terça-feira, 12 de maio de 2020

Reinventar o futebol

"É um desafio complicado, o de reinventar o desporto-espectáculo, sem público nas bancadas. Os que gostamos de ver futebol bem jogado, vamos ficar satisfeitos com o relato, em voz ou com as imagens, de um jogo sem a vibração do público? O divertimento não vai ficar escasso? Aquilo não vai parecer apenas um treino?

Um amante do futebol, grande fã do jogo do Barcelona no tempo de Guardiola, o britânico John Carlin, jornalista premiado, autor do livro “Invictus”, imortalizado no cinema pelo filme de Clint Eastwood que mostra como Mandela soube usar o râguebi para unir e reconciliar a África do Sul, também encontrou uma boa imagem para expressar a frustração que é bola num estádio vazio: “Futebol sem público é como sexo com máscara e luvas de látex”.
Sabemos que fomos neste ano apanhados por duas realidades. Duas urgências. Uma, sanitária com a pandemia que continua à solta e a tentar atacar-nos a todos, ao nosso menor descuido. A outra, económica, com tantas empresas de todas as dimensões em aflição, algumas já com a dúvida sobre se têm as condições necessárias para conseguir voltar.
A indústria do espectáculo desportivo, em especial a que vive do futebol, está, como toda a gente, impaciente pelo regresso. A impaciência costuma não ser boa conselheira.
Admito que os contactos entre jogadores, na disputa de lances, poderão não suscitar problema de contágio porque os clubes grandes, aqueles que estão a caminho do regresso ao campeonato já no fim do mês, têm estrutura para testarem diariamente toda a equipa, jogadores, técnicos e outros envolvidos directos. Se alguns dos clubes não tiverem essa estrutura, a Federação Portuguesa de Futebol, que é reconhecidamente eficiente, pode tratar de garantir esse cuidado ou de o promover juntamente com a Liga.
Mas quem e como vai assegurar que, apesar das bancadas fechadas, não há ajuntamentos massivos de claques e outros adeptos a abraçarem-se junto aos estádios quando a equipa preferida marcar um golo? O mesmo nos cafés com ecrã gigante para atrair clientes?
A prudência aconselharia esperar mais pela retoma do futebol. Acresce a dúvida sobre se o futebol sem a emoção das bancadas satisfaz o divertimento.
É um facto que há o risco de a espera se tornar interminável, muitos meses, até que a ameaça do vírus esteja domada. Todos também sabemos que nas contas desproporcionadas de grande parte das equipas há clubes desesperados pela crise de liquidez e em ânsia para receberem os direitos de transmissão dos jogos.
A lógica dos que nos clubes reclamam “the show must go on”, sem mais esperas, tem uma única motivação: o dinheiro.
Um homem do futebol, treinador, o argentino Marcelo Bielsa, conhecido pela alta exigência e frontalidade, há vários anos que se queixa do sistema do futebol, como fica claro no livro Los 11 caminos al gol: “O mundo do futebol parece-se cada vez menos com o adepto e cada vez mais com o empresário”. A actual crise pode vir a forçar uma mudança desejável, a do modelo que estrutura os clubes de futebol.
Voltando ao caso específico do regresso do futebol português já no final deste mês. O futebolista Francisco Geraldes, oportuno, dispara a atenção para o ponto 1 do catálogo de condições da DGS para essa retoma do campeonato: “A FPF, a Liga Portugal, os clubes participantes na Liga NOS e os atletas assumem, em todas as fases das competições e treinos, o risco existente de infecção por SARS-CoV-2 e de COVID-19, bem como a responsabilidade de todas as eventuais consequências clínicas da doença e do risco para a Saúde Pública. ”
Há eventual risco para a saúde pública? Assim sendo, há que eliminar o risco. A composição da equipa de especialistas definida pela FPF leva a confiar que a decisão final que vier a ser tomada vai ser a que acautela a saúde pública.
O futebol, por muito divertimento que possa propagar, é uma indústria que não pode ter carácter prioritário na complexa saída do confinamento. Dá prazer ver um bom desafio de futebol, mas se envolve algum risco para a saúde pública, então que o jogo espere. Para mais, quando o espectáculo não tem os ingredientes todos.
Simon Critchley, professor de filosofia na New School for Social Research, da Universidade de Essex, publicou em 2017, na Penguin Books, um interessante livro com o título “What we Think About When we Think About Soccer” em que retrata com precisão a atmosfera do espectáculo de futebol: “O canto colectivo e o som inebriante da multidão não apenas acompanham a bela actividade dos jogadores, são também a matriz sublime da qual o jogo emerge, o campo de força que impulsiona a acção, na forma de uma música. Competitiva”.
Parece consensual escrever que os adeptos nas bancadas são mais do que um elemento decorativo no estádio. A emoção colectiva do público, os cânticos e o fervor da assistência constituem parte essencial do espectáculo. Com essa ausência, a difusão do jogo de futebol fica desvalorizada para quem transmite e degradada para quem assiste. Futebol sem público fica um espectáculo que perde vida.
Mesmo tendo em conta que os encostos e abraços entre os jogadores em campo não serão problema, o melhor será esperar para que o futebol seja espectáculo completo no estádio. Se calhar, a demora vai implicar mudanças no modelo dos clubes, talvez menos dinheiro a rodar em negócios de transferência muitas vezes inexplicáveis, e possivelmente a oportunidade para revelação de novos talentos nas escolas dos clubes. Já agora: que no regresso do futebol jogado haja menos envenenamento no futebol falado.
(...)"

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