terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Eram 11 horas da noite em Cádis..

"Às vezes tropeçamos em crónicas antigas e parece que, por segundos, vemos tudo o que nelas está descrito como se fosse num filme. Benfica - Real Madrid: o primeiro depois da final de Amesterdão. Havia uma sensação de desforra. Eusébio e Torres não estavam para isso.

O meu bom amigo Bernardo Trindade é o melhor alfarrabista de Lisboa. E, lá está, podem dizer-me que o facto de ser meu amigo influência o elogio, mas estou à ser completamente objectivo, se é que é possível ser completamente objectivo com os amigos. Pouco importa. Se têm dúvidas, nada como dar uma salada à sua gruta de Ali Babá, ali à Misericórdia, e confirmarem por vós mesmos. Entretanto, sigo a prosa.
O meu amigo Bernardo Trindade fornece-me material para os meus arquivos quase todas as semanas. E material de luxo! Muitas vezes, aquilo que aqui escrevo vou encontrá-lo nos milhares de páginas com que o Bernardo já presenteou a minha biblioteca, que começa a abaular o soalho da minha casa em Alcácer do Sal, a espreitar o Sado.
Eis-me, pois, com uma folha na minha frente que me ajudará a encher esta outra folha, neste momento praticamente em branco. Dia 29 de Agosto de 1964. Algo me salta imediatamente à vista: 'Ás 23 horas, em Cádis, efectua-se o embate entre Real Madrid e Benfica para o Troféu Ramón Carranza'. Supimpa! Onze da noite! O calor de Cádis em Agosto não é para brincadeiras. Dá para rachar a fachada da Catedral de La Santa Cruz sobre Las Aguas de Cádiz, tal como espanhóis a conhecem. Prossigo a leitura: 'Benfica e Real Madrid já se conhecem bem. O fabuloso conjunto espanhol, em fase de rejuvenescimento, desejará desforrar-se do malogro que, em Amesterdão, lhe infligiram os benfiquistas na final da Taça da Europa e que assinalou um período de doloroso declínio, mas os campeões portugueses, sempre briosos e valorosos, tudo farão decerto para contrariar os propósitos da equipa madrilena'.
Pois... o pormenor tinha verdadeiro interesse e despertava atenções para o jogo das 11 da noite, em Cádis: era a primeira vez que Real Madrid e Benfica se encontravam depois da final da Taça dos Campeões.


Vitória indiscutível!
A prosa da época tinha requintes de arabesco: 'O airoso estádio regurgitou de um púbico entusiasta que terá excedido a lotação. Foi no entanto pena que o vento ciclónico que durante o dia e a noite de ontem fustigou a região tivesse prejudicado e espectáculo impedindo que se praticasse bom futebol'.

Eusébio parecia ter um prazer especial em defrontar o Real. Depois dos dois golos de Amesterdão, mal se iniciou a partida de Cádis, juntou-se à ventania e começou a soprar rajadas sobre a defesa comandada por Araquistáin. O rapaz de Moçambique, na frescura dos seus 24 anos, espalhava o seu poder atlético por todo o terreno e arrastava atrás de si adversários desesperados, de língua de fora até aos umbigos.
Puskás tem um remate violento: Costa Pereira desvia a bola pela cabeceira.
Eusébio irrita-se. Recebe um centro bem medido de António Simões, vindo da esquerda, aplica o seu pontapé atómico, e é golo, inevitavelmente.
Reza a crónica que tenho nas mãos que a superioridade dos portugueses foi nítida durante o primeiro tempo nos que, a pouco e pouco, os espanhóis reagiram: com autoridade, e Amancio, Ruiz, Grosso, Gento e Puskás foram criando oportunidades de golo suficientes para justificarem o empate que empurrou o encontro para o prolongamento.
Afirma o cronista que nesse prolongamento o Benfica se atirou para o ataque com uma vontade impressionante, e que o Real Madrid, ficou encostado às cordas. Acrescenta ainda o autor do relato que o golo de Torres, logo aos 93 minutos, foi formidando, fruto de um remate pleno de força e colocação. Diz em seguida que os madrilenos ficaram às aranhas, incapazes de controlar as movimentações contínuas de José Augusto, Simões, Eusébio e Serafim, que Germano e Coluna assumiram uma autoridade digna dos orgulhosos Grandes de Espanha. Concluiu, finalmente, elogiando mais uma vitória do Benfica sobre o Real Madrid, vitória essa, ainda por cima, sem espinhas, limpa e cristalina como o céu que nascera essa manhã sobre o baía de Cádis quando o vento soprara para longe, muito longe, todas as nuvens.
Confesso: li e parecia que estava a ver. Ou melhor, acho que vi mesmo naquele momento em que, por segundos, fechei os olhos. Di Stéfano não estava em campo, como acontecera em Amesterdão. Eusébio não podia voltar a cobiçar-lhe a camisola... Vendo bem, já tinha uma."

Afonso de Melo, in O Benfica

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