sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Nenhum morrerá tão grande


"Quero lá saber se o homem era imperfeito, interessam-me tanto os excessos do Maradona como as namoradas do Neymar, os impostos do Messi, a família do Cristiano, os quilos do Fenómeno ou os passaportes do Dinho Gaúcho (e assim acho que juntei todos os maiores génios que se seguiram numa frase apenas, que me desculpe o Zidane, certinho na vida como na silhueta, com o maior pecado público cometido ainda em campo, na cabeçada a Materrazzi). Ou seja, o que Don Diego pensava de política, por exemplo, conta para mim tanto como o que o senhor do mini-mercado sugere para o combate à pandemia. Como alguém disse: para quê discutir o que fez com a vida dele, se fez tantos pelas nossas?
Há muito que deixei, aliás, de ver nos jogadores entidades aparentadas ao divino, referências para lá dos jogos, porque nem os maiores génios do relvado são garantia de pensamento elaborado fora dele. Arrumei os meus ídolos no sítio certo: em posters onde surgem de calções e chuteiras. Ou nas memórias em vídeo, com obras de arte desenhadas ao pontapé. E aí são sagrados, intocáveis. Não junte o homem o que deus desuniu, quando permite a poucos eleitos o altar das emoções.
No dia em que morreu Maradona – e tenho de o repetir, porque me custa aceitar: o Maradona morreu – vejo gente que gasta minutos longos para falar de dependência de drogas e de comportamentos errantes de um cidadão? Exemplos desses há tantos milhões, infelizmente. Não faz mais sentido celebrar um talento como não houve outro? Um argentino anónimo diz que quando faltava até a comida na mesa, Maradona foi a alegria dos mais pobres. Valdano, companheiro de ataque na subida ao Olimpo em 86, e que pensa ainda melhor fora dos relvados do que executava dentro dele, não duvida nem por um segundo que privou com o melhor de todos e viu, ali ao lado e a olho nu, um génio em laboração. E despede-se do “grande capitão”, porque Maradona também foi isso - além da intuição pura, para pensar e executar, que o tornou incomparável -, o líder solidário, se necessário rebelde perante os poderes, sempre comprometido com o grupo que ia guiar e fazer acreditar, contraste profundo com um futebol progressivamente mais egoísta e repleto de talentos com umbigo dilatado.
Recuso também a análise feita em manga de alpaca, sempre agarrada a números, golos, títulos ou prémios, que denunciam a ausência de uma paixão verdadeira. Não se pode medir Maradona, porque não há números para preencher a escala de encantamento e emoção que nos deu. A estatística pode dizer que ele só ganhou dois campeonatos e uma prova europeia? Fê-lo num clube, o Nápoles, que nunca tinha vencido algo do género e não voltou a fazê-lo, 30 anos passados desde que deixou o San Paolo. Agora o estádio dele vai passar a ter o nome dele. Nada mais justo. Também só ergueu uma Taça do Rei pelo Barcelona? Vale a pena ver, ver mesmo, que há imagens disso, como Diego foi blaugrana no tempo em que driblar com qualidade era tão relevante como fugir às agressões dos muitos Goicoecheas que encontrou. Uma das duas épocas na Catalunha perdeu-a, em grande parte, a recuperar dessa fratura da tíbia. Mas já antes, entre os 16 e os 21 anos, tinha cinco épocas de registos incríveis, no Argentinos e no Boca. Já era o génio capaz de ganhar jogos sozinho e fê-lo até ao ponto mais alto, num Mundial, como sonhava desde criança.
Jogou quatro mundiais mas deveria ter jogado cinco, que em 1978 já era o maior talento na Argentina, só que Menotti, desconfiado da juventude, como tantos em todos os tempos, não lhe antecipou o trono planetário. Jogou quatro mundiais mas na prática só jogou dois, com saídas prematuras em 82, expulso (bem) por um árbitro, e em 94, expulso (continuo convencido que mal) pela FIFA. Nos dois que jogou mesmo foi sempre até ao fim, festejou uma vez, chorou na outra, mas guiou até ao último momento grupos de rapazes que sem ele seriam coletivos banais. É também por isso que Diego Armando Maradona é incomparável e irrepetível, sinónimo de futebol enquanto espaço de talento, superação e paixão. Ninguém viveu o jogo como ele. Nenhum futebolista morrerá tão grande como ele."

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