"Já se imaginou o que seria uma sociedade cheia de Ruis Pintos, a vasculhar os computadores de toda a gente, a penetrar nos sistemas informáticos dos bancos e a transferir dinheiro, a fazer chantagem com informação obtida desta forma?
Vinte e quatro horas depois de ser publicada a notícia segundo a qual tinha sido Rui Pinto a fonte do Luanda Leaks, veio o próprio (e os seus apoiantes) pedir para lhe ser atribuído o estatuto de ‘denunciante’. Afinal, ele tinha prestado um serviço público… E logo a seguir, o mesmo Rui Pinto veio dizer que tinha muito mais coisas para denunciar – só que a Justiça não o permitia, mantendo-o preso. A Justiça tornava-se assim cúmplice dos próprios criminosos. Encobridora de crimes, não deixando um ‘investigador’ por conta própria denunciá-los.
E o curioso é que muitos media embarcaram neste discurso. E não faltaram figuras públicas a invadirem as televisões para, com grande alarido, defenderem o ‘herói’ Rui Pinto e atacarem a ‘malandra’ da Justiça que o mantinha preso.
Ora, vamos com calma. Rui Pinto diz que, ao fazer outras buscas, ‘tropeçou’ naqueles 715 mil documentos sobre Isabel dos Santos. Ou seja, não foi ele que os escolheu nem os ‘pescou à linha’, documento a documento, como os hackers costumam fazer. Nem tal seria possível. Gastando apenas 5 minutos a seleccionar cada documento (entre os milhões disponíveis sobre a Sonangol), Rui Pinto levaria qualquer coisa como 20 a 25 anos de trabalho, não fazendo mais nada.
Portanto alguém seleccionou previamente os documentos – e depois enviou a respectiva ‘pasta’ para o computador de Rui Pinto ou lhe passou para as mãos o disco rígido. E foi este disco rígido que Pinto entregou a um advogado de uma tal Plataforma contra a corrupção em África, que por sua vez o passou ao Consórcio Internacional de Jornalistas.
A questão é, portanto, esta: quem preparou a ‘pasta’ com os 715 mil documentos? E com que intenção? A intenção foi, naturalmente, comprometer Isabel dos Santos. E quem preparou a pasta só pode ter sido alguém de Angola, a mando do próprio Presidente ou de algum adversário político da família Santos. Julgo que isto é claro.
Mas por que razão foram os documentos enviados para Rui Pinto? Obviamente, para os credibilizar. Se fosse alguém de Angola a entregá-los ao Consórcio de Jornalistas, este levantaria suspeitas. Mas sendo um hacker, a informação seria credível.
E o motivo que levou Rui Pinto a aceitar fazer de pombo-correio também é óbvio. Exactamente para se poder apresentar perante a Justiça como um ‘denunciante’, como alguém que presta um serviço louvável, usando depois isso como estratégia de defesa.
E, repito, muita gente foi atrás deste embuste.
Mas já se imaginou o que seria uma sociedade cheia de Ruis Pintos, a vasculhar os computadores de toda a gente, a entrar nos computadores do Ministério da Justiça, a penetrar nos sistemas informáticos dos bancos e transferir dinheiro, a fazer chantagem com informação obtida desta forma?
Os que defendem os hackers já reflectiram bem na monstruosidade que representaria uma sociedade assim, onde tudo fosse devassado, traficado, usado para roubar e chantagear?
E se a Polícia aceitasse colaborar com esta gente, já se pensou no que isso significaria? Na promiscuidade que resultaria de polícias e hackers investigarem paredes-meias, numa confusão terrível, uns a fazerem escutas e a vasculharem computadores com autorização judicial, outros a devassarem tudo por conta própria e sem quaisquer regras?
Estou em crer que aqueles que defendem Rui Pinto ainda não pensaram bem no assunto.
Com o aumento da criminalidade, da corrupção, as pessoas entram em paranóia e aceitam todos os meios para atingir os fins que acham justos. Mas há que pôr a cabeça no sítio. Se os meios não são aceitáveis, se os métodos são eles próprios criminosos, não se caminhará no sentido de fazer justiça mas do caos.
A história de Rui Pinto suscita outra reflexão: a fragilidade da sociedade digital que estamos a construir. Hoje tudo se faz digitalmente – transferências bancárias, circulação de documentos, facturas, procurações, declarações de amor, envio de fotografias íntimas e não íntimas, etc., etc., etc.
Ora, nos tempos que correm, só há meia dúzia de Júlios Pintos – por isso este é tão importante. Mas cada vez haverá mais. E como poderá resistir a sociedade digital aos ataques de toda essa gente?
Dir-me-ão que os mecanismos de segurança vão melhorar. Que tudo será de dia para dia mais seguro. Só que também os hackers se irão aperfeiçoando!...
Estamos perante um desafio terrível, de uma sociedade cada vez mais carregada de interrogações."
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