terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Um Mercúrio negro voando na Luz



"Eusébio faria anos neste dia 25 de Janeiro. Recordá-lo é a obrigação de todos os que o conheceram o puderam vê-lo jogar no seu estilo que não tem imitação. Como daquela vez em que marcou quatro golos ao seu bom amigo Vítor Damas

Dia 25 de Janeiro. Dia de Eusébio. Ele que nasceu no dia 15 de Janeiro de 1942. Há tantas formas de recordar Eusébio, e nenhuma delas faz justiça a Eusébio. Talvez ou seja suspeito de o dizer e de o escrever: tive a felicidade de o ter como amigo. E a ausência dos amigos dói-nos para sempre.
De repente, da memória, sai um encontro entre dois velhos companheiros de muitas conversas: Eusébio e Damas. Com ambos reparti momentos de tanta cumplicidade. Dois adversários; dois homens por inteiro.
Estádio da Luz: o Benfica venceu o Sporting por 4-1.
Era Outubro de 1972. Eusébio e o esplendor dos golos.
Mais de 70 mil pessoas nas bancadas. A festa vermelha em flor.
Uns atacavam; outros defendiam.
Simões e Toni e Jaime Graça em movimentos bruscos, incontroláveis. Manaca e Laranjeira e Carlos Pereira aflitos, desesperados.
Laranjeira perseguia Eusébio, e Eusébio voava como um Mercúrio negro, de asas nos pés.
O Sporting tinha um treinador inglês, Ronnie Allen. Sempre foram bem-vistos, os treinadores ingleses em Alvalade. O Benfica tinha outro inglês, Jimmy Hagan. Poucos foram como Hagan, Jimmy Hagan.
Damas, o solitário Damas. Entregue aos demónios que vestiam de encarnado. Demónios à solta; demónios terríveis; demónios esfomeados.
E Eusébio? Como falar sobre Eusébio? Bastos que o diga. Apanhou-o por segundos, fugindo isolado para o que seria o primeiro golo. O aviso estava dado. De pouco serviu.

Sublime!
Trinta anos já haviam passado desde que Dona Elisa trouxera Eusébio ao mundo, no bairro da Mafalala, em Lourenço Marques.
E Eusébio corria como um garoto debaixo das palmeiras.
A defesa dos leões rachada em pedaços. Por cada frincha que se abria, Eusébio entrava como uma rajada de vento. Toca de cabeça uma bola metida na sua frente, domina-a junto à relva, desliza para lá de Damas, fica com a baliza na sua frente, faz o golo e saiu para festejar no seu jeito felino de pantera.
Pouco depois, noutro gesto magnífico, chuta com força para o ângulo inferior que Damas não atinge. Firme, ergue os braços. Fica durante segundos socando o ar com ambos os punhos. A tarde é dele. Tão completamente dele.
Enquanto decorre o intervalo, as pessoas desesperam. Querem continuar a ver a vertigem avassaladora de Eusébio. Sentem-no num momento extraordinário, percebem que ainda há muito para acontecer sobre a relva da Luz.
Parece que a história se repete. Dois golos seguem-se aos dois golos. Dois golos de Eusébio. Quatro golos de Eusébio.
Yazalde perdia-se entre Humberto Coelho, Malta da Silva e Messias. Mas consegue o golo. Um golo que cala gritos, mas não cala a confiança.
Os minutos decorrem. Há quem comece a pensar que Eusébio se cansou. Que tolice! Salta de súbito, finta Carlos Pereira, foge a Manaca, deixa Laranjeira aos papéis. Aí vai Eusébio! Quem pára Eusébio!? Ninguém! Ninguém! Bem podem tentar agarrá-lo pela camisola, bem podem procurar morder-lhe as canelas como cães dominados pela raiva, pela fúria. O homem é etéreo. Mistura-se com a brisa da tarde e vai e vai e vai, a bola acompanhando a sua fuga sublime, dispondo-se ao seu remate violento e colocado. Golo! Golo! Golo! Terceiro golo de Eusébio!
Mas falta-lhe ainda o golpe derradeiro. Num penálti primoroso, mete a bola lá no alto da baliza do seu amigo Vítor Damas, todo vestido de negro, uma espécie de luto triste.
Levantam-se os homens que rodeiam o recinto. As palmas multiplicam-se em mais e mais palmas. Eusébio no centro da Luz.
Às vezes, perguntou-me: como continuar a recordar Eusébio? De que forma fazer-lhe justiça nestes dias em que voltaria a fazer anos? A resposta é dada pela memória. E Eusébio recorda-se a si próprio. Em toda a sua grandeza."

Afonso de Melo, in O Benfica

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