"Para mim, o Signal Iduna Park sempre se chamou Westfalenstadion, desde os tempos do Paulo Sousa e do Lars Ricken, mas para mim o futebol também sempre teve adeptos, não ter adeptos era sinal de castigo, mas como a covid-19 nos castigou a todos sem excepção, dos bem aos mal-comportados, se calhar está na hora de começar a falar do Westfalenstadion como Signal Iduna Park, até porque o Westfalenstadion costumava ser um dos mais barulhentos estádios da Europa e no sábado foi um sítio de silêncios, ou se não silêncios pelo menos de sons aleatórios que estamos habituados a ver e não a ouvir.
Como o som seco do pé a bater numa bola, o insulto que escapa e que antes só liamos nos lábios, como o grito do treinador a corrigir um posicionamento defeituoso. São estes os novos tempos.
Normalmente, nada disso se ouve porque para lá do rectângulo há milhares e milhares de alminhas a cantar e saltar e sem elas o futebol é um conjunto de silêncios pintalgados por sons desconexos, vazios. E ver o Borussia Dortmund - Schalke 04, um dos mais assanhados dérbis da Alemanha, sem aquela parede de som em tons de amarelo que dantes vinha do topo sul do Westfalenstadion foi desconcertante, no pior dos sentidos possíveis. Sem conseguir abstrair-me daqueles barulhos randómicos, fortuitos, que fazem parte do jogo mas não são o jogo, desliguei-me do dérbi, vagueei à procura de no meu cérebro reunir os pedaços em que se tornou a experiência pós-moderna de ver um jogo de futebol. O futebol está de regresso, dois meses depois, e eu, que nem sou de andar de punho fechado a bater no peito a dizer que sem adeptos isto não vale a pena, estava disposta a desistir.
Acontece que é sempre possível dar a volta a este novo normal. A conselho do meu amigo Diogo Santos, que além de melómano também escreve desempoeiradamente, como eu gosto (e podem comprová-lo aqui e aqui), liguei a coluna e dei uma banda sonora ao jogo. Foi rock, talvez pudesse ser outra coisa, o certo é que cumpriu o propósito, encheu aquilo que era incongruente, deu volume a um estádio cheio de vácuo. E assim voltei a concentrar-me no futebol.
Cada um dá o sentido que pode àquilo que, aparentemente, parece não ter sentido algum.
Há um filme que gosto muito, quase tanto ou mais que dos meus jogos de futebol preferidos. Chama-se "A Paixão de Joana d'Arc" e ainda é do tempo em que o cinema só se fazia de gestos e olhares. Ao longo de todos estes anos, muita gente tentou musicá-lo, Richard Einhorn, Will Gregory e Adrian Utley, a pianista japonesa Mie Yanashita. Nunca vi qualquer uma dessas versões, só a totalmente muda, no breu do cinema, embora reze a lenda que, em 1928, Carl Theodor Dreyer terá imaginado aquelas quase duas horas de martírio da heroína francesa como uma experiência sonora e que só não o fez por falta de dinheiro. Talvez a música tornasse ainda mais agónica aquela viagem, revolucionasse ainda mais as nossas entranhas.
Não sei se o filme de Dreyer precisa de som. Até este fim de semana acreditava que não, que estava tudo nos close-ups e nos olhos de Maria Falconetti, mas talvez a Bundesliga me tenha alertado que todas as experiências podem ser melhoradas, mesmo que na cara de Erling Braut Haaland, nórdico como Dreyer, marcador do primeiro golo do pós-pandemia, haja um nada quase tão grande quanto o silêncio dos estádios.
Ele fez o primeiro de quatro golos com que o Borussia derrotou o Schalke 04 no dérbi do aço e do carvão e festejou ao longe, com uma estranha dança e os colegas à distância. Em outros jogos rapidamente se esqueceram as recomendações, houve abraços e até beijos e, por muito que isso nos preocupe, o jogador é humano e essas são as únicas partes que não precisam de música, porque nos lembram da verdadeira normalidade, aquela de que queremos gozar o mais rapidamente possível. Naqueles abraços há tanta alegria quanto há sofrimento nos olhos de Falconetti e não existe guitarra ou orquestra que hiperbolize ainda mais tal coisa.
Mas, para já, é esta a realidade. Continuarei a dar uma banda sonora ao futebol, para tornar mais suportável o seu silêncio. Nas tão prosaicas quanto pragmáticas palavras de Lewis Hamilton, que também se vê na iminência de tentar um sétimo título mundial na Fórmula 1 sem ninguém nas bancadas a ver, olhem, "é melhor do que nada"."
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