terça-feira, 6 de outubro de 2020

Uma ave pernalta voando nos céus da Luz


"Mozer foi, muito provavelmente, durante algum tempo, o melhor defesa-central do mundo. Tenho falta das nossas tardes de conversa, daquele jeito que ele tem de saber tudo, mas tudo, sobre a posição que ocupava em campo...

Ainda não consegui chegar à conclusão se é fácil ou difícil escrever sobre os amigos. Fico expectante. Por um lado, há tudo aquilo que nos liga pronto a entrar pelas páginas brancas; por outro, não há a distância que a objectividade talvez devesse tomar conta dos textos. Não há forma de falar dos amigos sem ser pelas letras do coração.
Já há um tempo que não estou com um amigo chamado Mozer, acabado de chegar aos 60 anos, apenas muito ligeiramente mais velho do que eu. No Restaurante Calcutá, na Rua do Norte, no Bairro Alto, sentámo-nos na companhia do Lauro Antunes e do Hiren Tambaclal a ver um jogo do Benfica. Não me recordo de qual. Recordo-me, isso, sim, de que o tempo foi passando naquele bate-boca tão carioca, própria de uma figura excepcional que nasceu no Rio de Janeiro no dia 19 de Setembro de 1960.
Mesmo que puxe pelas meninges, também não sei dizer quando é que conheci José Carlos Nepomuceno Mozer. Dizer de facto consumado, como está bem de ver, data e hora e o diabo a quatro. Sei que foi há muito tempo, e, daí para cá, mesmo que não estejamos juntos muitas vezes, a sua companhia é sempre um prazer renovado.
Vê-lo jogar era encantador. Dificilmente algum central foi mais elegante na passada larga e confiante. Quando fez dupla com Ricardo Gomes, outro daqueles com classe à sua altura, eu costumava gastar a minha atenção a diferenciá-los. A passada de Ricardo era curta. Ele tinha um centro de gravidade diferente, isto é, o tronco ligeiramente mais comprido do que as pernas. Algo que lhe dava características divergente. Mozer, por seu lado, provocava lances nos quais parecia só ter pernas. Quando arrancava em velocidade, o vento era seu aliado, seu irmão, seu companheiro na busca da caça que jamais lhe fugia.

Aquele abraço!
Mozer fez 60 anos, e eu não acredito. Ainda consigo vê-lo com a sua cara de morcego, enfurecido, gritando ordens para dentro do campo, chamando à atenção os colegas, assustando adversários. havia nele a tendência natural para a chefia. Como não percebê-lo de imediato, mal tornava a sua posição sobre o relvado e olhava em redor, soberano, altivo? Depois voava. Vocês lembram-se de como Mozer voava? O céu convidava-o a subir pelas escadas de mármore da sua inolvidável força, e ele galgava o espaço, sentava-se numa nuvem qualquer à espera do momento em que iria tomar a decisão de cabecear a bola para os pés de um companheiro ou de afastar apenas do lugar embaraçoso de uma situação complicada. Mozer, Nepomuceno: guerreiro imperial de samurais de catanas afiadas. Senhor da guerra.
Mozer gostava de guerra.
Mozer gostava de guerras.
Por momentos, parecia desfigurar-se a sentir que o ponto mais baixo em que se pode atingir um adversário é o das amígdalas. A bola sofria, e o opositor também.
Mozer não brincava.
Mozer não era personagem de uma pantomima.
Mozer era um divindade que abria as asas vermelhas sobre a grande área da qual era o mestre, proprietário sabedor, atento e inevitável. Nesse voo de condor, que abrangeria as montanhas mais altas dos Andes, recolhia milhares e milhares de adeptos sob a sua protecção. 'Ah! Está lá o Mozer...', dizia o murmúrio que ecoava nas bancadas. 'Está lá o Mozer' era sinónimo de infabilidade. Sim, o Mozer estava lá, e de que maneira. O Mozer estava lá no seu trono de veludo rubro, com o seu olhar perscrutante que conseguia adivinhar o perigo que se acumulava em negras nuvens distantes.
Mozer, meu amigo, companheiro, tenho saudades de te ver arrancar com a bola no pé, da tua passada incomparável, do receio que impunhas aos inimigos da tua tranquilidade, da opção serena, da escolha correcta, sempre tão correcta. E, de ficarmos à conversa sobre futebol, tu que sabes tudo de futebol e sabias todos os segredos dessa tarefa exigente que era a de ser, muito provavelmente (eu aposto nisso), o melhor defesa-centeal do mundo. Num destes dias temos de repetir o bate-boca tão ao jeito do teu Rio de Janeiro, princesa do mar, mesmo que apenas ali, na Rua do Norte, no Bairro Alto, onde as recordações se acumulam numa mesa à mistura com uns copos de cerveja. Para que a gente não se esqueça. Para que a gente nunca se esqueça. Tal como jamais poderei esquecer aquele teu jeito de ave pernalta voando pelos céus da Luz."

Afonso de Melo, in O Benfica

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