mas, felizmente, a velha pecha de não chutar à baliza condenou-os a uma derrota por 0-3.

Fevereiro de 1948. Lisboa deixava-se encantar pelo futebol. E pela presença dos mestres ingleses. Vinha aí o famosíssimo Arsenal, o clube que Herbert Chapman alterara para sempre com a introdução do WM, e vinham também uns escoceses de nome Rangers, da cidade de Glasgow.
Vêem como a história se repete? Sobretudo neste jogo mágico no qual tudo pode acontecer.
Rangers outra vez. Já falei aqui de uma ida do Benfica a Glasgow para defrontar o Rangers em Ibrox Park, tal como aconteceu nesta semana para a Liga Europa. Nesse tempo era um particular. Ou amigável, como se costumava escrever. Agora falo da visita do Rangers a Lisboa. Dias antes do Arsenal. Semana em cheio!
E tudo começou com uma desilusão.
'Os Rangers de Glasgow tinham a oportunidade de afirmar a sua elevada carreira futebolística. Mas, afinal, comentaram-se com pouco e não satisfizeram a afición e o público que, desejando ver a sua equipa maravilhosa, teve pela frente, no seu conceito, apenas um bom grupo de futebol'. Quem escrevia assim era Tavares da Silva, um daqueles homens que, como gostam de afirmar os britânicos, sabiam uma ou duas coisas sobre futebol.
O problema, diga-se já aqui, é que, mesmo sem jogar grande coisa, os escoceses bateram o Benfica por 0-3. Doloroso, no mínimo.
E injustíssimo, segundo o nosso cronista, um dos maiores de sempre da imprensa portuguesa: 'Na primeira parte, colhendo o favor do vento, que soprava forte, instalou-se no meio-campo dos de Glasgow, e a toada era de ataque deliberado dos portugueses e de defesa cerrada dos homens da Escócia'. Ah! Mas o golo que não apareceu... Durante tantos e tantos anos nos queixámos, por aqui, neste país que, como disse um dia Ruy Belo, é o que o mar quer, da falta de objectividade dos nossos jogadores. Sempre mais uma finta, mais um requinte, mais um cerzido ou uma renda de bilros...
'Os escoceses aguentaram o vendaval benfiquense. E batiam-se na defesa com valentia. Mas isso parecia tão insuficiente para caracterizar uma das melhores equipas do mundo...'
Futebol à toa, jogadas de ataque desconcertadas, contemplação atenta dos movimentos contrários: nada mais. A desilusão estava aí estampada em letras de imprensa e também na cara dos adeptos que tinham ido em romaria ao Estádio Nacional.

O castigo!
Voltemos a Tavares da Silva. É sempre um prazer relê-lo. 'Na segunda parte, os jogadores do Benfica deram uma verdadeira lição de futebol de conjunto. Não se limitaram, nos lances de apuro, a resolver os problemas de qualquer forma e ao acaso, mas solucionando esses problemas numa consciência perfeita do jogo a desenvolver, e a bola era depositada na relva, o passe medido para a unidade desmarcada, os segmentos ligando-se uns aos outros num ritmo vivo e rápido'. Desculpem-me a interrupção, sigo já, dentro de momentos - que bom ler prosa escorreita sobre futebol sem tiques de intelectualidade bacoca e expressões que ninguém entende à mistura com os malditos números de telefone que passaram, de há um tempo a esta parte, a brotar gratuitamente das bocas de comentadores ininteligíveis, como os 4.4.2, 3.5.2, 4.3.3, com losangos e triângulos ao barulho. Foi apenas um desabafo. Volto ao Benfica-Rangers.
O Benfica jogava melhor e de forma mais conseguida, pelo que se depreende das palavras do cronista. Mas não chegou. E ele explica porquê: 'À medida que os jogadores do Benfica se aproximavam da baliza de Brown, a clareza como que desaparecia, tornando-se o futebol mais confuso nas dobragens repetidas e desnecessárias de passes e na insistência em dribles que escondiam a falta de remate'. Lá está! O futebol-crochet tanto ao gosto dos portugueses. Que tinha custos. E que custos.
Três golos para o Rangers. Thorton(35'), Duncasan(84' e 85').
Naquela frente atacante categorizada dos encarnados, com Melão, Arsénio, Julinho, Corona e Baptista, não houve um repente que resultasse numa alegria. 'Se o futebol do Benfica tivesse acabamento, os Rangers teriam levado para contar para a sua terra. Mas, por um pado, a falta de remate é característica do futebol português e, por outro, a defesa escocesa mostrou-se como o ponto mais forte da equipa'.
Perdeu, portanto, o Benfica, naquele que foi o seu primeiro encontro de sempre com o Rangers. Por culpa própria, já que passou a maior parte do tempo com a bola no meio-campo do adversário. E Tavares da Silva fechava assim o seu magnífico trabalho de observação e crítica: 'O Rangers com a garantia de um árbitro inglês (Kenney), e uma arbitragem serena e conscienciosa, venceu por 0-3, mas todos gostaríamos que, além de ter ganho, nos desse uma lição de futebol e que essa lição não corresse a cargo do Benfica. No team lisboeta, de notável homogeneidade, todos os elementos jogaram com senhoria, não estando no nosso critério de justiça, desta vez, a citação de nomes. O Benfica prestou um bom serviço ao jogo'. Apesar disso, Pinto Machado, o guarda-redes, saiu de campo de cabeça baixa..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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