sexta-feira, 10 de abril de 2020

Roma 4-5 Inter. Um dos melhores jogos do ídolo (...): um '10' italiano chamado Roberto Baggio

"O mundo estava parado para ver o "fenómeno", que tinha perdido a final do Mundial de 1998, na sua segunda época no campeonato mais duro do mundo naquela época. Ronaldo lesionou-se em Janeiro e regressou para jogar uma parte do dérbi de Milão em Março. Em Abril já estava na máxima força e tendo em conta que a época do Inter estava longe de ser brilhante (8º lugar), e que a Roma disputava o acesso à pré-eliminatória da Liga dos Campeões, no Inter, todos os ingredientes gritavam pelo "fenómeno".
Naquele momento, era o jogador mais desequilibrador da equipa e a referência para quem todos olhavam quando se pensava na possibilidade de a equipa romana ser derrotada em casa pela primeira vez. Apesar disso, eu estava vidrado no Roberto Baggio. Com 32 anos, terminava a primeira de duas épocas no Inter, as duas últimas em que o vimos jogar com a pressão e o peso de lutar pelos primeiros lugares.
Quem viu o génio italiano com a camisola da Fiorentina, da Juventus e até do AC Milan, encontra aqui um jogador diferente. Antes jogava com a maior capacidade física que tinha e mais perto da baliza, numa abrangência de espaço distinta. Aliás, as melhores jogadas que estão por aí em compilações do YouTube são lances de desequilíbrio puro em drible, em condução, em aceleração com a bola no pé. Ele aparecia, fundamentalmente, no último terço para ser ele a finalizar ou em lances de envolvimento próximos do golo. Também tinha qualidade na execução das bolas paradas. Eu adorava os dribles, a elegância como que gingava, a forma limpa como procurava finalizar e, sim, também a qualidade para definir os lances. Gostava dele pelo que fazia a correr, pelo que fazia sozinho. Brilhou nesse estilo como poucos, ganhou campeonatos, taças, provas europeias, bolas de ouro e foi o melhor do mundo para a FIFA.
Apito inicial…
As primeiras acções com bola não foram exuberantes; guardou a bola e esperou que a equipa se reorganizasse, uma tabela mal executada com Colonese, e um alívio. Mas não foi preciso esperar muito para sentir o impacto de Baggio no jogo. Aos 5 minutos, Simeone recebe de Cauet no meio campo. Nessa altura, o criativo italiano estava numa posição mais avançada, entre linhas, e pedia a bola observando o espaço nas suas costas, próximo da linha defensiva da romana. Simeone opta por abrir para Zanetti, e é este que encontra Baggio de costas para a baliza. Fazendo-se valer da leitura do espaço nas suas costas, orienta para onde vai ter mais opções e assiste Ronaldo.
Repare que o avançado brasileiro estava numa posição mais recuada, apesar da linha defensiva da Roma estar alta, e só depois de Baggio ter orientado a recepção naquela direcção é que ele começa a cavalgada em direcção ao golo. Com uma recepção para onde havia mais e melhores soluções, e apesar de pressionado por Aldair, o italiano conseguiu indicar a Ronaldo o que deveria fazer, e executar de forma brilhante o que imaginou com o pé que não era o mais forte.



Entre muitos pormenores de classe na primeira parte, fica na retina a assistência para o segundo golo, quando espera por uma solução de passe melhor, ao invés de despejar a bola de qualquer forma para a molhada. O Inter vai para o descanso a vencer por 3-1, e Roy Hodgson (o quarto treinador da época) satisfeito com o resultado.
Cinco minutos depois do recomeço, a Roma faz dois golos e a incerteza volta ao marcador. Os romanos tornam-se mais pujantes, mais agressivos, mais focados no jogo, e com isso Baggio sofre durante alguns minutos. 
Ainda assim, no quarto golo do Inter, segundo do "fenómeno", num contra-ataque que surge no seguimento de um lance de bola parada defensiva, o recém-convertido médio ofensivo aproveita ausência de Aldair (que estava ainda perto da área do Inter a recuperar) e um mau corte de Quadrini para de primeira colocar em Zamorano que depois assiste Ronaldo. Com a equipa em vantagem, regressa o dono do jogo, que o gere da forma que lhe interessa; passa, mostra-se para a devolução, acelera, trava, guarda, roda, varia.
Mas é depois do empate da Roma, o 4-4, que acontece o momento alto do jogo. Ao minuto 83’, Baggio tinha acabado de perder a bola depois de uma decisão estúpida de a picar num lance em que nada o justificava, naquela que para mim foi a sua pior ação no jogo. Simeone recupera e lateraliza para Zanetti, este atrasa para Simic. A Roma sobe para pressionar quando o central croata entrega para o criativo italiano, que solta de primeira para Zanetti. Depois de entregar a bola, o criativo percebe o espaço que ficou livre e é aí que começa a desenhar a jogada na sua cabeça: ataca esse espaço, recebe a devolução do lateral argentino, e começa a marchar em direção à última linha dos romanos; olha para a desmarcação do Ronaldo mas entende que não é ainda aquele o momento de lhe colocar a bola, uma vez que não tem as condições ideais; usa Djorkaeff, que tinha entrado minutos antes e estava em apoio frontal, para eliminar o médio que o vinha pressionar, e ganha o tempo e o espaço que queria para definir o lance sem pressão nas suas costas; em dois toques deixa pronto para Ronaldo finalizar de forma fantástica. Com uma tabela ultrapassa três opositores, com outra livra-se da pressão que recebia nas suas costas. Extraordinário!



O lance foi invalidado por fora de jogo, mas é o momento mais alto da criatividade de um jogador possibilitada pela colaboração dos colegas. Foi tudo em passe, mas só o foi, e Baggio só teve a possibilidade de fazer o que fez, porque os colegas lhe deram aquelas opções de passe e não outras quaisquer. O lance só teve qualidade porque os colegas colaboraram com as suas intenções, e por melhor que ele fosse só poderia ter sucesso com este tipo de colaboração.
(Podem ver todos os toques dele na bola, no vídeo seguinte.)



Depois deste jogo, o meu conceito mudou e passei a admirar a forma como ele, a andar, fazia o que a maioria não conseguia a correr. Foi aqui que percebi que a forma mais eficaz de comunicação num jogo de futebol é o passe, foi aqui que comecei a pensar que a melhor finta era um passe.
Não deixei de perceber que o drible é uma qualidade rara, e que jogadores que consigam tirar um adversário do caminho são também eles especiais. Veja-se Marlos no Shakhtar Donetsk - a forma como desmonta a primeira barreira e a partir daí aproveita o ajuste que o adversário tem de fazer para desequilibrar o adversário. Olhe-se para Sancho no Dortmund, num estilo completamente diferente de Marlos, mais físico, mas com uma capacidade incrível para passar no um contra um, e até um contra dois. Em português há Trincão no Braga – absolutamente desconcertante para quem o defende. Há Neymar, em Paris, a gozar férias do nível de futebol que o jogo dele pede, mas que continua a ser o número um a destruir defesas no “mano a mano”. E há Messi, claro - o número um de sempre em tudo o que é ofensivo.
Porém, Baggio, neste jogo, mostrou-me o que viria a ser Iniesta no futuro. E não é coincidência que Iniesta seja o meu médio preferido de todos os que vi jogar. Elegante, com grande capacidade para desequilibrar, com uma criatividade fora do normal, e com o gesto técnico mais delicioso que vi nos últimos largos anos – não fazia uso da força como a sua principal arma, e jogava para fazer com que os outros fossem melhores.
Foi nisto que Baggio se transformou na última fase da sua carreira. Davam-lhe a bola para que ele fizesse dos colegas melhores, para que ele fizesse aparecer os miúdos cheios de energia, para permitir que fossem outros a finalizar o que ele criava. Num estilo de jogo como o do Inter, que jogava para o contra-ataque, ele ter tido a capacidade para dar mais posse de bola à equipa, para gerir os momentos de acelerar e travar, para conter muitas vezes os ímpetos dos colegas, é uma lição que ficará comigo para sempre.
Queremos hoje jogadores que joguem o que o jogo dá; mas eu continuo apaixonado por quem vai contra o contexto de jogo e tente criar condições para que ele e a equipa saiam beneficiados e estejam mais próximos do sucesso.
É verdade que este jogo aconteceu no final da época, e que estas novas funções como organizador e criador de jogo já lhe haviam sido atribuídas numa fase inicial. Já se havia visto que pisava terrenos diferentes, e que jogava um futebol mais de serviço e menos de finalização - tinha deixado de ser avançado para passar a ser médio. Este jogo, porém, foi o ponto mais alto de uma adaptação que demorou, mas que resultou num dos jogos mais proveitosos da história do meu ídolo.
O Roberto Baggio do início da sua carreira jogaria hoje de caras em qualquer equipa do mundo; o do final, o deste jogo, em muito poucas. Ele não corria por não ter o vigor físico, e ainda queria estar em ritmo de passeio em todo o campo a pisar os espaços que lhe apeteciam. Não era intenso nas capacidades físicas, nas disputas, nos duelos. Não mordia defensivamente para desarmar, nem recuperava rapidamente a posição. Por tudo isto, é muito difícil imaginar que tivesse lugar num meio-campo das equipas actuais, ainda que quando a bola lhe chegasse aos pés metesse toda os outros a jogar.
Emocionei-me como poucas vezes e chorei quando o Baggio falhou aquele penálti na final do Campeonato do Mundo em 1994, mas são as sensações deste jogo no Olímpico de Roma que marcam um ponto de viragem fundamental na minha forma de olhar para o futebol.
Constituição das equipas
Roma: Michael Konsel. Antônio Carlos, Aldair, Vicent Candela, Marco Quadrini, Luigi Di Biagio, Dmitri Alenitchev, Totti, Eusébio Di Francesco, Marco Delvecchio, Paulo Sérgio.
Treinador: Zdenek Zeman
Inter de Milão: Pagliuca. Javier Zanetti, Dario Simic, Giuseppe Bergomi, Mikael Silvestre, Francesco Colonese, Diego Simeone, Benoit Cauet, Roberto Baggio, Ivan Zamorano, Ronaldo.
Treinador: Roy Hodgson"

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