"Lá, em Espanha, como cá, Liga ao rubro, um ponto entre os primeiros, rivais eternos. E lá como cá seguem os da capital na frente, com vantagem de um ponto. Falta jogar-se, por lá, o super dérbi, é uma das diferenças, mas há-as maiores, nestes duelos da recôndita Ibéria que seguem a par. No país vizinho, a chegada de Queique Setién ao Barcelona acentuou o contraste entre os candidatos. Há agora um mar que os separa. Já Benfica e Porto serão mais as duas margens de um mesmo rio, feito mais de aceleração que de pausa, de aposta na transição ofensiva que no ataque posicional. E há essa curiosidade reveladora de ser o Porto, sempre visto, e justamente, como equipa que assume a objectividade como um fim e a aceleração como um meio, ser, ainda assim, a equipa com mais tempo de posse de bola, em média, por jogo. Mais do que indicar qualquer alteração no jogar dos dragões, que só pontualmente se vislumbra pela escolha de uns jogadores em vez de outros – como agora com Sérgio Oliveira a dar o que Danilo não consegue -, é o atestado definitivo de que ninguém em Portugal faz do jogo de posição uma convicção e da posse paciente um caminho preferido. Nem o Benfica, obviamente. É claro que o Porto vive melhor se houver duelos e o Benfica se os evitar, e que os dragões assumem uma aceleração mais musculada, enquanto as águias a buscam de modo mais criativo. Onde o Porto é ataque ao espaço, o Benfica é drible em progressão. Numa sinédoque: onde o Porto é Marega, o Benfica é Rafa. O Porto, por ver Marega (mas também Soares ou Zé Luís) cede facilmente à tentação lançamentos longos, não raras vezes prematuros ou mesmo inúteis. O Benfica, por ter Rafa (ou Cervi), antecipa progressões em posse desde zonas recuadas, que retiram associação ao jogo e acrescentam risco à perda. Em Espanha, o jogo é de contrastes. Por cá está longe de ser de espelhos, mas há mais traços comuns às duas faces da luta pelo título.
O regresso às origens em Camp Nou reabriu um fosso conceptual. Enquanto o Real Madrid acumula craques no plantel como contentores de carga num porto de mar, o Barcelona reaproxima-se da forma ortodoxa com que construiu as suas melhores equipas. Desde o fim do reinado Guardiola (e Tito Vilanova) que não se via um Barça tão à Barça, filho assumido da escola cruyffiana, feito de risco máximo desde o guarda-redes. A propósito, Ter Stegen bateu um recorde de quase 15 anos, ao protagonizar 69 passes no jogo com o Getafe. Isto prova a qualidade incrível do jogo de pés do alemão, mas, principalmente, o regresso em força da tal ideia fundadora, que Valverde não cultivou, Luis Enrique contornou e Tata Martino nunca entendeu. Agora, a um Real Madrid tipo piloto habituado a traçados sinuosos e em velocidade máxima, capaz de improviso criativo e risco total com a meta à vista, volta a responder um Barcelona paciente, do género caçador experimentado que sabe não ter muitas munições, pelo que prepara o tiro de modo a não falhar. De um lado está Zidane, especialista em puzzles valiosos, mestre da sobriedade, que não criou o quadro mas busca o desenho final com paciência de Job, ora acrescentando uma peça ora trocando outra. Do outro surge Quique Setién, ainda mais artesão admirado que pintor consagrado, mas criador de obra original a partir das ideias em que acredita e das técnicas que domina. Simplificando: uma ideia que emerge dos jogadores enfrenta jogadores que se enquadram numa ideia. E será ainda mais estimulante perceber quem ganha.
Claro que o futebol é rico porque não se esgota nas convicções, nas mesmo nas melhores. Há caminho por fazer, com dureza de calendário e eventuais lesões, encruzilhadas em que pode ser decisiva a profundidade dos plantéis. E aí, o Real leva vantagem clara. A ideia é o mais importante na construção de um jogar, mas a sua concretização é protagonizada por homens, e isso nunca vai mudar. Messi é o melhor, destacado, mas é só um neste duelo. Basta vez as equipas mais recentes que apresentaram, para ser difícil que contra nomes haja argumentos. No Real, Hazard voltou ao onze e Bale também foi titular. Com isso, e com a afirmação do impressionante Fede Valverde, só no banco houve lugar para Eder Militão, Mendy, Modric, Isco, Jovic e Vinícius júnior. E nem sequer lá couberam James Rodríguez, Nacho, Rodrygo, Mariano Díaz, Lucas Vasquez, mais o longamente lesionado Asensio. E Odegaard, um dos nomes do ano em Espanha, contratualmente merengue, só encontra espaço crescer em San Sebastián. Não há outro plantel sequer parecido no mundo. Se a tática fosse um exercício menor e o jogo um somatório de individualidades, como muitos o vêem, o título podia ser entregue por correio expresso em Chamartín. Na mesma jornada, o banco do Barça tinha os laterais Nelson Semedo e Firpo, mais Rakitic e Vidal. Os outros eram cidadãos anónimos, puxados à pressa da equipa secundária, como o central/médio uruguaio Ronald Araujo e o atacante albanês Ray Manaj. Não é com estas alternativas que se luta, ao mesmo tempo, por uma Liga espanhola e uma Champions. Nem Messi será suficiente, mesmo que se acredite que, a caminho dos 33, ainda é capaz de estar em campo nos jogos todos.
Claro que Griezmann brilha mais na liberdade de movimentos que lhe é dada agora, que Ansu Fati é uma bênção dos céus para reencarnar gestos que foram de Pedro Rodríguez e Braithwaite é, pelo menos, a alternativa que as lesões de Suarez e Dembelé tinham tornado inexistente. Adapto de Camões: para tanta ambição, tão curta a manta. Mas não garanto quem ganha. E é nisso que o futebol nunca nos falha.
PS: É admirável, emocionante mesmo, que Quique Setién tenha escolhido Vítor Damas entre os seus quatro futebolistas de sempre, um por sector, a par de Beckenbauer, Iniesta e Cruyff. Há memórias que valem mais que todos os prémios.
Nota coletiva: Borussia de Dortmund – o dinheiro não é tudo e a Champions chegou para o provar com abundância, seja na goleada da Atalanta sobre o Valência ou na vitória do Leipzig no terreno do Tottenham, ambas resultantes de superioridade evidente. E o Borussia de Dortmund é rico, mas não se compara ao PSG, que subjugou. E foi mais que o brilho renovado do miúdo Haland. Houve construção de qualidade atrás, com Hummels e o impressionante Zagadou, capacidade de parar e jogar em simultâneo no meio, com Witsel e Can, aceleração com critério nas alas, por Hakimi (um dos melhores laterais do mundo, sem reservas) e Guerreiro, criatividade em espaço amplo para Sancho, o Hazard mais novo e ainda o menino Reyna, Giovanni que é filho de Claudio, americano de 17 anos apenas, que já não se pode perder de vista. Dortmund é um espectáculo, no relvado como na bancada.
Nota individual: Jack Grealish – parece um jogador antigo, saído daquelas imagens do futebol inglês enlameado dos anos 70 e 80. Meias em baixo, movimentos sinuosos, agarra a equipa do Aston Villa e carrega-a com ele para o ataque. Cai preferencialmente sobre a esquerda, a partir de onde ensaia dribles, acrescenta desequilíbrios sucessivos e procura espaço para finalizações de pé direito à entrada da área. Nado e criado, desde os 6 anos, no histórico clube de Birmingham, é, aos 24, capitão e ídolo definitivo dos adeptos do clube de que sempre foi adepto. Guia táctico e emocional do conjunto treinado por Dean Smith, vai com 9 golos em 28 jogos na Premier League e dele dependerá, em muito, a capacidade dos villans de evitarem o regresso imediato ao Championship, de onde emergiram há alguns meses apenas."
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