terça-feira, 27 de outubro de 2020

Um quarto só dele onde cabemos todos


"Há três semanas quase ninguém tinha ouvido falar de João Almeida. Hoje, sobretudo para os fãs de ciclismo, ele é um herói, o homem que reconciliou muitos adeptos amargurados com a modalidade.
O ciclismo sobreviveu aos grandes escândalos de doping, sobreviveu ao batoteiro-mor Lance Armstrong, sobreviveu a uma cultura de batota disseminada por quase todo o pelotão, mas a paixão dos adeptos esmoreceu. O hábito do engano deu cabo do fascínio de muita gente pelo mais nobre dos desportos, aquele que suscita uma admiração genufletida pelos sacrifícios e pela dureza. Noutros desportos pode-se apreciar a beleza, a elegância, a graciosidade, a inteligência. No ciclismo venera-se, acima de tudo, a capacidade de sofrimento, o ciclista que parece estar nas últimas e vai buscar forças ao fundo do poço e chega exausto à meta no cimo de uma montanha, a morada olímpica dos deuses, depois de quilómetros e quilómetros de estradas empinadas, de chuva, vento ou sol.
É certo que se pode valorizar a inteligência estratégica de um ciclista ou de uma equipa, a forma como poupam as forças para desferir um ataque ou como desgastam os adversários, mas no final tudo se reduz ao que cada um tem para dar, ao coração do indivíduo, à sua ambição e resistência. E os verdadeiros adeptos do ciclismo sabem reconhecê-lo. Quando jogam limpo, todos os ciclistas são dignos de admiração. A multidão no Tourmalet, nos Lagos de Covadonga, na Senhora da Graça, aplaude os que vão à frente, mas não vira as costas aos que vêm mais atrás. Vê a dureza da montanha “estampada nos rostos”, como dizem os comentadores, e respeita-os por isso. Quando se dá tudo, não há derrotados. Não há assobios, não há apupos, não há vilões. Não há clubismo. Quem acompanha as etapas mais difíceis e encontra os familiares de um dos ciclistas, sabe que prevalece o respeito entre todos. Não há inimigos. É essa a beleza do ciclismo e é por isso que a batota aqui dói mais do que aos adeptos de outras modalidades. É uma traição tão dolorosa que é difícil, quase impossível, restaurar a confiança.
Foi esse o grande mérito de João Almeida nestas três semanas de Giro: trazer de volta ao ciclismo muitos adeptos portugueses que se tinham afastado da modalidade. Haveria alguns adeptos ocasionais, dos que desligaram a partir do momento em que perceberam que o ciclista português não ia chegar à Milão com a camisola rosa, mas esses, arrisco dizer, são uma minoria. Os verdadeiros devotos do ciclismo seguiram com mais fervor as etapas em que João Almeida teve mais dificuldades, como a do Stelvio, em que perdeu a liderança mas conquistou o respeito dos adversários, o apreço dos companheiros e o coração dos adeptos com a sua tenacidade e, deve sublinhar-se, sangue frio. Outros ciclistas, na iminência de perderem a camisola rosa, teriam ido ao fundo, sentindo que já tinham feito muito. João Almeida aguentou, encontrou o seu ritmo, cerrou os dentes e deu tudo. Acabou a etapa em 7º, mas à campeão. No conforto almofadado da minha sala, aplaudi aquele rapaz e acompanhei os últimos dias do Giro ainda com mais entusiasmo.
Valeu a pena. Na penúltima etapa, com a tripla subida no Sestriere, João Almeida foi gigante e aquele momento em que arrancou e deixou para trás Pello Bilbao e Wilco Kelderman, conquistando segundos preciosos ao espanhol para o ultrapassar na derradeira etapa, fica como um dos pontos altos desta sua primeira aventura, uma daquelas ocasiões em que o ciclista de sofá salta em casa e o coração acelera como se fosse ele a pedalar montanha acima.
Ninguém sabe o que acontecerá daqui para a frente, se chegará o dia em que João Almeida será o primeiro português a triunfar numa grande volta, mas o que fez nestes 21 dias não pode ser apagado, nem dos registos, nem da memória dos adeptos. O rapaz das Caldas da Rainha conquistou um quarto só dele onde cabe a gratidão de um povo inteiro."

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