sábado, 11 de julho de 2020

O robô e a bola de ouro

"É Arrigo Sacchi, ao tempo jovem treinador recém-chegado da segunda divisão ao histórico Milan, quem conta como venceu uma longa discussão com Silvio Berlusconi, então presidente do clube e já empresário de ascensão fulgurante, milionário, que insistia em ter na equipa Claudio Borghi, avançado argentino que prometeu muito mas pouco cumpriu. Sacchi queria Rijkaard, holandês multifunções que podia ser quase tudo numa equipa, para o fazer coluna vertebral de um jogar feito de pressão sem bola e agressividade com ela. O presidente olhava o jogo a partir de um jogador, elegante com bola, driblador, com promessa de golos. O treinador olhava o jogador a partir do jogo, numa ideia colectiva em que a dinâmica exigia aquele elemento. Para atacar, já tinha Gullit e van Basten, não carecia de Borghi. Para o jogo ser completo, precisava de Rijkaard. Acabou por ter mesmo o holandês, depois de um debate de meses, e sobre ele construiu o melhor Milan da história. Farto dessa discussão feita da comparação individual entre um e outro, Sacchi deixa a lição, óptima para uma série de treinadores com dificuldade em convencer dirigentes: querem falar-te de jogadores? responde com jogo.
A discussão é recorrente e tão controversa como estimulante: uma equipa constrói-se a partir de uma ideia ou dos jogadores? Claro que o futebol será sempre jogado por homens e que quem tem os melhores estará mais perto do sucesso. Acontece que dizer isto, sobretudo dizer só isto, é ainda mais inútil do que elementar. Nenhum jogador existe fora do contexto, nem sequer Messi ou Ronaldo, e até para estes, que são os melhores de todos em décadas, há entornos mais e menos favoráveis. A questão de princípio devia ser mais “para que quero este jogador?” do que apenas “eu quero este jogador”. Ter Arturo Vidal ou Frenkie de Jong está longe de ser sequer parecido, mas a minha dúvida é para que se quer Vidal e para que se quer De Jong. E principalmente: por que razão se quer os dois, em simultâneo. É possível admirar Thiago Alcântara e também Pogba? Seguramente. Mais difícil será perceber a opção por um modelo de jogo que os favoreça a ambos. E não se trata aqui de discutir a qualidade individual ou a preferência por um estilo, mas antes perceber qual a ideia que precede a construção de uma equipa. Sem ela dificilmente se constrói com segurança e competência, exactamente como um projecto arquitectónico de um edifício pode, no limite, desprezar a estética e conjugar escolas, desde que nunca esqueça a utilidade a que se destina.
Não há melhor forma de investir no talento do que garantir-lhe o ambiente certo para que se desenvolva. Trata-se de olhar o jogador a partir do jogo, mas sem lhe negar a individualidade, acreditando verdadeiramente, e em particular, no jogador que é capaz de trazer para o jogo a solução de problemas impossíveis de antecipar. Não há nada de contraditório nisto, talvez seja até do mais complementar quando se pensa futebol. Acreditar no colectivo como espaço que garante organização ao criativo, e, ao mesmo tempo, deixar margem ao criativo para acrescentar o que nenhuma organização pode prever, num jogo tão espantosamente aleatório como este. A táctica só faz sentido se não for entendida um conjunto de amarras, em que o rigor limita a arte. Devia ser proibido dizer que um jogo sem golos e com cautelas defensivas “é muito táctico”. É o inverso. O jogo medroso é onde há menos riqueza táctica. Enquanto conceito superior que enquadra o jogo, a táctica é tão rica que tem até na essência o que mais parece escapar-lhe: a margem grande do que é imprevisível e que representa, no fundo, a liberdade de executar de uma forma ou de outra, em lances sucessivos. E quem tem mais talento executa melhor, mesmo que fuja aos cânones, como numa trivela de Quaresma ou num elástico de Neymar. A táctica não pode ser burocrática, nem o talento coisa formatada em escolas de piso sintético. Até porque nunca um robô, por perfeito que pareça, há de ganhar a Bola de Ouro."

1 comentário:

  1. Não foi só o melhor Milan da história, foi mesmo a melhor equipa da história.
    A frança de aime jacquet ou o barça de guardiola seriam completamente dizimados pelo Milan de 1990-1994.

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