"Vítor Silva não escondeu as lágrimas emocionadas na tarde do seu adeus, nas Amoreiras, em Setembro de 1936. Tinha apenas 27 anos, mas problemas com varizes numa das pernas obrigaram-no a abandonar o futebol de uma forma emocionante, contra o rival de sempre: o Sporting.
'Vítor Silva, um nome popularíssimo e grande jogador, despediu-se hoje do football. O Campo das Amoreiras registou a primeira grande enchente da temporada': era assim o início da notícia naquele dia 13 de Setembro de 1936.
Avançado terrível, não parava um segundo quieto, e essa inquietação arrastava a equipa para a insatisfação, e os adversários para cargas de nervos de provocar ataques de bexigas. Realizou 235 jogos com a camisola encarnada e marcou 202 golos. Tudo nele era velocidade, reflexos e espírito do golo. O golo no topo das prioridades. Aquele espaço balizado entre os postes e a trave fascinava-o. A forma como ultrapassar os guarda-redes também.
Nesse dia de Setembro abandonava os campos. Chegara ao fim.
'Abaterem-se bandeiras. Os aficionados da modalidade mais valorizada juntaram-se todos, esquecidos de ressentimentos clubistas, a fim de apresentarem uma grande homenagem àquele que deu tardes de glória ao futebol português. O dia desportivo de hoje, em Lisboa, pôde chamar-se Dia Vítor Silva'.
Houve de tudo um pouco.
E um Benfica - Sporting, claro está! Nem os seus adversários leoninos quiseram ficar fora da grande festa do adeus de um homem universal.
Eram exactamente cinco horas e três minutos da tarde.
Cinco horas e três minutos em ponto da tarde!
Os jogadores do Benfica formaram alas. Por entre eles passa Vítor Silva, o enorme Vítor Silva, um fulano magrinho, cinco-réis de gente e uma alma na qual cabiam mundos inteiros. O público ergue-se numa ovação comovida. Vítor não esconde as lágrimas. É impossível. Um momento que o marca sobremaneira. E não existe nenhuma maneira fácil de dizer adeus.
Até um golo
'Caloroso, sentido, sincero, o público não faz intervalos nos aplausos'. Vítor Silva também não fazia intervalos nos jogos. Era noventa minutos de perpétuo movimento. As equipas de Benfica e Sporting estão agora formadas no meio do terreno. O dr. Oliveira Duarte, num acto de enorme gentileza, abraça Vítor Silva e entrega-lhe um enorme galhardete do Sporting feito para a ocasião.
O jogo virá a seguir.
Há sempre, antes de um Benfica - Sporting, seja ele qual for, um nervoso miudinho que perpassa a multidão. Nessa tarde não foi diferente. Apesar do peso da despedida.
O encontro é suficientemente histórico para ser arbitrado por Cândido Oliveira, o seleccionador nacional.
Vítor Silva iria jogar, embora o seu problema de varizes nas pernas lhe limitasse os movimentos. Tinha apenas 27 anos e tanto para dar ao Benfica e ao futebol. O Destino traíra-o de forma velhaca.
Mas estava lá. Por inteiro.
O Benfica entra melhor no jogo, ameaça a baliza de Dyson como uma alcateia de lobos famintos, faz o 1-0 por Valadas. O Sporting responde de imediato e empata por João Cruz. As pessoas estão felizes com o espectáculo. Têm boas razões para isso!
De repente Vítor Silva entra na área dos leões. Tem a bola controlada, vai rematar, alguém o agarra: penálti!
O povo ainda mais feliz. Vítor vai marcar o penálti e fazer um golo na sua tarde de despedida. A bola sai potente do seu pé direito, mas bate no poste: 'Ooooh', ouve-se nas bancadas.
Mas eu já disse antes: Vítor Silva estava ali por inteiro. Pouco tempo depois, num lance de cabeça, estabelece o resultado final.
Deixara a sua marca. Calara os que ainda duvidavam disso.
Veio o intervalo. O momento derradeiro.
No centro do terreno, as equipas novamente reunidas. Benfica e Sporting, mas agora também representantes de outros clubes, tal como o Carcavelinhos, onde Vítor Silva iniciara a sua carreira. Dirigentes de vários organismos desportivos. Saudações efusivas.
Vítor Silva percorreu, um a um, os jogadores presentes. A todos eles entregou uma medalha comemorativa da sua despedida. De todos eles recebeu o abraço sentido de admiração que lhe era devotada por companheiros e adversários. As lágrimas voltam a assomar-lhe às pálpebras. Não consegue contê-las.
Os jogadores do Benfica e do Sporting erguem-se em ombros. Com ele lá no alto, saem de campo numa imagem bonita que raramente se repete. Dão uma volta triunfal ao campo enquanto as palmas e os 'hurras!' estralejam. Vítor Silva não voltará a encher os olhos dos adeptos com o seu futebol fulminante, mas não há quem não anseie por saudá-lo e desejar-lhe uma nova vida para lá desta vida que acaba de deixar para trás.
As suas lágrimas têm resposta com outras lágrimas que bailam nos olhos das gentes que enchem as bancadas. As palmas continuarão a ecoar pela tarde, pelas tardes que se seguem, até ao fim dos tempos..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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