"O Benfica sempre se deu bem com adversários da Hungria, mesmo quando os húngaros ainda era dos grandes da Europa. Os velhos nomes passaram pela Luz: Upjest, Vasas, Honvéd... No dia 1 de Novembro de 1989, o mágico clube de Púskas perdeu em Lisboa por 7-0.
Um mal insidioso tomou conta do mundo, espalhando-se como um fedor, virando-nos de costas uns para os outros, transformando a nossa vida numa coisa qualquer que não é a nossa vida. Olho para a data do calendário e percebo que não saio de Alcácer há mais de dois meses, e foi como se tivesse posto na porta da existência letreiro a dizer. Volto já! Maio, não tarda, caminha para o fim. Deveria estar neste momento a preparar-me para ir para mais um Campeonato da Europa, o sétimo da minha carreira de jornalista, viajando para Budapeste, essa cidade sempre sentimental onde Portugal jogará, eventualmente para o ano, o primeiro jogo da fase final. Mas não. Os países escolheram-se dentro de si próprios. Fecharam fronteiras. O futebol caiu num desânimo que entristece adeptos, e nem o anúncio de que vai voltar, ainda que sem público nas bancadas, parece animar as gentes.
O Benfica sempre se deu bem com adversários húngaros. Desde o seu primeiro confronto, em 1960-61, com o Upjest, para a Taça dos Campeões que haveria de conquistar. Vitória por 6-2 em casa; 1-2 na Hungria. Em 1964-65, nas meias-finais, foi a vez do Vasas Gyor: 1-0 fora e 4-0 na Luz. Em 1967-68, nos quartos-de-final, outro Vasas, o de Budapeste: 0-0 e 3-0. O Ujpest vingou-se em 1973/74: 1-1 e 0-2. Em 1975-76, pagou o atrevimento com juros: 5-2 na Luz, 1-3 na Hungria. Depois, o futebol húngaro ficou doente, também atacado por uma espécie de epidemia. Mole, sem chama, perdeu a categoria do passado e os nomes de Kubala e Czibor, Púskas, Hidegkuti e Florian Albert não tiveram sucessores à altura. Ficaram para sempre guardados na memória do romantismo.
1 de Novembro
Quando, no dia 1 de Novembro de 1989, estive na Luz, em trabalho, no Benfica-Honvéd, sabia que o Honved já não era mais a equipa assustadora no final dos anos 40, princípios de 50. Clube do exército húngaro, tinha gente como Ferenc Púskas, que ganhou a alcunha de Major Galopante, Sàndor Kocsis, József Bozsik e Zoltán Czibor, e um treinador chamado Bélga Guttmann. Mas o nome estava ali, sobreposto à realidade. Era o Honved, e só isso merecia uma vénia e um obrigado por tudo quanto deu à história do futebol.
Na Hungria, o Benfica vencera por 0-2. O jogo de Lisboa foi um passeio, numa tarde agradável e luminosa. Os benfiquistas andavam felizes com o regresso de Sven-Góran Eriksson, apesar de Toni, que passou para seu adjunto, ter levado a equipa ao titulo nacional e à final da Taça dos Campeões Europeus perdida nos penáltis para o PSV Eindhoven. Era tempo de sonhos grandes na Europa dos grandes. Os jogadores de categoria afirmavam a categoria: Aldair e Ricardo Gomes no centro da defesa; Valdo, Thern e Vítor Paneira no meio-campo; Diamantino e Magnusson na frente.
Um vendaval vermelho percorreu o relvado verde, bonito. Um futebol gracioso, encantador, à moda dos antigos húngaros, aqueles que se atreveram a ir a Wembley bater a Inglaterra por 6-3, e, no encontro de desforra, chegaram ao descaramento divino que o Eça atribuía ao Alencar: 7-0.
E 7-0 também na Luz, primeiro de Novembro, feriado.
César Brito (15' e 42'), Abel Campos (36'); Vata (62' e 64') Mats Magnusson (86' e 89').
Ah! Pobre Honvéd, de tal, forma destruído. Destruído pela sabedoria de Valdo, de régua e esquadro e tira-linhas, a fazer desenhos finos, a tina-da-china, traçando arbitrárias e pondo os companheiros no caminho da baliza de um infeliz Péter Diszit. Já não lhe bastava o nome complicado, de provocar cãibras na língua de qualquer cidadão português que resolvesse relatar o que se ia passando numa Luz cheia de luz, sobrava-lhe a infelicidade de ter pela frente defesas incapazes e avançados assassinos, os primeiros da sua própria equipa, claro está, os segundos com as camisolas rubras de águia ao peito.
Era apenas um Honvéd bisonho, só com nome e sem conteúdo, mas também tinha sido, primeiro, e Derry City(1-2 e 4-0), como seriam depois o Dnipro (1-0 e 0-3) e o Marselha (2-1 e 1-0), antes da final impossível com o Milan intratável dos holandeses Rijkaard, Gullit e Van Basten (0-1).
A águia voava pelos céus da Europa e sentia-se bem, era ali o seu lugar. Talvez esses céus ainda tenham guardado um lugar para o seu regresso. Um lugar vermelho, agora vazio."
Afonso de Melo, in O Benfica
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