"Analisámos o discurso dos especialistas em Ciências do Desporto e o dos intervenientes directos no sistema desportivo no artigo anterior. Passaremos de seguida para o discurso dos consumidores do espectáculo desportivo e dos receptores daquilo que é divulgado nos e pelos mass media desportivos e para o próprio discurso destes últimos.
Os consumidores do espectáculo desportivo, quer sejam espectadores ‘in loco’, quer sejam receptores do que é veiculado pelos mass media, em directo ou em diferido (TV ou imprensa), fundam o seu discurso num fenómeno de identificação com o clube ou com a modalidade e de posterior oposição em relação ao adversário. Mais preocupante quando fundam esse discurso em razões emotivas que ‘a posteriori’ se transformam em fundamentalismos… É o discurso da paixão e não o discurso da razão. É o discurso inflamado e não o discurso ponderado. É o discurso faccioso e não o discurso isento. É o discurso da reprodução e não o discurso da crítica ou da análise. É o discurso alterado e não o discurso sereno. É um discurso de opressão, um discurso de amarras…
Têm opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não consigam explicar os fundamentos das mesmas. Têm opiniões sobre tudo e sobre todos mesmo que não saibam do que estão a falar. É um discurso muitas vezes reprodutivo daquilo que escolheram – ou lhes fizeram escolher – para seguir na comunicação social.
Souness, nos tempos em que treinava o Benfica, em 1997/98, chegou a afirmar que “em Portugal todos os burros falam de futebol”, referindo-se aos comentários que eram dirigidos à sua actividade profissional e ao desempenho dos profissionais da equipa que orientava. Não deixava de, alegoricamente, ter razão... Mas Souness esqueceu-se de dizer que para esses burros falarem de futebol alguém ou algum meio lhes tinha metido na cabeça ideias sobre o futebol…
Os mass media, ou parte deles, procuram relatar factos e acontecimentos, apesar de esse relato não poder fugir a uma certa subjectividade e interpretação do seu relator, o que o torna parcial e arbitrário. E se parte desses media ainda procura… a outra parte elabora e propaga o discurso que tem de ser construído para vender.
A 27 de Janeiro a Espanha acabava de vencer o Europeu de andebol. Tragicamente, um helicóptero com nove pessoas despenhava-se nos Estados Unidos. A imprensa do país vizinho – Marca, Mundo Deportivo e As – ocupavam as suas capas com fotos a tamanho inteiro de Kobe Bryant. Os três principais jornais desportivos do nosso país retratavam o nosso futebol, o nosso futebol e o nosso futebol…
Como dizia Humberto Eco na sua obra “Apocalípticos e Integrados” (1976, São Paulo: Ed. Perspectiva), “os mass media, colocados dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à «lei da oferta e da procura». Dão ao público, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar.” Assistimos então na TV a transmissões futebolísticas com as imagens de quatro ecrãs num ecrã só em que não se vislumbram imagens do jogo jogado (mas tão só do seu envolvente) e onde este é relatado com essas imagens em fundo – é a rádio visual. Alain Woodrow em “Informação, manipulação” (1991, Lisboa: Dom Quixote), explica-nos que a imagem é insolente e pervertida pelo dinheiro e “é assim que todos os media, sob o jugo da imagem, se deixam pouco a pouco desviar do seu objectivo – informar – para se tornarem, por sua vez, manipuladores.” Transmite-se em cima do acontecimento (é o “chegar primeiro”) e transforma-se o espectador num ‘voyeur’ desencadeando nele emoções e retirando-lhe a possibilidade de parar um pouco para analisar a mensagem recebida (é o “formar o desinformado”) ao invés de procurar informar bem e correctamente através da imagem real do acontecimento mesmo que em directo (ou até em diferido) com a particularidade de nessas imagens passar publicidade encapotada. É esse o principal objectivo destas transmissões. Departamentos de marketing e de comunicação estudam e aplicam estas técnicas o que indica que não são ingénuas essas transmissões. Essa publicidade em primeiro lugar seduz e em segundo lugar leva ao consumo: uma forma camuflada de manipulação. E, na realidade, quem a paga é o consumidor final do produto publicitado – o espectador.
Assistimos depois a um sem número de programa de debate transformados em autênticos ‘reality shows’ os quais revelam por vezes uma certa tendência para influenciar ou manipular a opinião dos consumidores através dos ‘opinion makers’ e/ou dos ‘influencers’. O jornalista Daniel Deusdado (JN de 21.07.2011) diz-nos exactamente que “fazer jornalismo é produzir influência na opinião pública”. São mesas redondas, são debates, são programas sobre futebol e não sobre desporto, pois se perguntássemos a esses comentadores (normalmente um por cada um dos três “grandes clubes”) por que motivo uma baliza de futebol tem as dimensões que tem, qual a altura a que se encontra colocado um aro de uma tabela de basquetebol, quantas armas tem a esgrima ou quantos buracos existem num campo de golfe provavelmente (quase de certeza!) não saberiam responder. Nas palavras de Alain Woodrow em “Os meios de comunicação – quarto poder ou quinta coluna?” (1996, Lisboa: Dom Quixote) “os limites do abjecto são os do valor comercial do sórdido. E a merda vende-se bem.”
O consumo assíduo destes tipos de programa, para os quais nem sequer existe um espírito selectivo ou um espírito crítico, condena o espectador passivo ao obscurantismo. E é sempre mais fácil dominar uma pessoa criada neste meio ambiente…
E na internet, redes sociais incluídas, a divulgação de factos deturpados (há quem lhe chame ‘fake news’) é bem notória. Como disse o jornalista Luís Freitas Lobo (Notícias Magazine, n.º 1304, suplemento do DN de 21.05.2017) sobre a modalidade mais mediatizada “há algo que o futebol actual consagrou através do impacto da internet e das redes sociais: a verdade vende menos. A mentira é um produto lucrativo.”
Se tivermos em linha de conta toda a evolução do desporto e todo o conhecimento sobre este, reparamos que as crenças no mesmo – ou antes, nas suas finalidades – existentes desde o tempo do amadorismo e do «amor à camisola» ainda hoje se mantêm (o que é verificável pela linguagem utilizada pelos consumidores do desporto – o desporto forma, é um meio educativo, transmite valores, o desporto promove a saúde), quando esse «amor à camisola» se traduz actualmente por uma actividade onde a busca do lucro e da vitória é cada vez mais explícita. Consequência disto, no desporto, é a excepção ter-se tornado regra, ou seja, as perversidades sucederam, por evolução do desporto, a um estado ético onde existiam valores, estando estes agora cada vez mais ausentes."
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