segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Não são tempos bonançosos que se anunciam...


"Não, não vou chamar, para um debate, os meus habituais leitores, acerca da crise económico-social, em que descambámos e é fonte inesgotável das mais diversas interpretações e olhares. Por vezes, tenho a sensação que voltámos à segunda metade do século XIX, quando na década de 70 do século XIX abriram as Conferências do Casino e o Eça e os seus colegas de Coimbra imbuídos do ideal positivista, cheios da leitura de Renan e de Proudhon e crentes devotos do cientismo, ousaram desfraldar a bandeira de uma revolução, que transformasse a grande e trágica realidade do Portugal daqueles anos idos. Faltam-nos o Oliveira Martins (embora o seu sobrinho-neto, Guilherme d’Oliveira Martins, que todos conhecemos seja um ensaísta de espantosa erudição) o Eça de Queirós, o Guerra Junqueiro, etc., etc.? Não digo tanto. Na nossa vida intelectual, despontam figuras que não temem cotejo com o que de melhor se admira e cultua, por esse mundo além. E não devo escusar-me a referir que, no âmbito do desporto, com especial relevo para o futebol, os nossos treinadores e jogadores estão entre os melhores do mundo. Não quero substituir-me à lição austera dos factos e estes dizem-nos que a “geringonça” tem trabalho feito que merece admiração e respeito. Aceito, por isso, que seja o Primeiro-Ministro do atual governo a declarar: “Neste momento, temos três prioridades claras: primeiro, controlar a pandemia, recuperar o país e construir o futuro”. E, em termos precisos, acrescenta mais adiante: “Seria um erro enorme, para a esquerda portuguesa, não compreender que esta é a oportunidade histórica que tem de não só responder à crise como de o fazer com uma visão de ambição, de requalificação estratégica”. No entanto, 31 % dos empresários, apoiados pelos fundos comunitários, alertam para o “risco de realização” dos seus projectos, por causa do covid-19; a pandemia suspende 80% dos hotéis projectados para 2020; aliás, 1/3 dos projectos poderão derrapar até 2023. Na quarta-feira, 2020/8/26 e com a aquiescência de muitos “agentes do desporto”, houve quem sustentasse que o desporto português aproximava-se, em passos lépidos, do colapso…
O Secretário de Estado do Desporto respondeu, com acerto, que o problema entende-se com a leitura das primeiras páginas da sociologia: se o todo sofre de grave crise, é evidente que a crise emerge também de todos os elementos dessa totalidade. Heidegger não se cansava de expender que “a filosofia fala grego” e o George Steiner, de quem sou devoto leitor, afirma que não é só a filosofia, também as ciências e a tecnologia e a teologia e as artes… falam grego! Mas eu, um “aprendiz de filosofia”, quedo-me por ela, começando por lembrar a figura de Sócrates. Era um homem sem mácula e, mesmo assim, foi condenado à morte, acusado de corromper a mocidade e de ser ímpio em relação aos deuses da cidade. A história da sua defesa e condenação é relatada, com excelentes pormenores, no diálogo de Platão, Apologia de Sócrates. As discussões, havidas na prisão e nas circunstâncias que o Fédon relata permitem-nos algumas observações: que, na filosofia, a verdade é o todo; que a relação que Sócrates estabelecia com as pessoas não era puramente intelectual, tinha também em conta as emoções; que o seu conhecimento da vida não era meramente livresco ; que filosofar é sempre subverter, desnortear, criticar; portanto, a filosofia não é um saber abstrato, à margem da vida, a filosofia desponta da prática diária. Na linha socrática, Kant adiantava: “ninguém aprende filosofia, mas aprende-se a filosofar”. No entanto, há aqui um ponto a distinguir: a filosofia não faz “juízos de realidade”, como a ciência, mas “juízos de valor”. Ou seja, filosofar é dar sentido à prática. O célebre filósofo brasileiro Dermeval Saviani insiste na ideia que a reflexão é filosófica, quando radical, rigorosa e sistémica. Radical? Ou seja, que não se omitam, nem as causas, nem as causas das causas. Rigorosa? Com metodologia verdadeiramente científica. Sistémica? Pois que um sistema é um conjunto de unidades em inter-relações mútuas. Por isso, é complexa e conflitual também. Nos erros do todo, todos somos culpados. 
E, quando afirmo que “todos somos culpados”, não quero desfocar os factos, em benefício do Governo ou da Oposição. Considero legítimo que cada qual, dirigente ou “trabalhador do conhecimento”, tenham a sua agenda própria. O conflito é “conditio sine qua non” de progresso. Uma célula é capaz de alimentar-se, de reproduzir-se, de metabolizar, mas as moléculas que a compõem são incapazes de tudo isto, se as considerarmos, isoladamente. No desporto português, não há “agente do desporto” despersonalizado ou subserviente a interesses estranhos ao interesse primeiro do desenvolvimento desportivo nacional. E, portanto, até em qualquer divergência grave, pode subsistir vivo o rigor desejável e uma simpática atmosfera de compreensão. Enfim, o dissídio pode resolver-se, facilmente, intelectual e afectivamente. Não direi ideologica e politicamente porque, em democracia, a dialética envolve uma escrupulosa fidelidade a princípios partidários, por vezes, de difícil adaptação numa economia de rastos. E, tanto à esquerda como à direita, a economia é o radical fundante. Há mesmo quem diga que o economicismo à direita tem a mesma matemática do economicismo à esquerda, conquanto os objectivos nem sempre sejam os mesmos (temos de reconhecê-lo). “O Espírito Desportivo encerra em si mesmo um conjunto alargado de valores e princípios, que deverão ser assimilados e vivenciados, na prática desportiva. Trata-se de um conjunto de valores que têm a função de imprimir um sentido positivo à actividade desportiva e que, sem os quais, esta perde a sua finalidade primordial: contribuir para o desenvolvimento harmonioso e universal da pessoa humana” (AA.VV., Código de Ética Desportiva, SEDJ/IPDJ/PNED, Lisboa, 2014). Habermas preconiza, em todas as circunstâncias, o paradigma da comunicação, que aplaudo sem restrições, designadamente entre desportistas. Sem comunicação, costuma haver colonialismo, manipulação e não se vislumbra qualquer assomo de pluralismo, democracia…
O desporto é também um fenómeno histórico. Significa dizer, “ab initio”, que a política desportiva tem, necessariamente, avanços e recuos, por esta razão muito simples: é história! Os próprios “pareceres” dos especialistas são, quase sempre, objecto de acertos e de consensos. A autoridade científica, com todo o seu narcisismo lógico, não é o principal argumento numa política desportiva… porque interesses mais altos se levantam! Lembram-se do “processo Galileu”: sabem de que lado se encontrava o paradigma científico, só que as decisões do Santo Ofício não provinham dos argumentos da retórica científica, mas da autoridade político-eclesiástica. Enfim, o Galileu foi condenado por razões estranhas à ciência. Nas nossas democracias, a competência exigida a quem decide é, demasiadas vezes, de teor eminentemente político e assente em voluntarismos e veleidades também políticas ou partidárias. No entanto, o que inova, o que transforma não é a ideologia, mas o conhecimento. Não preconizo, para os partidos do “arco do poder”, o declínio da crítica, mas que o conhecimento não se dilua na teoria. Quem o escreve é o teórico, que sou eu. Mas nunca me conformei beatificamente com os dados da teoria. Passei boa parte da minha vida a questionar os “práticos”, numa aprendizagem contínua com eles. E de tal maneira que a minha pouca tecnociência (não tenho receio em escrevê-lo) é, hoje, sobre o mais, hermenêutica. As desastradas intervenções de alguns dirigentes não o são, no campo do desporto, por escassez de dados técnicos, mas pela continuação de hábitos rotineiros tipicamente burocráticos e porque se deu ao olvido a necessidade da rotura estrutural. Em Weber aprendi que a ciência política estuda as condições, as consequências, as implicações do compromisso político, mas (digo eu) não são os desportistas que o concretizam.
Não tenho qualquer receio em considerar-me Amigo do Dr. João Paulo Rebelo, actual Secretário de Estado do Desporto e da Juventude – um homem que sabe que não sabe e por isso, necessariamente, sabe muito. A análise crítica do que existe (é a “teoria crítica” a dizê-lo) assenta no pressuposto de que, no desporto, há mais do que desporto. E portanto continuam por cumprir as mais proclamadas promessas dos países capitalistas avançados, os quais, “com 21 % da população mundial, controlam 78 % da produção mundial de bens e serviços e consomem 75 % de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da electrónica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte, na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou, no início da década de 80, os países devedores do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir, em termos líquidos, para a riqueza dos países desenvolvidos, pagando a estes em média por ano mais 30 biliões de dólares do que o que receberam em novos empréstimos. No mesmo período, a alimentação disponível, nos países do Terceiro Mundo, foi reduzida em cerca de 30%. No entanto, só a área de produção de soja, no Brasil, daria para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoas morreram de fome no século XX do que em qualquer dos anos precedentes. A distância entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres, no mesmo país, não tem cessado de aumentar” (Boaventura de Sousa Santos, in Revista Crítica de Ciências Sociais, revista nº. 54, pp. 198/199). É impossível não dar-se conta, num mundo em larga e profunda crise, de uma também larga e profunda crise desportiva. É inevitável! Digo então que a crítica não é necessária ao progresso desportivo? Pelo contrário: digo que a crítica é necessária ao progresso do desporto. Mas com este pequeno pormenor: no meu entender, à luz do que exige a “teoria crítica”. Quero eu dizer: a crítica, mais do que “regular”, de acordo com concepções já retrógradas - deve tentar “emancipar”…"

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