terça-feira, 24 de novembro de 2020

Aquela tarde solheira do Lumiar


"Natural de Vila Real de Santo António, Mário da Rosa chegou ao Benfica em 1938 vindo de Casablanca, para onde os seus pais tinham emigrado. Nunca foi um guarda-redes titular indiscutível, mas merece o seu espaço nestas páginas que procuram que nenhum daqueles que se bateram de águia ao peito caia no poço do olvido

Terça-feira, 20 de Junho de 1945. A revista Stadium, uma publicação verdadeiramente revolucionária para a época sobretudo pelo descaramento com que enchia as primeiras páginas com imagens extraordinárias, ocupando-as de alto a abaixo com as grandes figuras do fim de semana, fosse em que desporto fosse, recusando as grilhetas do futebol, apresentava a fotografia do herói do dérbi entre Sporting e Benfica. A legenda dizia: 'Rosa, keeper do Benfica cuja exibição no domingo passado foi o melhor factor para a vitória do seu clube'.
Rosa: Mário da Rosa Gomes, nascido no dia 25 de Abril de 1917, em Vila Real de Santo António. Não tenho falado muito dele nestas vossas páginas, e a falta é minha. Ao fim de mais de dez anos seguidos a torturar os estimados leitores com episódios soltos da história do Benfica e daqueles que vestiram a camisola rubra de águia ao peito, já era altura de me penitenciar pela ausência de vários deles. Chegou a Lisboa em 1938 para tentar a sua sorte no Benfica e foi ficando. Foram nove épocas de enfiada, e não há muitos que se possam gabar de tanta resiliência.
Não se pode dizer que tenha sido um titular firme. Houve épocas em que foi pouco utilizado. Mesmo muito pouco utilizado.
Nascido lá nesse canto lusitano do sudeste, Espanha quase já, onde existe precisamente um Lusitano, o Lusitano de Vila Real de Santo António, Rosa nunca vestiu a camisola daqueles que muitos, por brincadeira, chamam o Zulitano. Foi cedo para Marrocos, com os pais. Viveu em Casablanca, tentou a sua sorte em clubes sem grande expressão como o Roches Noires e o Union Sportive, foi-se enrijando com os voos temerários em terra batida, rasgou os cotovelos ao ponto de deixar de dar importância às cicatrizes que se acumulavam, apaixonou-se pelo jogo dos ingleses a ponto de desejar mais e mais e mais.

Lisboa!
O seu mais e mais e mais estava em Lisboa. Era o Benfica. Foi lá que se tornou famoso, mesmo que sem ter sido, como deixei registado, um titular daqueles à séria que não havia treinador arrancasse de debaixo dos postes. Mas fez épocas de estalo, isso fez.
Esse jogo frente ao Sporting, a contar para a Taça de Portugal, leva o seu nome registado numa placa de prata, mesmo nestas linhas. A partida teve lugar no dia 17 de Junho. Os jornalistas da Stadium tiveram tempo de sobra para digerir tudo o que se passara. No Stadium do Lumiar, o Benfica impusera-se por 2-1, com golos de Alcobia e Julinho, que chegaram ao 2-0, sendo depois Rosa batido por um pontapé venenoso de Jesus Correia.
Pelo meio, o Mário de Vila Real de Santo António agarrou a oportunidade de ficar para a história, ignorando a violenta ventania que soprava nos céus do Lumiar. 'Bem sabemos que a luta exerce grande atracção no jogador. Mas isso não destrói aquela afirmação de haver uns mais bem preparados para ela do que outros em determinadas situações. Por isso se exige ao praticante disciplina de vida e preparação cuidadosa, não só para ele poder suportar sem prejuízo os grandes esforços, mas ainda para durar o mais possível. E jogos como o que se disputou, no passado domingo, no Lumiar causam desgaste físico evidente. Por isso não é de somenos citar Rosa como aquele que, acima de todos, manteve a frescura e a concentração necessárias para uma exibição sem mácula, servindo de pilar para toda a construção defensiva da equipa do Benfica', escreveu o enorme Tavares da Silva, mestre de mestres.
O jogo foi duro, agressivo. Não estivessem frente a frente os dois grupos portugueses cuja rivalidade se instala por todo este país que é o que o mar não quer, como dizia Ruy Belo, um dos desiludidos da vida-vidinha inventada por Alexandre O'Neill. Rosa foi imperial, a sua tranquilidade espalhou-se pelos companheiros como um contágio. Terá sido a sua melhor exibição com a águia pousada em cima do coração? Muito provavelmente. Não apenas pelos pormenores felinos dos seus gestos, mas também por ser contra quem foi. Já era mais do que tempo de trazer Rosa para este arquivo semanal de grandes momentos e grandes personagens. Tudo fez para merecer que não caia nunca na ingratidão escura do poço do olvido."

Afonso de Melo, in O Benfica

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