quinta-feira, 14 de maio de 2020

Aspetos psicológicos associados ao retorno à prática futebolística: uma nova exigência de adaptação para jogadores e clubes

"A percepção temporal e espacial são fenómenos de uma subjectividade difícil de quantificar. O período de “isolamento social” (entenda-se, físico) chegou tão rapidamente como da mesma forma poderá estar para desaparecer – e este tipo de fenómeno nada tem a ver com a verdadeira duração do período de isolamento e desconfinamento, mas sim com a percepção individual de cada sujeito e, em boa medida, com as suas capacidades em activar uma adaptação eficiente à adversidade.
De facto, podemos constatar que a narrativa das pessoas que atravessam este período conturbado da nossa história, mesmo das que acabaram por estar relativamente protegidas dos efeitos mais nefastos da pandemia (ou seja, tendo mantido algum senso de protecção, seja no que respeita à sua saúde ou à sua capacidade de manter emprego), difere de acordo com a qualidade de saúde mental que conseguiram manter, com a presença ou não de fenómenos de natureza ansiogénica e a capacidade em tornar este período como um período de crescimento pessoal ou profissional (apostando em formação, por exemplo).
Podemos dizer, por isso, e para a generalidade das pessoas, que a realidade que as rodeia não as define, mas a sua resposta à mesma sim - e aqui assentam os recursos pessoais de cada um, que determinarão a capacidade em lidar positivamente com uma situação de (potencial) crise. 

Adaptação
Da entrada abrupta de uma pandemia pela nossa realidade quotidiana e consequente necessidade imperativa de todo um conjunto de alterações à nossa rotina e à nossa forma de “estar” com o outro, à nossa fiscalidade e forma de comunicar (como povo latino que somos), passámos quase “num piscar de olhos” para uma realidade (e necessidade) de desconfinamento para o retorno a uma “normalidade possível”.
E o desporto não só não foi excepção, como sentiu (e sente) este mesmo fenómeno de uma forma ainda mais vincada.
Prova atrás de prova, campeonato atrás de campeonato, todas as competições foram sendo canceladas, culminando todo este processo na suspensão das ligas profissionais de futebol e, até, no adiamento dos Jogos Olímpicos.
Se pensarmos que, quando falamos de atletas de alto rendimento, muito frequentemente falamos de pessoas que, desde idades muito precoces (5 ou 6 anos) dedicam a sua existência a uma modalidade que, muito frequentemente se confunde com a sua identidade, podemos imaginar a amplificação da emocionalidade vivida neste tipo de contextos.
Fenómenos como uma imensa sensação de isolamento por os seus pares e figuras de referência estarem associados a um só contexto, a perda de objectivos competitivos que possam dar sentido ao treino (e acções) diárias, o receio amplificado de adoecer com consequentes repercussões para a sua capacidade em manter uma dada performance desportiva (nomeadamente num possível final de época onde se podem vir a negociar novos contratos ou patrocínios), a sensação de poderem estar a ficar em desvantagem face aos seus adversários ou a instalação de dúvidas recorrentes (obsessivas até) acerca da sua capacidade em responder positivamente às exigências que possam surgir no retorno à competição entre outras possibilidades, facilitaram em larga medida a instalação de fenómenos de ansiedade que podem ter conduzido os atletas para uma expressão de comportamentos que podem ter ido da negação (envolvendo-se em comportamentos de risco - exposição), à adaptação positiva até ao excesso de zelo, com activação de quadros obsessivos ou, em boa medida, de activação de stress pós-traumático.
Aos atletas foi, por isso, exigida uma enorme capacidade de adaptação (da qual já falámos num artigo anterior) à qual, de uma forma geral, acabaram por responder positivamente, conforme pudemos constatar num sem número de exemplos que nos foram inspirando diariamente.
Contudo, numa fase em que os atletas, de alguma forma, haviam já identificado os recursos necessários para lidar com a realidade que os rodeava (o confinamento), novo desafio surgiu: o desconfinamento e, com ele, a possibilidade de um retorno à prática.
O que podemos, então, esperar no que respeita a esta nova exigência de adaptação?
- O confronto com a percepção aumentada de risco de contágio e consequente compromisso da sua integridade física e dos seus familiares;
- A adaptação a um novo contexto de treino: menos pessoas, mais resguardo, mais distanciamento, contacto físico proibido e um conjunto de directrizes muito restritas (protocoladas num plano de contingência), no que respeita ao cumprimento de um rígido protocolo de saúde, higiene e confinamento, com o intuito máximo de salvaguardar a integridade física (e os direitos), dos atletas, staff e suas famílias (aliás, extensível às mesmas);
- A adaptação a um novo contexto competitivo: esvaziado de pessoas, adeptos e claques que, tal como os atletas, assumem um claro papel neste tipo de espectáculos desportivos, funcionando em boa medida como um factor de motivação para os atletas;
- A disciplina para cumprir com rigor um escrupuloso plano de contingência, que reflicta as directrizes da DGS;
- E, entre muitas outras “novas formas” de viver a sua actividade profissional, a necessidade de reinventar a relação com colegas, adversários e equipas de arbitragem, no que respeita a comportamentos que estão perfeitamente automatizados na expressão de alegria ou frustração.
Esta lista poderia ser, de facto, infindável porque, em boa medida, a realidade que nos envolve comporta um sem número de possíveis factores de stress até agora inimagináveis que irão, em boa medida, promover impactos diferentes (positivos ou negativos), naquela que será a qualidade desportiva que as equipas irão ser capazes de activar a cada momento.
E mais adaptação.
Há algo que podemos ter como certo: a enorme capacidade de adaptação do ser humano – somos extraordinariamente resilientes e proactivos na criação de soluções para nos ajudar a reagir à adversidade.
A criação de directrizes claras por parte da DGS e a implementação de um “código de conduta” para todos os intervenientes pode garantir, à partida, a conquista de “mínimos olímpicos” que possibilitem não só securizar a integridade física de todos como, através do seu cumprimento escrupuloso, tornar o Desporto num novo exemplo da força que o compromisso de “grupo” pode transportar, perante a sociedade em geral.
E, este, será sem dúvida, um importante primeiro passo.
Mas outros deverão seguir-se.
Da integração de profissionais especialistas em Saúde Mental (internacionalmente recomendada por diferentes organismos) que ajudem a identificar precocemente a instalação de possíveis fontes de stress que possam comprometer os indicadores de saúde mental de atletas e restante staff, ao envolvimento de toda a estrutura na criação de um pacote de medidas que promovam canais de comunicação abertos com os atletas, no sentido de identificar, a cada momento, possíveis factores que desencadeiem respostas comportamentais que prejudiquem a coesão do grupo e a performance do mesmo, muito há a fazer.
Este é, por isso, um difícil exercício de crescimento pessoal, mas também organizacional, na medida em que as instituições envolvidas, também elas (e numa base diária), devem evidenciar esforços de adaptação crescente, garantindo dessa forma, terreno fértil para que os seus atletas possam sentir as suas necessidades “vistas” e o seu sentimento de segurança e pertença reforçado diariamente.
É, curiosamente, e por isto mesmo, também uma oportunidade para clubes e diferentes organizações alavancarem não só a reputação interna que vêem reconhecida pelos seus trabalhadores, mas também a reputação externa do desporto na sociedade em geral."

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