segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O amarelo a Corona que nos resgata a esperança

"Onde se fala de uma série ameaça para os trapaceiros Quando a televisão mostrou que João Afonso não tinha sequer tocado em Corona, aos 67 minutos do jogo no Dragão, sentimo-nos todos enganados.
O lateral do FC Porto tinha mentido.
Entrou na área, foi à procura da falta e atirou-se para o chão perante a proximidade de João Afonso. 
Impressionante, aliás, como os jogadores caem em grande estilo. O trabalho que aquilo não deve dar a ensaiar, para as quedas serem tão perfeitas, tão bonitas, tão fraudulentas.
O árbitro marcou penálti, julgando (como todos nós) que a falta tinha sido inequívoca. Mas não. João Afonso até retirou o pé para não tocar em Corona.
O mexicano levou o embuste até ao fim, burlou o adversário, mentiu ao árbitro e iludiu-nos a todos. 
Felizmente agora existe vídeo-árbitro. Que não deixa as mentiras passar incólumes.
Por isso o penálti foi revertido, Corona viu o cartão amarelo e todos ficamos com a esperança que o futuro seja mais verdadeiro: que os trapaceiros percebam que é mais difícil aldrabar.
Porque no fundo é disso que se trata: aldrabar o adversário, o árbitro e o adepto. 
Aldrabar o futebol.
Pelo menos aquele amarelo resgata-nos a esperança num futuro mais verdadeiro."


PS: Santa ignorância... e neste caso, o apitador reverter a decisão, única e exclusivamente, porque com 2-0, não havia necessidade!!!

"Os melhores guarda-redes do mundo são o Oblak e o Ederson. Nem há volta a dar. Têm algo que só grandes têm, como o Júlio"

"(...) como o próprio diz, uma peça no motor que é uma equipa técnica. Apaixonado pela baliza, é treinador de guarda-redes há quase duas décadas, passou pelas selecções nacionais e pelo Benfica, antes de chegar à Premier League com Marco Silva, actualmente no Everton, onde diz que o jogo é totalmente diferente: "Defender cantos e livres em Portugal é como limpar o rabo a meninos. Em Inglaterra é como ir para a trincheira na 2ª Guerra Mundial. Porque eles não marcam nada. É doloroso até"

Ele diz que não foi bom guarda-redes, mas quem o conhece diz que é dos melhores treinadores de guarda-redes. Aos 40 anos, Hugo Oliveira faz parte da equipa de técnica de Marco Silva no Everton, onde treina o internacional inglês Jordan Pickford, que diz que está a caminho do patamar dos melhores do mundo: Oblak e Ederson, pois claro, dois guarda-redes que Hugo Oliveira treinou no Benfica, onde esteve entre 2011/12 e 2015/16. "Têm uma coisa que os grandes têm, como tinha o Júlio César e como quero que o Jordan vá tendo: uma capacidade de trabalho tremenda e a capacidade de olhar para si próprios e perceber quando erram."

Normalmente quem anda no futebol prefere Porsches ou Ferraris, mas chegaste aqui de Renault 4L. 
[risos] Se calhar até poderia aparecer num desses, mas seria um Porsche de 40 ou 50 anos. Gosto de carros com história. Gosto da história das coisas. Acho que nós falamos demasiado do presente e olhamos muito para o futuro, sem perceber que o que somos e que muito do que está ou vai acontecer é reflexo daquilo que já se passou. Em quase todas as áreas, as coisas acontecem por ciclos e muitas vezes cometemos os mesmos erros porque não percebemos os ciclos do passado, quer do ponto de vista económico, quer histórico. O futebol já passou por fases extremamente resultadistas, há muitos anos atrás, e depois chegou a momentos de romantismo, se olharmos para as décadas de 60 e 70. O jogo é quase olhado como uma arte...

Depois na década de 90 já não.
Em 90 voltámos ao resultadismo, à questão de encarar apenas o fim, sem pensar no meio. É por isso que gosto de olhar para trás, antes de olhar para a frente. Portanto, com os carros penso que é um pouco isso. Posso chegar ao mesmo sítio, mas se calhar desfruto mais do caminho assim [risos]. 

Falavas dos vários momentos do futebol: como achas que está actualmente?
Bom, estamos num momento importante. Vivemos numa era, estando o futebol agregado à sociedade, em que o resultado é extremamente importante. Porque o jogo está ligado a questões financeiras: as equipas e os clubes usufruem, consoante os seus resultados finais, de benefícios financeiros. Os jogadores, com as suas performances, usufruem de benefícios financeiros. E isso faz com que, às vezes, o fim deturpe o meio. O jogo está um pouco assim neste momento. Estamos a pensar em chegar extremamente rápido ao resultado, sem pensar que chegar rápido nem sempre é chegar bem, e o jogo, na sua essência, pode perder-se por aí. Acredito e sinto que há algumas equipas, treinadores e pensadores a olhar o jogo novamente com uma vertente diferente, mais ligada ao que é a arte do jogo. Ou seja, para chegar ao resultado existem muitos caminhos. Não acho que exista só um caminho para o jogo. Há muitas formas de viver e, no jogo, há muitas formas de jogar. O objectivo é sempre o mesmo: quero marcar mais golos do que o adversário e ganhar. O jogo acarreta sempre o querer ganhar e há muitas formas de fazer esse caminho. Na minha opinião, acho que estamos outra vez a ter em alguns países, alguns treinadores e alguns pensadores que estão a demonstrar que quiçá o melhor caminho, na minha ótica, é ter essa vertente de domínio através da bola, que faz chegar com mais segurança e de uma forma mais eficaz ao objectivo do jogo, que é o golo.

É assim que preferes ver o jogo?
Prefiro ver um jogo em que as equipas preferem ser intérpretes, querem dominar, querem ter a bola para jogar, querem ganhar. Acima de tudo, acho que é isso: se quero ganhar, onde é que estou mais perto de ganhar? Estou mais perto de ganhar se for eu a ter a bola, não é? Tenho de pensar o jogo como um todo, mas naquela que é a minha função prática, que tem muito a ver com a especificidade daquilo que é o papel do guarda-redes no jogo, que é um papel que está muito diferente daquilo que era no passado, tal como o jogo está diferente. As regras que têm vindo a ser alteradas no futebol têm muito a ver com o papel do guarda-redes, se pensarmos nisso. Os guarda-redes estão a intervir em todos os momentos do jogo de forma a ajudar a equipa a atingir o fim. Há dois momentos no jogo fundamentais: como inicias e como terminas. Se reparares, o guarda-redes interfere nesses dois momentos. Como inicias o teu jogar diz-me quem és, logo, quem toma essa decisão inicial? Quando temos um pontapé de baliza, quem é que decide para onde é que vamos jogar? Se vamos jogar curto, se vamos jogar longo, se vamos jogar por fora, se vamos jogar por dentro. Todas essas decisões do guarda-redes interferem no jogar da equipa, da mesma maneira que, no outro momento que mencionei, o momento de parar, de defender a baliza, o guarda-redes interfere não só através do seu posicionamento mas também nas relações que tem com a equipa. Por isso, se pensarmos, o jogo tem vindo a modificar-se de uma forma que dá ainda mais responsabilidades ao guarda-redes.

O guarda-redes decide como se inicia, mas, antes disso, há...
[interrompe] Há uma ideia. Não entendo um processo que não seja um processo como um todo, de uma forma holística. O treinador tem de ter uma ideia, assente num pensar...

Sim, mas a minha questão é se o treinador de guarda-redes tem de se submeter a essa ideia do treinador principal.
O futebol é um jogo colectivo, não podemos esquecer isto. É feito de associações entre os jogadores, que procuram colocar dentro do campo a ideia do treinador, para ganhar esse jogo. Nesse sentido, o que entendo é que, durante a semana... Treinar é criar constrangimentos para chegar a essa ideia. No meu entendimento, treinar é criar hábitos, para chegar a essa ideia. Durante a semana, preparas o guarda-redes para tomar essas decisões, de acordo com o pensar da tua equipa e de acordo com a estratégia para o jogo, para o adversário. Mas, perante aquilo que está a acontecer no jogo, o guarda-redes toma decisões por si só. O que acho que menos pode acontecer e que quiçá tem vindo a acontecer, principalmente na formação, é a robotização dos jogadores, particularmente dos guarda-redes. É ele que tem de tomar decisões, porque se o adversário não está a condicionar a saída é diferente de haver uma pressão alta a condicionar. Imagina que tenho os dois centrais abertos para jogar e condicionam-me com dois adversários e depois ainda há outro a condicionar o nosso médio. Tenho de saber que o principal papel do guarda-redes nesse momento é ajudar à criação de superioridades. Nesse sentido, é importante que ele tome boas decisões para depois ganharmos superioridades. Aquilo que acho que é importante é isto: existe uma ideia colectiva, existe uma função individual, mas depois, lá dentro, quem toma as decisões são os jogadores, mas nunca sem esquecer o ADN da própria equipa e aquilo que é o objectivo do jogo. Onde é que quero chegar naquele momento? Tenho de saber isso, para saber por onde quero iniciar. E aí é fundamental, como em tudo, o treino, para que as coisas saiam de forma mais simples e fluida. O que não pode acontecer é a anarquia: o guarda-redes decidir sem saber onde vão estar posicionados os colegas de equipas e os colegas de equipa não saberem por onde vai o guarda-redes iniciar e nem o que vai acontecer depois dele jogar. Se o objectivo é criar superioridade então ele tem de saber que o que ele vai fazer vai ter repercussões no jogo, quer no jogo da equipa quer no jogo do adversário, mas depois há ferramentas coletivas para sair daquela posição. O guarda-redes tem de ser sempre um elo de superioridade, porque o adversário normalmente acaba por fechar os jogadores de campo e libertar o guarda-redes e, quando saltam ao guarda-redes, libertam outro jogador - seja curto ou à distância, há sempre uma homem livre.

Mas na perspectiva do trabalho prático... Com certeza já estiveste integrado em equipas técnicas com ideias distintas entre si. Como é que se encaixa aí o papel do treinador de guarda-redes?
Como elemento da equipa técnica, acho que devemos entender que participando activamente estamos sempre mais perto de atingir os nossos objectivos. Há muitos treinadores de guarda-redes que não querem muito saber como vai jogar a equipa ou quem vai jogar, mas isso para mim é tanga. É fundamental que eu esteja completamente por dentro daquilo que é a ideia da equipa, do que é o jogar da equipa, para perceber o que tenho de periodizar. Não faz sentido chegar ao jogo sem saber o que temos de fazer nem faz sentido não preparar o que vai acontecer no jogo, mesmo sabendo que depois muito do que acontece é aleatório, porque o jogo não tem nenhum fio condutor definido por antecipação. Na equipa técnica tens de ter uma voz ativa naquilo que é o aconselhamento, mas depois a decisão do treinador é a decisão final, é a decisão da equipa técnica, e nós, enquanto assistentes, ajudamos a que o processo seja preparado no campo nesse sentido. Acho que é uma vantagem quando vais jogar e sabes o que queres fazer: sabes como queres começar e sabes como queres acabar. Por isso é que é fundamental que o treinador de guarda-redes esteja completamente por dentro da ideia. Repara, um exemplo: se a minha ideia é sair curto para atrair e depois ir buscar superioridades mais à frente, é igual se sair curto pela direita ou pela esquerda? Não é igual, porque os jogadores que estão lá são diferentes, as características são diferentes. Enquanto treinador de guarda-redes, tenho de ajudar o guarda-redes a ter perceção disso, porque as associações são feitas de maneira diferente. Se tenho um jogador que tem dificuldades em receber e orientar para fora, se tenho outro que o faz para dentro, se tenho outro que prefere receber no espaço... É fundamental que eu, enquanto elemento da equipa técnica, mesmo sendo treinador de guarda-redes, saiba quem vai jogar, saiba qual é a estratégia e tenha opinião sobre isso. Mas, atenção, depois do treinador definir o caminho, o caminho é aquele e mais nenhum. É assim que tenho vivido e é assim que acho que deve ser. Porque o jogo é coletivo, o pensamento é do treinador e da equipa técnica e é um pensamento de um só caminho, sem descurar toda a discussão que possa haver até ao momento da decisão final, porque há muitas visões e as visões diferentes às vezes ajudam à criação de uma ideia melhor e mais sustentada.
A propósito da construção e criação de superioridades a partir do guarda-redes: não sei se viste, mas recentemente o Artur Moraes disse, no canal 11, que achava que achava que o treino de guarda-redes era excessivamente focado no jogo de pés.
Não vi, mas ouvi falar disso. Acho que é fundamental que se olhe para o jogo e se perceba quais são as missões do guarda-redes no jogo. O guarda-redes, naquele que é o jogo actual, tem uma interferência muito grande no processo ofensivo e no processo defensivo. Quem não entender isto, não entende o jogo. Se é assim que acontece no jogo, acho que no treino também tem de acontecer assim. O que tem vindo a acontecer, e quiçá foi isso que o Artur quis dizer, é que alguns treinadores podem ter vindo a esquecer aquilo que é a base e o fundamental do trabalho do guarda-redes, que é a defesa da baliza. Pode ter sido isso que ele quis passar. A base do guarda-redes é defender a sua baliza. E mesmo o que apaixona os miúdos a quererem ser guarda-redes não é jogar, não é participar com os pés - se não queriam ser jogadores -, é defender, é voar. O sonho de um guarda-redes é voar. Não podemos esquecer isso. É ser um anti-herói do jogo, não é? O grande objectivo do jogo é o golo, mas o guarda-redes é alguém que diz assim: 'Não, não, espera aí, ninguém vai festejar'. Por isso é que nós, nesta área, somos todos um bocadinho do contra [risos]. Creio que na formação é que se tem descurado aquilo que é a defesa da baliza e quase robotizado aquilo que é o perfil de um guarda-redes para determinados jogares. Eu não acredito nisso, não acho que a formação do guarda-redes seja feita para um determinado jogar, para uma determinada equipa. Por exemplo, há clubes em que 80% do jogar é ofensivo, é um jogar em que têm a bola e que têm departamentos de formação de altíssima qualidade. E eu pergunto: onde estão os grandes guarda-redes formados nesses clubes? Quiçá a ideia foi formar e preparar os guarda-redes para um determinado jogar. Se calhar esse jogar ao qual se referia o Artur, no qual a participação no jogo com o passe atrasado, a iniciação do jogo no processo de construção era exacerbado. Nesse sentido, quando chegam ao que é o futebol atual - não gosto da designação moderno, porque evoluir nem sempre quer dizer isso - quiçá não estão preparados, porque não têm bases sólidas relativas à defesa da baliza. Mas jogar, participar com no passe atrasado, iniciar a construção... hoje isso é fundamental e obrigatório num guarda-redes de elite. Quem não entender isso, não está a ver o jogo como ele é hoje em dia. É uma responsabilidade e às vezes exacerbamos o erro, e a repercussão que esse erro tem, por isso é que depois se diz que o guarda-redes sente pressão. Pressão não é mais do que defraudar as expectativas que têm de ti. Podes ser tu a defraudar as tuas expectativas, podes defraudar as expectativas que a tua família tem de ti, podes defraudar as expectativas que a própria sociedade tem de ti. Nesse sentido, é importante que estejas tranquilo para tomar decisões no jogo. Há guarda-redes que se sentem melhor na defesa da baliza do que no passe atrasado, mesmo cumprindo os requisitos essenciais.

E depois há guarda-redes como o Ederson, com um jogo de pés muito acima da média.
O Ederson sempre teve um grande à vontade para jogar com os pés, para participar no processo de construção.

Por ter mais qualidade técnica ou pelos factores cognitivos e emocionais?
As coisas nunca se podem dissociar, isso é impossível. Há grandes exemplos no futebol mundial de guarda-redes que dominam todas as técnicas, têm todas as ferramentas, mas depois quando lá estão, quando a chapa esquenta, têm grandes dificuldades em estar predispostos para tomar grandes decisões. Uma das coisas com que mais me preocupo, quiçá até no jogo global, mas neste caso específico do guarda-redes, é com o facto de achar que falta pausa ao jogo. O Ederson tinha - e tem - essa pausa, no seu viver e no seu jogar. E é engraçado, porque tinha pausa para jogar com os pés, mas nem sempre tinha essa pausa para jogar quando estava no momento de defesa da baliza, porque queria comer este mundo e o outro, em processos de defesa do espaço e até nos cruzamentos. Foi importante perceber que ele foi evoluindo nesse sentido e ganhando pausa noutros momentos. O que sentimos no City com a entrada dele é um encaixar do puzzle, é fabuloso. Quando sentes que as associações individuais, ligadas a uma ideia de jogo colectiva, batem certo, tudo sai como uma fluidez quase natural, nada é forçado, e assim voltamos à simplicidade, que é o mais belo que existe. Pensa assim: os treinadores só têm intenções. Têm uma ideia, claro, porque se não tiverem uma ideia, não sabem para onde é que estão a ir. E depois têm intenções, enquanto os jogadores têm possibilidades. E quando nós encaixamos as intenções do treinador com as possibilidades do jogador, é fabuloso. No City, sentes que a intenção colectiva é de jogar, dominar através da posse da bola e da criação de superioridades, e aquele jogar individual do Ederson associa-se de forma fabulosa com aquele pensamento colectivo. Por isso é que se sente tanta paz quando se vê o jogo, porque ele tem pausa. O difícil é quando sentes a pressão a chegar de um lado ou do outro, do lado aberto ou do lado fechado, e teres pausa para perceberes de onde é que podes sair.

O mais fácil é colocar a bola para longe.
Exacto. Por isso é necessário sentir quase essa 'paz', que também vem de fora. Lembro-me que algumas pessoas tinham algumas dúvidas em relação ao jogar do Ederson e ao Manchester City, porque o Ederson tinha um jogo à distância fabuloso, mas nem sempre se via no jogo curto. Porque no Benfica não era preciso ter jogo curto, as equipas não vinham pressionar. Na Liga portuguesa as equipas não iam pressionar, mas as pessoas nem sempre conseguem ver a realidade de uma forma clara, cada um vê aquilo que conhece. Quando há essas dúvidas sobre o jogo curto, a resposta tem a ver com isto: é mais fácil jogar quando sabes o que está a acontecer do que quando tens de decidir no meio do acontecimento. Quando o Ederson recebe, ele sabe que tem obrigatoriamente uma solução por dentro, um solução por fora e uma solução à frente, e que o objectivo é ir buscar o terceiro homem. Simples, tão simples quanto isso. Agora, se não tiver essa pausa e se não tiver ferramenta, vai conseguir fazê-lo? Vai ter dificuldades. Mas ele tem ferramenta para fazê-lo. A técnica é fundamental, é a técnica que vai fazer com que uma boa decisão seja uma boa ação. Tu podes tomar uma boa decisão, mas depois se não executares com qualidade, esquece. Por isso é que o Ederson encaixa como uma luva no City. E podemos dizer que ainda tem um caminho para evoluir e vai evoluir no seu jogar global, não só no processo ofensivo mas defensivo.

O City quando iniciou a época com o Liverpool - por acaso até era o Bravo e não o Ederson - utilizou o guarda-redes como central no pontapé de baliza, já que agora a regra mudou [a bola agora não precisa de sair da área para estar jogável], para superar a pressão a três do Liverpool. Essa mudança vai envolver ainda mais os guarda-redes na saída?
Claro, tem a ver com o que te estava a dizer. O jogo mudou muito na década de 90, quando o guarda-redes deixou de poder agarrar a bola depois de um passe atrasado. E quem é que esteve no meio da decisão? O guarda-redes [risos]. Agora, o jogo voltou a ter uma nova nuance com esta mudança no pontapé de baliza. Repara: o jogo tem tudo a ver com tempo e espaço. Essa nova lei permite-te ganhar tempo e espaço, vem dar vantagem a quem quer jogar, a quem quer iniciar o jogo. Essa lei vai dar-te, fazendo as contas de cabeça, pegas na área e medes as distâncias, portanto dá-te mais 665 metros quadrados de espaço, e vai dar-te mais tempo, o tempo que tens quando tocas na bola e até eles conseguirem entrar dentro da área. Se conseguir iniciar bem, vou conseguir acabar melhor. Se alguém me saltar na pressão, é nesse meu colega livre que vou tocar e inicio com vantagem. E, repara, isso nem sempre quer dizer que tenhas de sair curto, porque se alguém te saltar de uma forma eficaz à pressão, saltando tanto a ti como aos jogadores mais próximos, então estão a libertar jogadores à frente, e é fundamental que o guarda-redes tenha capacidade para gerar jogo de forma longa também. Nós temos essa vantagem com o Jordan Pickford [no Everton], por exemplo. Se sentimos que podemos ganhar vantagem à frente, vamos lá. Porque ainda é só onze contra onze e ainda ninguém evoluiu no sentido de pôr o guarda-redes adversário a fazer pressão no avançado. Se eles quiserem saltar todos à pressão, vão libertar algo. O que tem vindo a acontecer é que as equipas têm saltado à pressão mais à frente e tem criado igualdades mais atrás. Vemos muitas situações de três contra três ou dois contra dois lá atrás, consoante a coragem. Ou seja, se o guarda-redes tiver essa pausa para ver o curto e o longo, podemos gerar vantagem. Repara: se agora colocássemos as estradas com mais uma faixa e a velocidade máxima aumentava para 180 km/hora. Íamos aumentar o espaço e dar mais velocidade. Dizes-me assim: "Ah, vai haver mais acidentes". Não, ia haver acidentes se tu não soubesses o que estás a fazer, se pusesses um carro que nem consegue andar a 100 a andar a 180. Se souberes o que estás a fazer, se tiveres uma ideia, se souberes o caminho que queres percorrer e se tiveres jogadores com ferramenta, então corre bem.

O Pickford não é um guarda-redes com muita pausa.
Não, mas está a trabalhar para isso [risos]. É engraçado que o Pickford jogava num contexto... Foi muito rápido. Ele fez as divisões todas mais baixas dos campeonatos ingleses sempre a jogar, fabuloso. Chegou ao Everton muito jovem, com um processo de jogo sempre extremamente baixo, quase sem espaço para defender, que exacerbava o que ele tem de forte, que é uma capacidade de grande velocidade na defesa da baliza. Nós chegámos ao Everton e o Marco [Silva] gosta de um jogar dominador, gosta de um jogar corajoso, ofensivo, em que a última linha quando não tem a bola está lá à frente, existindo muito espaço entre o guarda-redes e a última linha e, nesse sentido, foi uma adaptação para o Pickford. E esta época ele tem sido fabuloso.

Na selecção inglesa tem um contexto semelhante.
Sim, ele esta época tem sido fabuloso, quer connosco quer com a selecção. Percebe que é preciso ter pausa para tomar boas decisões e para perceber o que é defender o espaço, porque é muito mais difícil defenderes 30 ou 40 metros do que estares ali na linha da baliza à espera que as coisas aconteçam. Ele tem evoluído o seu jogo e isso ajuda colectivamente a equipa.

É difícil um treinador de guarda-redes convencer os guarda-redes a saírem do espaço de conforto junto à baliza?
Claro que eles se sentem mais confortáveis onde passam mais tempo. Como disse, nós temos intenções e eles têm as suas possibilidades. Há determinados perfis, mas podes aprender em qualquer idade.

Consegues distinguir um guarda-redes que facilmente...
[interrompe] Tem é de ter coragem. Nós vivemos numa era em que existem muitos guarda-redes que não querem que a bola chegue lá, o que é extremamente preocupante. Quiçá isso advém da própria educação que damos aos nossos filhos, em que os protegemos de tudo, não queremos que eles tenham problemas, tudo é fácil... E o trabalho do guarda-redes é extremamente difícil. Há guarda-redes que não querem que a bola chegue e, por isso, para jogar em mais espaço, é preciso ter essa coragem, para dominar o espaço. Como te dizia, nós, enquanto treinadores, temos essa intenção de mostrar um mundo novo e mostrar que ele tanto ele como a equipa saem beneficiados com essa forma de jogar. E os guarda-redes, como qualquer jogador, têm de entender que fazem parte de um coletivo e o objetivo é sempre o coletivo. Por isso, é fundamental que eles entendam que esse forma de estar é a melhor para o coletivo. Agora estamos a falar de um momento que eu chamo de 'zona espaço', que no fundo é a defesa do espaço, e isso vai levar a uma coisa que, na minha opinião, é uma das maiores demonstrações de inteligência, que é a prevenção. Se posso impedir que a equipa adversária chute à baliza, não vou fazer isso? Se não quero sofrer golos... Se posso impedir que um passe entre nas costas da defesa, não vou impedir? Claro, se previno, estou a retirar problemas. Rio-me imenso com análises que fazem à prestação dos guarda-redes. Gosto de ler as redes sociais e acompanho os programas de televisão - esta é a sociedade em que nós vivemos e tenho de entendê-la. Se não a quiser entender, vivo numa bolha à parte e acho que o pessoal do futebol não vive numa bolha, vivemos todos no mesmo mundo, com as mesmas ambições e sonhos. Nesse sentido, rio-me com muitas análises... Com avaliações do género: "Ah, o guarda-redes não teve trabalho". Ou: "exibição fácil".

Porque não teve momentos de defesa da baliza.
Exactamente, porque não fez aquelas grandes defesas. E, atenção, a maior parte das defesas às quais as pessoas dão mais valor normalmente são recursos, porque se estiveres bem posicionado consegues prevenir muito do que vai acontecer e podes tornar fácil aquilo que para muitos dá mais nas vistas se for feito de maneira difícil. Lá está, mais uma vez tem a ver com aquilo que é a sociedade hoje em dia: este exagero de informação, este exagero de complexidade é que dá qualidade às coisas? [Finge que lê uma folha] "Eh pá, isto está fabuloso! Porquê? Porque nem consigo entender". Está tão confuso que deve ser espetacular. O mais complexo dos processos é o simples.

Por exemplo?
Dou um exemplo, sem qualquer tipo de problema: o Oblak faz as coisas tornarem-se tão fáceis, não achas? Nós jogámos a meia-final da Liga Europa no estádio de Turim, frente à Juventus, chovia imenso, é dos jogos que mais tenho presentes na minha mente, porque a vida são momentos que tu vives com sentimento. Ficámos com menos um jogador, difícil, a Juventus jogava a final em casa, se passasse, e tinha uma equipa cheia de astros. Lembro-me que eles criavam e chutavam, chutava o Pirlo, chutavam outros, cruzavam... O jogo acabou e, no final, estava eu com o Jan [Oblak] e ele depois entrou no balneário e o Pirlo veio ter comigo e disse: "Acha que nós estávamos a chutar devagar? Como é que ele faz aquilo?" O estar no espaço adequado, no tempo certo, com essa pausa, faz com que as coisas pareçam mais simples, mas isso tem muito de complexo por trás. Acho que esse é um dos grandes trunfos dos grandes, tem a ver com o posicionamento: a defesa do espaço, onde estar. Quando um bom médio ofensivo quer meter o passe nas costas da defesa adversária e está a ver aquele espaço que ninguém vê (cada vez há menos jogadores desses), ele está a ver a linha defensiva, está a ver o que o colega pode fazer e está a imaginar o que pode acontecer, mas se o guarda-redes estiver lá... se calhar ele já não mete o passe a passa a bola para o lado. E eles andam ali a tocar para o lado. E eu estou sentado no banco e penso assim: "Que grande defesa". Porque preveniste uma situação de um contra um. O passe podia ter entrado no espaço, havia uma situação de um contra um, ele driblava o guarda-redes e fazia golo, e depois quem analisa os guarda-redes ia dizer assim: "Não podia fazer mais nada". Mas se estivesse um metro mais à frente, se calhar aquele passe já não funcionava. Por isso é que essa percepção do que é o papel do guarda-redes não pode ser só visto à luz de um ou outro momento, assim estamos a radicalizar. Uns pensam na defesa da baliza, outros no passe atrasado. Não existem só estes dois mundos, o jogo é a relação de todos os momentos, e depois ainda há o momento do cruzamento, do um contra um, dos esquemas táticos, em que cada vez mais o guarda-redes ganha preponderância, não só nos defensivos mas também nos ofensivos. Repara, muitos dos esquemas táticos ofensivos são iniciados pelo guarda-redes na construção. Da mesma maneira, voltando ao posicionamento, a forma como se posiciona o guarda-redes no esquema tático defensivo diz muito da prevenção que a equipa faz nesse momento. Onde é que estou no canto, se o batedor está com o pé esquerdo ou direito? Como é que oriento a linha? Por isso é que o guarda-redes tem de conhecer o jogo e as ideias da equipa, em termos colectivos, para saber onde fica cada jogador e como é cada jogador. Por isso é que bato nesta tecla: eu, treinador de guarda-redes, tenho de saber como é que joga a minha equipa, qual é a ideia de jogo do treinador, qual é a estratégia para este jogo, quais os posicionamentos nos esquemas táticos, para eu poder ajudar o guarda-redes. Depois, no jogo, tem de ser ele a tomar as suas decisões. Cada adulto toma cerca de 35 mil decisões por dia, atenção. E depois há outra coisa: dessas 35 mil, a maior parte são emocionais. Isto de dizermos que somos animais racionais... [risos] Ok, somos animais racionais, mas, atenção: se disseram que a maior parte das nossas decisões são racionais, é tanga. Antes de pensar, nós sentimos. E é por isso que nós enquanto treinadores criemos contextos, é o que eu digo, constrangimentos para criar hábitos, para que esse sentimento, esses impulsos, essas decisões emocionais surjam de uma forma que vá ao encontro dessa ideia coletiva. Por isso, no treino, parte do meu objetivo é quase criar marcadores, como diz Damásio, marcadores somáticos.

Como?
Imagina, quero que numa situação de passe nas costas da linha defensiva em que se cria uma situação de um contra um, quero que se a receção do adversário não for a melhor, ou se o primeiro toque for muito adiantado, quero que ele ataque. Gosto de um guarda-redes de redução, que chegue. Mas, se o avançado tiver a situação controlada, que pare e diga: então vamos lá. Agora é um duelo de cowboys: quem é que tira primeiro a pistola? [risos] É um pouco isto. Então tenho de criar condições no treino, obviamente do mais simples para o mais complexo. Tenho de construir isso no treino e quando corre bem, pá [bate uma palma], eu meto um marcador. Dou um grito, faço uma relação, qualquer coisa, porque ele tem de sentir, ele tem de ter sentimento. Tem de perceber que aquilo foi o adequado. Às vezes não sei se é ver para crer ou crer para ver. Tenho de lhes mostrar que eles saem beneficiados. É ir de um momento consciente até ao momento inconsciente, para ficar lá gravado, porque se a maioria das decisões são emocionais, elas vêm do inconsciente. Não pensas se vais apertar o primeiro o sapato do pé direito ou do pé esquerdo, isso sai de forma inconsciente. No jogo, se o cruzamento está a sair e estão cinco ou seis gigantones a saltar para cima de mim, a decisão de sair ou não é dura - porque este ainda é o momento mais difícil do jogo para o guarda-redes, é o cruzamento, porque tem todos os outros momentos juntos e a definição de espaço e tempo é muito mais curta e tem muito mais obstáculos. Essa decisão, se fosse completamente racional, tinha de ter tempo para parar e pensar e fazer análise... e entretanto já tinha sido golo e a decisão que tinha de tomar era se ia buscar a bola com a mão direita ou com a mão esquerda dentro da baliza. O guarda-redes tem de ter uma decisão que venha rapidamente do seu inconsciente, por isso é que o treino tem de criar esses hábitos.
O jogo, por si só, não chega para treinar um guarda-redes...
[interrompe] Não.

Se a parte da defesa do cruzamento é a mais difícil, precisas dos outros para treinar, não consegues fazer isso apenas em treino específico, certo?
Primeiro ponto: no jogo e no treino... Vamos lá ver, nós não vivemos em Portugal e o guarda-redes vive nos Açores [risos], não está sozinho numa ilha.

Passa lá férias e depois volta.
[risos] Passa, mas se passar muito tempo, então alguma coisa está errada, porque começa a perder a velocidade em que a sociedade no continente vive, porque normalmente nas ilhas a vida é um bocadinho mais lenta. Como ele não vive numa ilha, vive dentro de um todo, ele tem de estar dentro desse todo. A utilização da expressão "treino específico" a maior parte das vezes é mal adequada. O específico para o guarda-redes é jogar, não é estar num canto, a treinar em três metros quadrados, cai, levanta, cai, levanta, cai, levanta. Isso não é trabalho específico, anda muita gente enganada. Específico é fazer aquilo que envolve a tua especificidade no jogo e isso é jogar, no processo ofensivo e no processo defensivo, e nas transições. Do mais simples ao mais complexo, tens de preparar um processo de aprendizagem em relação às ferramentas que são necessárias nesses momentos do jogo, desde a posição corporal à orientação dos apoios, com que pé fazes a chamada e atacas a bola, as técnicas de recepção da bola... E depois estares a fazer algo que sabes como vai acabar e terminares em algo que não sabes como vai acabar. Mas isso, à parte, não te chega, tens de te ligar com a equipa e, hoje em dia, os guarda-redes têm de passar muito tempo com a equipa. Mas não são só os guarda-redes, são os treinadores de guarda-redes também. Umas das coisas que não entendo é a seguinte: normalmente as equipas têm mais que dois guarda-redes e os treinadores chamam dois para situação de jogo e depois fica um guarda-redes à parte. E o treinador de guarda-redes fica à parte e depois roda os guarda-redes, e assim ele não viu nada do que se passou no treino. Ele não interferiu em nada, não analisou nada. Como é que ele ajuda o guarda-redes? Muitas equipas de topo do futebol mundial já estão a optar por ter dois treinadores de guarda-redes.

Já sentiste essa necessidade?
Ainda não tenho sentido essa necessidade, tenho conseguido estar presente nesses momentos.

Como?
Através do planeamento. Porque eles podem estar a interferir os três, se criares uma situação dessas e, às vezes, ganha mais um guarda-redes a estar comigo a analisar o colega, porque analisar é treinar. Agora, as pessoas acham que, cada vez mais, analisar é pôr alguém em frente a um vídeo. Não, analisar, é analisar aquele momento. Voltamos outra vez à sociedade: vivemos numa sociedade em que achamos que tudo o que é rápido é que é bom. Achamos então que treinar rápido é que é muito bom. Costumo dizer isto: no treino do guarda-redes nós vivemos a era do tuning, anda tudo tuningado, porque estamos numa época em que todos gostam de fazer vídeos para o Youtube...

Falas daqueles exercícios com muitas bolas de diferentes formas e tabelas e saltos?
Muitas vezes não entendo se o objectivo é jogar futebol ou não. Claro que podes criar estímulos e, do ponto de vista fisiológico, há muitas ferramentas que podes utilizar para o teu treino, mas nunca podes descurar o jogo. O verdadeiro treino para a especificidade é quando o guarda-redes está com a equipa - e o treinador de guarda-redes tem de estar presente nesse treino e tem de interferir, no guarda-redes e às vezes até no processo colectivo. Tenho beneficiado por trabalhar com pessoas que pensam dessa maneira e que me ajudam. No processo em que trabalhamos agora, o treinador sabe da importância que o guarda-redes tem no jogo. Quando ele pensa o jogo, pensa com o guarda-redes. Se penso no jogo, também tem de pensar no treino. O guarda-redes está inserido na preparação, sem esquecer, claro, a preparação comigo, em questões que achamos que são importantes.

Toda a gente diz que o guarda-redes tem a posição mais ingrata. É mesmo assim ou é só um cliché que se repete no futebol?
O nosso cérebro tem muitos vieses. Para explicar de forma mais simplista: nós vivemos agarrados a muitos preconceitos. Por duas razões: primeiro, porque sustentam as ideias que temos e, depois, porque se o meu vizinho diz, ou se a sociedade diz, é porque deve ser assim. Então partimos do princípio que é assim. É essa, é ideia de que para ser guarda-redes tens de ser maluco... Posso até ir mais longe e ser mais radical: a ideia de que não podem haver bons guarda-redes de cor, a ideia de que a pequena área é toda do guarda-redes, a ideia de que não se pode sofrer golos ao primeiro poste... Isso são tudo imagens e preconceitos que fomos ganhando através dos tempos e, como não dominamos os assuntos, temos tendência a partir do princípio que está correto, da mesma maneira que se diz que as mulheres loiras são menos inteligentes ou que as pessoas no Alentejo não gostam de trabalhar. O guarda-redes tem - pelo menos para mim, quiçá porque sou tão apaixonado - a posição mais bela do jogo. E acho que quem interfere no futebol deve concordar, porque, como te disse, cada vez se dá mais importância à posição. Se reparares, tudo o que de belo há no desporto, o guarda-redes tem: a capacidade acrobática, a força, a inteligência... Eles estão presentes na maior parte das decisões do jogo, portanto têm de ser extremamente inteligentes, ter uma grande percepção do jogo. Outro preconceito... Lá está, nós utilizamos muito pouco do nosso cérebro, vamos muito atrás da carneirada, não é? Acho que vai começar a haver cada vez mais treinadores que foram guarda-redes. Como está a acontecer: Nuno, Lopetegui...

Valdés... Outro tema muito debatido é a altura mínima para um guarda-redes. Tem de ser alto?
O perfil do guarda-redes para o jogo atual tem algumas características que ajudam, tanto do ponto de vista cognitivo como do ponto de vista fisiológico. Se fores mais alto, podes beneficiar, se estiveres no sítio certo à hora certa, aí beneficias de ser mais alto, e tens de tomar a decisão certa e ainda tens de utilizar a técnica correta. Se olharmos para as grandes competições e para os grandes clubes, os guarda-redes têm uma média de alturas semelhante. Agora, não acho que tenha de se levar ao exagero, quer na escolha, quer no mínimo de altura, porque se forem muito altos também têm dificuldades noutros momentos do jogo. O equilíbrio é fundamental.

Normalmente o exemplo que se menciona em Portugal é o Beto, que é mais baixo [tem 1.80m].
Não é assim tão baixinho [risos]. O Anthony Lopes [1.84m] também é um dos melhores guarda-redes do campeonato francês e não é assim tão alto. O Oblak [1,88m] também não é gigante. Acho que um adulto normal agora... estas novas gerações são muito altas, os pais puxam pelas orelhas [risos]. Pedir que um cidadão adulto tenha entre 1.85m e 1.89m acho que não é pedir muito. Isso do tempo em que tínhamos 1.70m já lá vai, a papa Cerelac puxa a malta para cima [risos]. Lá está, é uma questão secundária, acho que há coisas muito mais importantes do que isso. Como te disse, quero é alguém que queira que a bola chegue, que queira participar no jogo. Cada vez há menos guarda-redes assim, porque os miúdos têm medo que a bola chegue, principalmente porque o processo de formação tem vindo a perder essa qualidade de fazer com que os guarda-redes sejam intervenientes no jogo de uma forma corajosa, sem criar robotizações daquilo que é o perfil do guarda-redes - se calhar exacerbado por essa procura da altura. O treino deve interligar o conhecimento que hoje em dia existe do ponto de vista tático com a intuição que existia no passado. Havia muito mais paixão no treino de guarda-redes no passado. Havia muito mais golpe de asa, que é uma expressão de que gosto. Os treinadores tinham mais golpe de asa, os jogadores tinham mais golpe de asa e depois quem tinha de ter mais asa era o guarda-redes. Temos de sacar esse golpe de asa, que vem dessa intuição, dessas situações do inconsciente. Isso não vem das robotizações. Por isso existem mil e uma coisas com a mesma importância da altura e quiçá até mais importantes.

Sempre se falou muito do melhor jogador do mundo, depois passou a falar-se do melhor treinador do mundo... Vamos chegar a uma altura em que se vai discutir quem é o melhor treinador de guarda-redes do mundo?
Ah, não acredito nisso. Nós somos partes de um todo. Imagina um motor, que tem as suas peças. As peças ajudam a que o motor funcione bem. Cada ser humano tem as suas ambições e a sua fome, e o futebol tem estado a tornar-se, com esta questão resultadista e dos números, num exagero em relação às quantificações. Quem é o melhor disto, quem é o melhor daquilo - e muitas vezes achando que o melhor é encontrado com dados objectivos e há coisas que se perdem. Repara, já trabalhei com muitos guarda-redes e com muitos treinadores, e se me perguntares qual é a satisfação que se tira, é a satisfação dos momentos que vives e de conseguires ajudar alguém a alavancar a sua vida profissional e pessoal. O Beto, o Oblak, o Ederson, a felicidade do Júlio [César] ou do Gomes no Watford, já mais maduros... A sensação que tenho com eles foi a mesma que tive com o Hugo Marques, quando começa a jogar no Gil Vicente, ou chegar ao Hull City e o Eldin Jakupovic, que só tinha feito meia dúzia de jogos, fazer seis meses fabulosos e conseguir o contrato de uma vida no Leicester e ajudar a sua família. A satisfação é essa, não é quem é o melhor disto ou o melhor daquilo. Olhando pelas gerações mais novas, até vês isto pelas redes sociais, parece que o futebol é a coisa mais importante do mundo. Não é nada. Isso é tanga. Eu estava no União de Leiria, na 2ª Liga, e nós até dezembro ou janeiro tínhamos um plantel de qualidade, o guarda-redes era um brasileiro chamado Fernando Prass, fantástico, com muita ferramenta e muito inteligente. Não sei por que razão não jogou num grande em Portugal, há coisas que não acontecem. Nós quase não ganhávamos jogos e o Fernando era quase sempre o melhor em campo. Queríamos subir de divisão, havia uma pressão tremenda, chegámos ali a Janeiro e o presidente mudou tudo. O Fernando tinha uma proposta do grande clube do Brasil e quis sair, e foi fabuloso para o clube. Nós tínhamos um guarda-redes: era o Ricardo [Nunes]. Nós perdemos um grupo de jogadores importantes, mas o Ricardo começou a jogar e subimos de divisão, não subiu o Santa Clara, na última jornada. O Ricardo foi para a Académica, lá ganhou uma Taça de Portugal, chegou ao FC Porto e hoje está no Chaves. Agora tem um problema de saúde e vocês vão dizer-me que o futebol é a coisa mais importante no mundo? Não. A coisa mais importante do mundo é a família. Claro que as tuas actividades, como o futebol, ajudam-te a chegar à tua "fome": para uns a "fome" é dinheiro, para outros é poder, para outros é vivenciar momentos. A sociedade atual vê as coisas de uma maneira que é... espuma. Não vemos o que está por baixo.

Quando eras miúdo ias à baliza? Ia, ia. Gostava de jogar ou na baliza ou a ponta de lança
[risos]. Joguei no Paredes, muitos anos, era júnior e já treinava com os seniores...

Eras bom?
Não, não era bom guarda-redes. Era ágil, tinha alguma percepção dos momentos, mas tinha uma incapacidade, às vezes física e às vezes sendo demasiado... consciente. Se calhar era demasiado racional para jogar à baliza [risos]. Porque pensava e fazia muitas perguntas - e também é por isso que, mais tarde, entro no treino, porque um dos meus treinadores, o Fernando Valente, também me chateou para dar esse passo. Tenho 40 anos e estou quase a chegar ao 20º ano de carreira. É engraçado. Sempre gostei muito. Hoje em dia acho que a malta do treino de guarda-redes tem a tentação de proteger demasiado o guarda-redes. Às vezes quando se sofrem golos e se cometem erros, tenta-se encontra ali sempre qualquer coisa para dizer que não, não foi um erro. Quando queres ajudar, tens de ser sério na análise e, para fazer os outros evoluir, tens de perceber esse mundo real.

Quem eram os teus guarda-redes preferidos?
Vou dizer isto sem sentir vergonha: eu gostava do [René] Higuita. Gostava muito do Higuita porque gostava de coragem e, como te disse, na altura vivíamos numa altura mais ligada a esse romantismo. O Higuita fazia coisas que faziam algum sentido, na defesa do espaço e no início da construção, mas ele não sabia porquê, e depois caía num erro: no meio da anarquia, ele ainda era mais anárquico. Também gostava do Amadeo Carrizo, argentino, estava à frente do tempo, porque prevenia, iniciava jogo e interpretava. Quando comecei a ter mais consciência, adorava a dicotomia Baía-Preud'homme. Repara nisto: nós somos um país com um nível de exigência tremendo para os guarda-redes, com olho para a importância do guarda-redes no jogo. Qual é o país que teve Preud'homme, Schmeichel, Júlio César, Casillas, Enke, Ederson, Oblak... Todos guarda-redes que, nas suas gerações, estiveram no top mundial. Num país pequeno como o nosso... Acho que temos perceção da importância desta posição e somos extremamente exigentes em relação a ela. Mas Portugal é dos poucos países da Europa que ainda não tem uma licença de treino de guarda-redes da UEFA. Vai ter que ter. Neste momento a UEFA já trabalha com 40 países, das 55 federações. A Federação portuguesa tem de dar esse passo - e vai dar, tenho a certeza que vai dar. Mas os treinadores de guarda-redes existentes são extremamente apaixonados. Desde 2008 até agora procurei sempre ajudar a criar momentos de partilha em relação à área, e há cinco anos que fazemos um congresso internacional e trazemos cá os melhores treinadores de guarda-redes do mundo e normalmente homenageamos sempre alguém. Já foi o Júlio César, o Helton, Peter Shilton, e o primeiro foi... Baía e Preud'homme. Juntámos os dois e foi uma delícia ouvi-los. Eles próprios admitiram que jogarem um contra o outro e quererem ser melhores do que o outro ajudou-os imenso. Imaginas o que era para um jovem como eu ver o Domingo Desportivo e ver esses dois monstros da baliza.

Mas ainda não pensavas em ser treinador.
Não. Sempre quis estar próximo do jogo, porque venho de uma família apaixonada por futebol, que acompanhava um clube da 3ª divisão, que entretanto acabou. Fizesse chuva ou sol, todos os domingos estávamos lá. Era um clube chamado José Alves, que estava ligado a uma antiga empresa. Acho que uma das primeiras fotografias que tirei foi para o cartão de sócio. Obviamente quando somos pequenos e estamos neste ambiente, isso vai criando uma paixão e vai criando aquilo que tu és. Imaginava-me a fazer parte do jogo, dentro ou fora dele. Fazia muitas perguntas, queria perceber e isso direcionou-me para essa área. Houve pessoas que me disseram que tinha perfil e alavancaram-me.

Não imaginaste ser treinador principal?
A paixão pela baliza é muito grande. Eu sou muito apaixonado, divirto-me imenso no dia a dia, no treino, naquilo que é o meu trabalho. Viver é a procura da transcendência. E a minha transcendência é na área do treino de guarda-redes. O meu balão de oxigénio está aí.

Como é que chegas ao Benfica?
Estive no Rebordosa, Marco, Gil Vicente, Leiria e quando subimos de divisão no Leiria ligou-me o Carlos Queiroz para ir para a selecção nacional. Fui, depois entretanto Queiroz sai e fico nas selecções jovens. É nessa altura que me liga o presidente Luís Filipe Vieira. Não conhecia ninguém no Benfica. Fiquei satisfeito, claro, e disse-lhe que tínhamos de pensar, porque o treino de guarda-redes num clube daquela dimensão não podia ter o treinador de guarda-redes só a pensar na equipa principal, tinha de pensar em todo o clube. E ele disse que aquela era uma das razões pelas quais estava a ligar. Foi por isso que fui para o Benfica, onde tive cinco anos e meio fabulosos.

Houve alguma mudança no trabalho diário, pela pressão de entrar num clube grande?
A diferença é externa. O trabalho num grande clube dá outra visibilidade, quiçá, mas eu estava na seleção nacional, não senti grande diferença. Claro que na selecção não trabalhava de forma diária, mas são grandes projetos. O Benfica tem a sua própria grandeza, como o FC Porto e o Sporting, o que faz com que tudo o que acontece tenha repercussões na sociedade, porque o futebol é extremamente importante em Portugal.

Entras no clube, também com essa perspectiva de coordenação, mas depois és inserido numa equipa técnica com um treinador que não conheces. Como é essa integração?
Repara, até chegar ao Marco Silva, em que, aí sim, decidi fazer parte da equipa técnica - e estou extremamente feliz com essa decisão, foi o momento certo, com as pessoas certas -, trabalhei sempre um pouco, entre aspas, sozinho. Ou seja, eram os clubes que ligavam e contratavam. Foi assim no Marco, no Gil Vicente, na selecção, no Benfica. Tens de ter quase uma certa humildade intelectual. Acho que essa é a expressão adequada. Tu é que chegaste, tu é que tens de te adaptar, sem perderes a tua natureza. Tive de me sentar com o treinador, na altura o Jorge Jesus, e perceber qual era o jogar, qual era a função do guarda-redes no jogar, qual era o caminho. E tinha de me adaptar ao pensar do treinador. Quando chegou o Rui Vitória, igual. Na formação foi diferente, porque aí foi a criação de algo que não existia, que foi o projecto "Eagle One", a criação de um departamento de guarda-redes. Foi das coisas mais bonitas que vivi até hoje porque foi fazer nascer, do nada, uma metodologia relacionada com o treino de guarda-redes e com o papel do treinador de guarda-redes. A satisfação de ver isso agora à distância é a de perceber que se alavancou a carreira de alguns guarda-redes. Qual é o clube que, nos últimos anos, tem guarda-redes que formou espalhados por outros clubes? André Ferreira no Santa Clara, Bruno Varela no Ajax, Miguel Santos na Roménia, o Zlobin que subiu à equipa principal, o José Costa que está no Cova da Piedade, e outros que levaram partes desse entendimento, como o Mika, que está na Académica, ou o Ederson, no City, e o Oblak, no Atlético de Madrid. A satisfação de saberes que ajudaste esses guarda-redes com uma forma estruturada é muita. E tivemos um grupo fantástico de treinadores jovens que semana atrás de semana partia pedra e ia fazendo crescer um entendimento, e eles próprios foram crescendo enquanto treinadores de guarda-redes.

Como o Fernando Ferreira, que agora subiu para a equipa principal do Benfica.
Esse é um dos papéis das instituições e foi uma das minhas metas e obrigações: ajudar a fazer crescer os profissionais do treino de guarda-redes no clube, no sentido de que no dia, como aconteceu e eu sabia que iria acontecer, que eu fosse para um outro projecto, as pessoas iriam continuar por lá. Um deles é treinador da equipa profissional, como disseste, outro foi roubado, entre aspas, pelo Sporting e é o coordenador do departamento de guarda-redes lá [Miguel Miranda], um está na Aspire, o Ricardo Pereira... E há outros que são aliciados muitas vezes, porque também têm muita competência, como o Ricardo Leite e outros. Isso é uma satisfação para mim. Tal como é com os guarda-redes, que foram formados para o futebol actual e não apenas para um determinado jogar, porque tu podes estar num clube e muda um treinador e muda completamente o jogar. O guarda-redes tem de estar preparado para todas as formas de jogar, para o futebol. Também não mencionei o Virgínia, que saiu para o Arsenal e agora está a jogar no Reading. O Benfica está hoje com um treinador de guarda-redes de altíssimo nível. E é engraçado porque muitos dos guarda-redes que apanhei são agora treinadores de guarda-redes: o Serrão no Santa Clara, o Celso no Belenenses, o Ricardo na formação do FC Porto, o Jorge Baptista no Reading, o Paulo Lopes no próprio Benfica.

Já que falaste no Paulo Lopes, houve uma época em que ele não foi utilizado por Jorge Jesus e acabou por não ser campeão. E houve também uma altura em que a a entrada de Oblak no onze estava difícil. A minha pergunta é: qual é a influência do treinador de guarda-redes na escolha do guarda-redes que deve ser utilizado no jogo?
Isto é preto no branco: em todos os processos, com todos os treinadores, comigo, é sempre igual. Dou o meu aconselhamento, as decisões são dos treinadores. A decisão do treinador... estou com ela até ao fim. Preparo-a e defendo-a com unhas e dentes, porque faço parte, sou um elo, da equipa técnica e do clube, faço parte de um projecto colectivo. Tenho de ter, para ficar bem comigo próprio, e para ajudar ao processo também, porque não acredito que os "yes men" sejam benéficos, a minha opinião, mas a decisão final é sempre do treinador. Os treinadores optaram por jogar com A ou B, sem qualquer tipo de problema. Penso que os treinadores assistentes têm a obrigação de ajudar a simplificar e desbloquear muitas situações nos grupos, para que elas não cheguem aos treinadores principais. Nesse sentido, uma das satisfações que tenho, durante todos estes anos de carreira, é não ter tido problemas nas relações entre os guarda-redes e com os treinadores. Claro que há sempre histórias de momentos piores e momentos melhores, mas sem conflitos. Agradeço a todos com os quais trabalhei e que me fizeram evoluir. A análise de Daniel Pacheco, a intuição de Regadas, a humildade de Paulo Alves, a confiança de Manuel Fernandes, o carisma de Ilídio Vale, o planeamento e a inteligência intelectual de Queiroz, a vinculação tática de Jesus ou a motivação de momento de Rui Vitória deram-me muito conhecimento para o que sou hoje, para pôr ao serviço de um treinador que domina o que o futebol atual de formal global, dentro e fora do campo, como Marco Silva, ofensivo, corajoso e gestor do fenómeno de alto nível. Estas vivências deram-me conhecimento a todo o nível do jogo ofensivo e defensivo. Aprendi com todos e retirei muito e espero que quem saia beneficiado sejam os guarda-redes.

O que destacas como melhor momento?
Há muitos momentos. São muito anos a virar frangos [risos]. Estou no Marco, num momento difícil do clube, estivemos seis meses sem receber, jogava o Beto - e que bem que estava a jogar. A minha carreira também foi sempre beneficiando daquilo que eles foram fazendo, tenho de lhes agradecer. Lembro-me de estar sentado lá com ele e queixávamo-nos que a vida estava difícil, que aquilo era o fim do mundo, o que é que estávamos ali a fazer... Mas conseguimos foco através do jogar. Anos mais tarde encontrámo-nos na selecção [sorri]. É um pouco isso. São momentos assim que marcam. Depois saio do Marco, quando a época está quase a acabar, para ir para o Gil Vicente, e o clube estava já muito empurrado para a descida de divisão, mas acabámos por conseguir a manutenção na última jornada, contra o Belenenses, e aí foi um momento importante pelo trabalho efetuado - se bem que depois tudo iria cair por terra com o famoso caso Mateus. Mas que me fez criar uma relação forte com o clube, com o presidente, com as gentes da cidade... São esses momentos que marcam a vida. No ano seguinte, estamos numa sexta-feira para jogar na 1ª divisão, depois no domingo não jogas, porque tens de jogar na 2ª Liga. Depois jogas na 2ª Liga e quase sobes de divisão, mesmo começando com pontos negativos. Os momentos são vividos com pessoas. O futebol não é o estádio, os campos de treino e a instituição. São as pessoas do clube e são os adeptos, que são a alma do clube. Podes mudar as direcções e a essência do clube não muda, mas o caminho que o clube segue muda, porque isso tem a ver com as pessoas. Tenho tido sorte de passar por gente boa. Depois do Gil, outro momento marcante para mim foi a estreia na selecção nacional. O primeiro jogo foi na Dinamarca, empatámos 1-1, golo do Liedson, empatou de cabeça. Nunca mais me vou esquecer do início do jogo. É a primeira vez que canto o hino naquela situação. Os dinamarqueses super educados, em silêncio absoluto, e havia lá uma margem de adeptos portugueses. Foi a primeira vez que senti aquele espírito emigrante, daquelas pessoas que estavam lá, do que é sentir-se português. Quiçá até lá não tinha assim tanta identificação com o país, porque as novas gerações, acho que começando na minha, já têm a mania que somos cidadãos do mundo e esquecemo-nos da história deste país fabuloso que já foi fundamental para o mundo. Depois há esses momentos todos no Benfica também. Não só os jogos e as festas, mas o percurso. A satisfação de ver um guarda-redes a sentir que está no caminho certo. 

Por exemplo?
Às vezes tentava puxar o Oblak um bocadinho mais para a frente, queria que ele reduzisse o espaço em alguns momentos. Estávamos a trabalhar em cima disso e queria que ele acreditasse, que ele desse esse passo. Isso ia mudar um pouco o jogo dele. Fomos jogar ao Belenenses e sofremos um golo em que senti que ele não deu aquele passo à frente, não reduziu... e depois o fiscal de linha levantou a bandeira, porque estava fora de jogo. No final, ele vem ter comigo e diz: "Hugo, eu sei porque é que a bola entrou. Eu sei o que é que não fiz". Pá [bate uma palma], já está. Ali estava um marcador somático, já estava dado o passo. Isso para mim é uma grande satisfação. Tal como agora em alguns jogos do Jordan [Pickford], em que estamos a iniciar a construção e ele pára e olha, antes de tomar a decisão. Deixa sair alguma pressão para depois tocar para o lado a bola. Depois chega ao final do jogo e vem ter comigo assim: "Tu gostaste daquilo, não gostaste? Eu sei que tu gostaste daquilo" [risos]. Ele é muito engraçado. Eu fico muito feliz com isso.
É mais fácil esse processo quando eles são jovens? Por comparação com o Júlio César, por exemplo. 
Não, não. Porque estas coisas também me aconteceram com guarda-redes com mais maturidade, com o Júlio, com o Gomes no Watford, ambos experientíssimos. Às vezes acho que as pessoas nem têm bem noção sobre quem é Júlio César. Júlio César é o imperador. Quando Júlio César passa no Brasil o povo pára. Quando Júlio César passa em Itália o povo pára. Foi um dos melhores guarda-redes do mundo, principalmente porque também é uma pessoa fabulosa, um ser humano fantástico. O Júlio chegou ao Benfica depois de um momento difícil, em que até pensou em desistir da carreira, depois do Campeonato do Mundo no Brasil. Quando me disseram que o Júlio César vinha, fiquei feliz, não é? [risos] A felicidade de trabalhar com um astro das balizas, que eu via à distância. Rapidamente percebi o tão bom e tão simples que era. E era muito bom para este futebol actual, porque dominava todos esses momentos, desde o início de construção até às questões de prevenção, além de ser fabuloso na linha da baliza, com uma velocidade fantástica, e com uma disciplina de trabalho grande. Mas havia coisas, claro, em que se pode sempre dar passos diferentes. Foi gratificante ver o Júlio querer caminhar nesse sentido.

Por exemplo?
Vou contar uma história, acho que ele não leva a mal. Estávamos no final de ano e ele renovou e fez um jantar com os amigos, e eu estive presente, com a nossas famílias também. E ele diz assim: "Vou fazer uma pergunta: qual foi o golo que tu achas que mais me custou sofrer no Benfica?" E tu podias responder a maior bacorada, mas eu sabia qual era o golo. Porque tinha a ver com algo sobre o qual diariamente falávamos. Foi um golo com o Braga numa eliminatória da Taça de Portugal, que tinha a ver com o não antecipar, nesse duelo de cowboys. Deixa o adversário sacar a pistola primeiro e só depois é que nós matamos, porque nós vamos ver tudo. Vamos ver como vai abrir o pé, porque ele vai olhar para o chão... E o Júlio tinha uma velocidade incrível, por isso se ele tivesse estabilidade com uma posição base adequada o Júlio tirava a bola do cuco, como nós costumamos dizer, fácil e ainda dormia uma soneca pelo caminho. Nesse golo, ele achou, pela interpretação que fez, que o jogador ia colocar a bola num determinado sítio e antecipou-se. E depois a bola acabou por ir para o lado contrário. Quiçá podia nem defender, mas ele sabe que eu gosto de estabilidade, gosto de um guarda-redes... Como disse, a sociedade agora gosta de velocidade e rapidez, no jogar e no treinar, e quiçá a minha imagem de marca é ajudar a saber parar. Ajudar a estar no sítio certo e a dominar esse momento, para depois sacar a pistola [risos]. Muitos treinadores de guarda-redes têm o sonho de lançar um jovem guarda-redes, mas eu tive a mesma satisfação em ver esses jovens, como o Beto, o Ederson, o Oblak, o Jordan, do que quando via a felicidade do Júlio a jogar no Benfica - e tão útil que foi para o Benfica. Ou o Gomes, tão imbuido no espírio coletivo como estava no Watford.

Quando é que conheces o Marco Silva e como integras a equipa técnica dele no Hull, em 2016/17?
É importante também dizer isto: o Benfica e o seu presidente fizeram tudo para que eu continuasse no clube, mas achei que era o momento de sair. As coisas são públicas: o Rui Vitória quis trazer uma pessoa que tinha trabalhado com ele, ele era a minha chefia e o clube obviamente teve de ir ao encontro da vontade da chefia. Se assim era, achei que não podia ficar no clube com outras funções, porque no meu projecto, na minha cabeça, o entendimento era que o coordenador fosse o treinador, para que os guarda-redes quando chegassem à equipa principal integrassem de uma forma que fosse fluída e correta. Foi isso que fiz perceber às pessoas, que não era bom continuar, nem para mim nem para o clube. Durante alguns meses foi incrível a força que o presidente e que o dr. Domingos Soares de Oliveira fizeram para que continuasse no clube, mas depois perceberam que não era possível. Nessa altura recebi contactos de alguns treinadores, portugueses e estrangeiros, o que foi engraçado. A minha opção foi ficar com o Marco Silva e foi uma opção que fiz de forma racional, até por identificação do jogar e da forma de estar, e tem sido uma experiência fantástica. Também porque, alavancado por ele, como é óbvio, tenho usufruído da experiência de estar num dos melhores campeonatos do mundo.

A Premier League é muito diferente?
Muito, muito. Tanto no jogo como na envolvência que tem, o que também acaba por afectar o próprio jogo. Principalmente por duas razões: pelo público e pelas arbitragens. São as duas questões que fazem com que o jogo mude. O público é extremamente apaixonado, de uma forma positiva, e as arbitragens libertam o jogo para decorrer de forma muito mais fluída. Não quer dizer que sejam melhores árbitros, atenção, quero reforçar isto. A forma de apitar é que é diferente. O facto de muitas faltas não serem marcadas faz com que haja mais percas e transições e isso cria um jogo de maior dinâmica - e acrescentando a emoção dos adeptos isso cria espectáculos fantásticos. Até para te dar um exemplo: em Portugal ou noutros países da Europa defender cantos e livres laterais para os guarda-redes é para meninos. É como limpar o rabo a meninos. Em Inglaterra é como ir para a trincheira na 2ª Guerra Mundial. Porque eles não marcam nada. É doloroso até. Não marcam nada. Podem mandar-te abaixo que eles não marcam nada, é muito difícil.

Por isso é que há equipas que tentam agora ficar o mais longe possível da área nos livres, por exemplo.
Claro, para evitar a confusão. Depois tens os melhores jogadores do mundo, tens os melhores treinadores do mundo e isso leva uma vertente táctica fantástica para o jogo. E claro que a forma como preparam e vendem o produto é muito organizada e muito bem direccionada. Quer dizer, não quero que fique a ideia de que a liga é boa porque é bem vendida, não é isso. A liga é boa porque tem grandes intervenientes e obviamente a questão financeira é apetecível, porque os clubes recebem muitos investimentos, mas também porque a cultura futebolística é muito positiva, gostam do jogo, idolatram o jogador, mas ao mesmo tempo respeitam quem dá o máximo, percas ou ganhes. Claro que agora com proprietários de outras nacionalidades e uma outra relação resultadista está a chegar a questão dos vários despedimentos e da maior instabilidade, mas, em contrapartida, com os adeptos existe um grande respeito pelo profissional de futebol. Repara, até a taça, que não é organizada pela Premier, tem à mesma um ambiente fabuloso. Nós fomos jogar ao Lincoln há pouco tempo, equipa da League One, e o ambiente era fantástico. Eu desfruto imenso. Porque eu parava ao sábado à tarde, com nove ou dez anos, para ver jogos ingleses. Quando era a final da Taça então era mítico. Porque a vida não é só ganhar. Olha, outro momento marcante: o Marco fez um trabalho fantástico no Hull City. Chegámos e era um clube que estava completamente condenado. Tivemos performances de grande qualidade e lutámos até ao final pela manutenção. No último jogo... Quando os jogos terminam, nós ficamos sempre lá, a partir pedra entre nós, a conversar sobre o jogo entre a equipa técnica, por isso demoramos sempre muito a sair, cerca de duas horas. No último jogo, descemos de divisão. Quando saímos do estádio, o Marco tinha cá fora montes e montes de pessoas a pedirem-lhe para ficar na época seguinte, a cantarem o nome dele. Achas que isto era normal em Portugal? Numa equipa que tinha acabado de descer de divisão? São estes momentos que marcam e que fazem sentido, e que realmente mostram que a Premier League é diferente.

Mas tens a família longe.
Claro que o que custa mais é estar longe da família, perder algumas das coisas simples da vida, que, no fundo, são as mais importantes. Mas, ao mesmo tempo, o futebol e a profissão permitem-te ajudar a que a família tenha acesso a conhecimento, a momentos bons, por isso amo o que faço.

Quem regressou a Portugal foi o João Pedro Sousa, que fazia parte da vossa equipa técnica como adjunto. Imagino que estejam a acompanhar o Famalicão.
Claro, claro, não só acompanhamos como vemos de bandeira na mão. Famalicão, olé [risos]. Foi um passo importante na carreira do João, era algo que ele queria e teve o apoio de todos nós, claro. Tem toda a competência para ter sucesso, num clube a quem tenho de tirar o chapéu.. É mais uma demonstração que, em Portugal, quando se fazem as coisas com pés e cabeça elas acontecem naturalmente. Com o novo projecto, o Famalicão subiu de divisão e está a fazer bem as coisas na Liga, com os pés assentes no chão. É certamente um desafio aliciante para o João, mas não é fácil, porque estamos a falar da construção de um novo plantel, com atletas que vêm de todo o lado, com um nível etário baixo. Temos de dar muito mérito ao que está a fazer. Como amigo, digo-lhe já que ainda vai perder muitos jogos, mas nesses jogos terá a sua tranquilidade habitual.

O posicionamento do guarda-redes do Famalicão é sempre muito arrojado em organização ofensiva. 
Sim, o João trabalhou com o Marco e ele também tem esse entendimento. O Marco é um treinador corajoso, que gosta de um futebol atractivo, ofensivo, que gosta que as suas equipas tenham a bola para mandar e, acima de tudo, é um treinador que joga para ganhar. Como todos deviam ser, não achas?

Há quem jogue para não perder.
Todos deviam jogar para ganhar. O João certamente sabe onde está, sabe as armas que tem e não tenho dúvidas que vai ter sucesso. Quero é que ele desfrute do caminho e que não se esqueça que vai perder muitos jogos, porque isso também é importante que as pessoas saibam.

Ouvi dizer que tens uma biblioteca que nem cabe em casa.
[risos] Quase. Gosto muito de ler. Se calhar sou um comprador compulsivo de livros, que nem sempre consigo ler um de cada vez, porque depois chego a meio e depois abro outros.

Tens tempo?
Essa falácia do tempo... As pessoas dizem sempre que não têm tempo, mas as pessoas, às vezes, são duas coisas: preguiçosas e desorganizadas. Há sempre tempo. Mas eu também tenho uma vantagem grande: não preciso de dormir muito.

Quantas horas?
Não sei bem... No dia a dia, no máximo, seis horas. Gosto muito de ler. Nós vivemos numa altura em que há muita informação e as pessoas têm muito acesso a informação. O grande segredo para viver bem hoje em dia é saber fazer uma peneira entre o que realmente interessa e o que não interessa. Hoje em dia há muita espuma, que muitas vezes só sustenta aqueles vieses que temos no cérebro. Eu procuro saber coisas de muitas áreas diferentes, porque a vida é um todo e o futebol não é mais do que um espelho da sociedade. Queremos passar uma ideia e criar hábitos neles, para que eles acreditem e lutem por essa ideia, porque estamos a falar de homens com sentimentos, com decisões emocionais e que têm "fomes" - e convém descobrirmos a "fome" de cada um e saber que trabalhar com o Júlio é completamente diferente de trabalhar com o Oblak, trabalhar com o Jordan é completamente diferente de trabalhar com o Ricardo. O saber de muitas disciplinas permite-te retirar o melhor para ajudá-los. Se estivermos completamente obcecados com uma área, deixamos de vê-la com a distância suficiente para entendê-la. Se estamos muito próximos, não vemos com profundidade. Por isso é que gosto do mar, tem uma profundidade... Porque quando não sabes o que está a seguir, queres sempre saber mais.

Mas em Liverpool...
Não, Liverpool tem rio, é igual ao Porto. Tem o rio Mersey. Eu moro mesmo em cima do rio para depois chegar ao mar. Não falta profundidade [risos]. Como a música. Tenho formação musical que me incutiram quando era criança e sempre gostei muito. Quando estava no Gil Vicente, para fugir, aprendi saxofone. Agora no Everton aprendi guitarra eléctrica. Uma hora por semana não custa muito para fugir e dar uns acordes. Porque, se reparares, a música é quase como o futebol. São das poucas linguagens que em qualquer ponto do mundo são iguais. Um dó é um dó na Rússia, em Portugal e na China. Um passe com a parte de dentro do pé é igual em qualquer lado. Essa linguagem universal acho que é fabulosa. Repara que a maior parte dos problemas que as sociedades e as pessoas têm é por falta de comunicação. Às vezes perguntam-me qual o livro que mais me marcou. Acho que não é por marcar, mas o mais importante devia ser o dicionário. Se a palavra tivesse o mesmo significado para todas as pessoas não era tudo muito mais simples? O problema é que depois a palavra tem vários significados para várias pessoas. Na conversa com um guarda-redes uma palavra mal dita pode estragar a comunicação. E noutra língua.

E noutra língua.
Por isso, conseguir saber de mais áreas e fugir da obsessão da tua vertente profissional faz-te, na minha ótica. ser melhor naquilo que realmente é importante na tua vertente profissional, porque dá-te outra sensibilidade.

Lembras-te, claro, do Klopp dizer que o jogo dele era heavy metal e o do Arsenal era mais clássico. Qual é que preferes?
Prefiro blues, porque tem muita pausa. Porque vem de quem trabalhava com muito afinco e não tinha liberdade e através da música passou mensagens fantásticas. Repara que, no blues, muitas vezes não tens som, mas para passares de uma nota para a outra há pausa. E faz sentido. Quem não tem entendimento, nem nota que não se está a tocar nada, mas faz sentido ter a pausa. Mas isto do futebol também te tira... O [John] Mayall vem ao CCB agora e não vou poder ir ver porque tenho o trabalho. Mas em contrapartida temos o City para jogar, o Arsenal, o Manchester... e essa é uma das vantagens da Premier League, porque há esses momentos. Há muitos treinadores que gostam do treino, eu gosto é do dia do jogo.

Dormes bem nesse dia?
Ah, sim, durmo sempre bem, pouco mas bem. Não tem qualquer interferência. Às vezes durmo pior é após o jogo, por causa do nível de intensidade cognitiva com que estás durante o jogo e também porque ficas a pensar nas nuances. Agora, antes, já tens a consciência de que fizeste o que podias e, particularmente, de outra coisa: o futebol é dos jogadores. Meus senhores, façam o favor de pôr em prática aquilo que nós treinamos. 

Para terminar, a pergunta incontornável: quem é o melhor guarda-redes do mundo?
Ufffff... Mas por que premissas? A questão é essa. As premissas da FIFA? Da UEFA? Da sociedade, que tem a ver com os números? Os títulos? E para que jogo? O melhor guarda-redes para que tipo de jogar? O contexto é fundamental. Claro que há necessidades obrigatórias para jogar no futebol actual e há guarda-redes que jogam em qualquer equipa do mundo. Por isso, os melhores guarda-redes do mundo são o Oblak e o Ederson, neste momento. Mas nem há volta a dar a isto [risos]. E o Jordan a trabalhar para lá chegar

Porque foram treinados por ti?
Não [risos]. Porque conheço-os e têm uma coisa que os grandes têm, como tinha o Júlio e como quero que o Jordan vá tendo, para chegar a esse nível, porque tem tudo para lá chegar, que é: tem uma capacidade de trabalho tremenda e têm a capacidade de olhar para si próprios e perceberam quando erram. Isso é fundamental. Saber o que tens de melhorar. Sem qualquer dúvida, ambos sabem que podem ser melhores do que aquilo que já são e eu também sei. Por saber isso, é que acho que são os dois melhores do mundo. Sendo diferentes, são os melhores.

E na Liga Portuguesa?
Tenho gostado muito do Marchesin. Já conhecia e tenho gostado. Substituiu um grande nome do futebol mundial, que estava num bom momento. Casillas chegou e teve algumas dificuldades mas depois foi extremamente importante para o FC Porto ganhar. Os guarda-redes são sempre importantes nas performances das equipas e ele foi muito importante. O Marchesin trouxe jogo global, ofensivo e defensivo. Não quero também terminar sem te dizer isto: feliz do país que tem Virgínia, Diogo e Max a chegar; mal do país que não os aproveite. Acho que é importante dizer isto. Coragem ou loucura é apostar em guarda-redes que se vê cinco minutos num DVD, não é apostar em guarda-redes jovens. Claro que nos grandes clubes deve jogar quem dá rendimento. Eles têm potencial, têm qualidades mas têm de render, jogando onde jogarem. Ao render vão ganhar espaço. Mas sublinho: feliz do país que tem esses três. E outros que vêm a seguir."

“Entrei no escritório do Vale e Azevedo disfarçado, porque estava sempre um jornalista à porta. Fui de gabardine, chapéu e óculos escuros"

"Nuno Santos cresceu no bairro da Bela Vista e formou-se como guarda-redes no Vitória de Setúbal, com o avô atrás da baliza a dizer mal dele. Teve José Mourinho como treinador e chegou ao Benfica depois de uma época no Leeds. Uma lesão afastou-o de uma (quase) prometida titularidade na Luz e acabou em empréstimos ao Badajoz e ao Santa Clara, antes do regresso ao Benfica. Sem conseguir impôr-se, voltou a Setúbal e aos Açores, para a seguir cruzar o oceano em direcção a EUA e Canadá. Terminada a carreira, no Chipre, esteve vários anos a treinar os guarda-redes da selecção do Canadá, até ser convidado para o Lille, esta época

É natural de Setúbal e filho de guarda-redes.
Sim, o meu pai foi guarda-redes, num tempo em que ser jogador de futebol não era uma profissão muito bem vista, aliás, nem era vista como uma verdadeira profissão, na essência da palavra. Ele também trabalhava numa fábrica de automóveis sediada em Setúbal, onde faziam o famoso Mini dos anos 70. Paralelamente, jogava futebol. Acabou por tornar-se profissional de futebol, mas naquela altura, mesmo em termos de salário, não era nada comparado com os dias de hoje. A minha mãe sempre trabalhou no ramo da restauração. Esteve ligada a uma pastelaria quando eu nasci e depois teve a oportunidade de se transferir para o Mercado do Livramento, onde ainda hoje tem uma banca de venda de marisco.

Tem irmãos?
Tenho um irmão mais novo sete anos. Mudou-se há algum tempo para a Covilhã e faz lá a sua vida. 

Onde é que cresceu?
Passei a minha infância dividido entre o famoso bairro da Bela Vista e o estádio do Bonfim. Foram os meus avós que me criaram porque os meus pais trabalhavam o dia inteiro. O meu avô Manuel da Costa ia ver todos os jogos e a minha avó Maria da Luz era uma pessoa muito próxima de mim, ela praticamente é que me criou, foi o grande pilar da minha vida. O meu avô fazia uma coisa engraçada: desde que comecei a jogar, muito novo, ele acompanhava-em sempre, ia ver todos os jogos mas tinha uma particularidade, punha-se atrás da minha baliza a dizer que o guarda-redes não era bom (risos). Dizia “com este guarda-redes vamos perder. Este miúdo não é bom”. Fazia aquilo para ouvir os comentários das pessoas a falar bem do neto. Isso para ele era uma emoção fabulosa, era um orgulho enorme (risos).

Ouvia-o dizer mal de si nas suas costas?
Não. Depois as pessoas é que me contavam, os meus colegas, os pais dos meus colega. Ele faleceu antes de eu chegar à equipa principal do Vitória, que era o sonho dele.

Quando era pequeno, o bairro da Bela Vista já tinha a fama que tem hoje? Que memórias é que tem do bairro?
Na altura não existia o bairro da Bela Vista, mas a zona em si. A Bela Vista era a zona onde faziam a produção da água da Bela Vista, porque havia lá uma nascente. Eu morava na rua que dava acesso à fábrica de produção da água. Era uma zona afastada do centro. Com o 25 de Abril e o fim da guerra colonial, com todos os repatriados que vieram para Portugal e que nós acolhemos, as pessoas que tinham mais dificuldades sociais e económicas, como era o caso da minha família, ocuparam aquela zona com construções precárias, clandestinas.
Mas o Nuno já lá estava quando se deu o 25 de Abril.
Sim. O meu avô veio da Comporta para Setúbal, onde conheceu a minha avó e ali ficaram, naquela zona. Como o meu avô era ligado à construção, construiu uma casa ali. Costumo dizer isso às minhas filhas, vivíamos numa casa em que o chão não tinha cimento. A nossa casa era uma barraca de madeira, com o chão com umas carpetes por cima e era ali que eu passava o meu tempo. Depois, quando eu tinha sete anos, a Câmara Municipal de Setúbal deitou todas as barracas abaixo e ergueu um bairro social, designado por bairro da Bela Vista. É daí que nasce o bairro da Bela Vista, que naquela altura nunca foi problemático. A minha geração é toda uma geração com várias etnias que nunca presenciou qualquer problema no bairro. Vivi sempre com a minha avó, o meu avô entretanto faleceu e eu vivi permanentemente na casa da minha avó até me casar, até aos 24 anos, já era profissional do Vitória de Setúbal. Mas o bairro na altura não tinha problemas nenhuns. A geração que veio depois, essa sim já foi mais problemática.

A bola começa na rua, calculo.
Como todos os miúdos da minha infância eu jogava à bola na rua, claro. Passava horas e horas a jogar, saía da escola e todo o tempo que tinha disponível era para jogar à bola, mesmo quando anoitecia, acendiam-se os candeeiros da rua e nós ficávamos ali a jogar, até a minha avó me ir chamar.

Gostava da escola ou nem por isso?
Eu gostava da escola, o problema é que gostava muito de jogar futebol. A minha mãe e a minha avó sempre tiveram a preocupação de me perguntar como ia a escola. O meu problema é que eu ia à escola, mas fazia tudo por tudo para não ir às aulas. Só acabei o 12º ano, em 2007.

Torcia por que clube?
Nunca por nenhum dos grandes. O clube de que gostava era o da minha cidade, era o V. Setúbal. Fui ali nascido e criado. Comecei num clube do bairro, o OVNI 2001, onde o responsável pelo clube era treinador, presidente, massagista, médico, era tudo. Joguei como infantil, depois passo para os iniciados no V. Setúbal, onde entrei com 10 anos, através de captações. Apareceram lá imensos miúdos, 16 guarda-redes, eu fui ficando, ficando, ficando e comecei a época. Faço a minha formação no Vitória. Aos 15 anos apanho o José Mourinho como treinador. Foi meu treinador durante três anos nas camadas jovens e foi inclusive o meu primeiro treinador de guarda-redes.

Era bom treinador de guarda-redes?
Como treinador, na altura, não diria que ele ia ser o melhor do mundo, mas via-se que estava muito à frente e já tinha a preocupação de ter uma equipa técnica e percebia a necessidade de haver um treinador de guarda-redes. Nós tínhamos o treino normal e antes do treino ou depois do treino, ficava ele comigo a fazer treinos de guarda-redes e foi assim durante três anos. Treinávamos entre o período de aulas dele e o meu. Chegávamos a ir à quarta-feira de manhã de propósito para ele me dar treino específico de guarda-redes.

Desses três anos de trabalho com o José Mourinho o que lhe ficou mais na memória?
Naquela altura eu aprendi tudo o que veio a ser o suporte para a minha carreira futebolística. Agora é fácil falar porque sabemos o sucesso que ele teve e para mim é um dos melhores treinadores do mundo, mas naqueles anos ele foi a base, o pilar para a minha formação como atleta profissional de alta competição e como treinador de futebol de guarda-redes neste momento. Ele marcou-me a nível táctico, técnico, psicológico e a nível físico. Ele era muito forte nestas quatro componentes já naquela altura. Para mim foi uma aprendizagem de vida.

Lembra-se de algum conselho em especial que lhe tenha dado?
Lembro-me de uma célebre palestra em que ele dizia que havia potencial na nossa equipa, havia atletas que podiam chegar ao mais alto nível no futebol. E lembro-me que meti isso na minha cabeça e pensei, se o mister diz isto é porque há elementos no balneário que têm capacidade. Segui essas palavras à risca, trabalhei e consegui ser um jogador profissional de alta competição, que era o meu sonho.

A dada altura deixou a escola. Quando e porquê?
Com 17 anos o mister Mourinho deu-me a notícia de que eu ia começar a treinar com a equipa principal. Tive de fazer uma opção, porque os treinos passavam a ser de manhã, eu treinava à tarde com a equipa de juniores e a única solução que havia era ir estudar à noite ou deixar a escola. Numa primeira fase tentei conciliar as duas coisas, treinava de manhã com a equipa principal, treinava à tarde com a minha equipa de juniores e ia para a escola à noite. É claro que o cansaço era enorme, não consegui aguentar e desisti dos estudos, interrompi no 10º ano.
Vai então treinando com a equipa principal e jogando com os juniores, mas a determinada altura é emprestado ao Caldas.
Sim. E conheci uma pessoa que também foi importante na minha carreira, o mister Jaime Graça. Foi ele que me levou para o Caldas. Fui cedido pelo V. de Setúbal porque ia subir a sénior e era muito difícil naquela altura um jovem de 18 anos, ainda para mais guarda-redes, impôr-se na equipa principal. Foi a primeira experiência fora de casa e custou-me imenso. Já tinha a minha namorada, com 17 anos, que é hoje a minha esposa e mãe das minhas filhas, e foi bastante doloroso deixar a minha namorada de meses.

Quando foi para as Caldas da Rainha, foi sozinho ou com outros colegas?
Quando cheguei ao Caldas não era como é hoje, em que os jogadores vão e têm um departamento à disposição e uma casa com todas as comodidades. Quando fui propuseram-me partilhar casa com mais dois colegas da equipa. Cada um tinha o seu quarto, havia um espaço comum, a cozinha, onde fazíamos a alimentação.

Como é que fazia com as refeições? Ia sempre fora ou aventurava-se na cozinha?
Tinha de fazer. O meu contrato não era com alimentação, o salário também não era muito. O meu primeiro ordenado, fazendo a conversão, eram 300 euros. Não era assim tão mau, mas para ir sempre ao restaurante... E eu vinha todas as semanas a casa.

Quando é que começa a ganhar dinheiro no futebol? Ainda foi em Setúbal, antes de ir para o Caldas? 
Foi. Tinha 17 anos, eram 250 euros.

Lembra-se do que fez ao primeiro ordenado?
O meu primeiro ordenado foi um prémio de jogo. O mister Mourinho solicitou, e foi aprovado pela direcção do Vitória de Setúbal, que nós, que tínhamos 15, 16 anos, tivéssemos um incentivo, um prémio de jogo. Não havia ordenado. O primeiro dinheiro que consegui no futebol foram 1000 escudos (5€). Ganhámos o jogo no domingo com o mister Mourinho e no primeiro dia de treino a seguir, terça-feira, deram-nos 1000 escudos em notas de 100 escudos que eu ainda hoje guardo em minha casa. As notas estão novinhas, 10 notas de 100 escudos guardadas religiosamente porque foi o primeiro dinheiro que ganhei no futebol. Os meus colegas gastaram, compraram ténis e outras coisas como é natural. Para mim, que não tinha nada, 1000 escudos era uma fortuna. Mas quando recebi aquele dinheiro disse: “Este vou guardar, foi o primeiro dinheiro que ganhei na minha vida, foi o primeiro dinheiro que ganhei a jogar futebol, vou guardá-lo para ser um exemplo para mim e um dia para os meus filhos”.

Estava a contar que a sua adaptação no Caldas não foi fácil.
Foi muito difícil. Ainda hoje, sempre que saio para qualquer sítio fora de Setúbal, qualquer sítio fora de Portugal, fica sempre um nó na garganta. Claro que como setubalense, como português, temos a facilidade de nos adaptarmos, mas custa sempre. Os primeiros dias, as primeiras semanas foram dificílimas. Estar longe da minha família, do conforto que não sendo muito, era o ambiente familiar, da minha namorada, Susana Santos, que na altura estava a estudar medicina. Eu é que tinha de fazer a minha comida, atum com esparguete, arroz com atum, salsichas com ovos (risos). Era uma alimentação não muito condigna mas era aquilo que eu sabia fazer. Depois lá vieram as saladas, os bifes e a carne grelhada. 

E a adaptação ao próprio clube?
Foi difícil também mas acabei por adaptar-me. Estava habituado a estar numa equipa com mais condições. O Caldas era um clube com história mas não tão grande como a do V. Setúbal. A época acabou por correr bem e voltei para o V. Setúbal.
Voltou mas não jogou.
Voltei e não joguei. Não estava satisfeito, estive um ano sem jogar, não me foram dadas oportunidades...

Quem era o treinador nessa altura?
O Raul Águas. Mas era muito difícil, eu era o terceiro guarda-redes. Estamos a falar de uma equipa da I Liga com bons guarda-redes, era extremamente difícil darem-me uma oportunidade. Eles viam-nos como uns jovens. Fazíamos alguns treinos em conjunto mas nem tinha a oportunidade de mostrar o meu valor. De vez em quando entrávamos nos treinos, mas quando chegava ao jogo, havia três guarda-redes e eu ficava ali ao lado da baliza a ver o que se passava. Era sempre o miúdo, eu como alguns colegas meus. Só diziam: “Algum dia hás-de ter a tua oportunidade”. Ao fim de um ano cansei-me.

E vai emprestado para o Operário da Lagoa.
Foi o Jaime Graça novamente que viu algum potencial em mim e convidou-me para ir para o Operário dos Açores. Fui e foi uma adaptação ainda mais difícil, ir viver nos Açores naquela altura. 

Foi sozinho?
Sim. Tive a oportunidade de jogar com o Pauleta. Na altura éramos os dois jogadores mais falados na equipa, as coisas correram muito bem. Mas foi ir novamente para um campo pelado, o que já não me acontecia desde os meus tempos de formação. Naquele tempo não havia telemóveis, ainda sou do tempo de escrever cartas à minha namorada e de ela me escrever cartas. Cartas que levavam três dias a chegar aos Açores (risos). Falávamos duas ou três vezes por semana, com hora marcada, pela cabine telefónica. Ela ligava para mim de uma bomba de gasolina e os impulsos sempre a caírem; e eu a juntar dinheiro para falar com ela e com a família. Foi um período difícil.

Gostou dos Açores e dos açorianos?
Gostei, fui bem recebido.

Percebia o que eles diziam ou tinha dificuldade?
Tinha dificuldade. Lembro-me que ao início quando falava com o Pauleta tinha dificuldade em perceber aquilo que ele dizia, mas como a língua do futebol é universal, conseguíamos entender-nos perfeitamente.

Entretanto volta para Setúbal na época seguinte mas o treinador continuava a ser o Raul Águas e continuava a não jogar.
Sim, aí já começava a desesperar. Os anos começavam a passar.

Alguma vez pensou em desistir e ir fazer outra coisa?
Nunca pensei em desistir. Também não sabia fazer outra coisa, nunca tive habilidade para fazer outra coisa. Fiz alguns trabalhos a descarregar barcos de peixe, a descarregar camiões de sapateiras, fazia o que era preciso para ganhar algum dinheiro extra, mas nunca tive muito jeito para fazer nada, nem sabia o que queria fazer da minha vida, estava concentradíssimo, queria ser profissional de futebol. Na minha carreira, se consegui construir alguma coisa de que me orgulho, é porque lutei muito. Passei por muito, mas lutei sempre pelo meu objectivo. A minha esposa, a Susana, que conheci no tempo da escola, com 15 anos, é testemunho disso. Sempre foi o meu grande pilar, da nossa relação e da minha carreira profissional. Há que ressalvar isso.

Disse que ela estava a estudar medicina. Acabou o curso, faz alguma especialização?
A Susana estava no 4º ano quando sai comigo para Inglaterra.

Já lá vamos. No V. Setúbal, acaba por fazer a sua estreia com o Manuel Fernandes.
Sim, eu insisti, persisti no meu sonho e ele deu-me uma oportunidade. Foi no dia dos meus anos. Uma lesão de um colega, o Cândido, e eu entro num jogo contra o Estrela da Amadora.

Estava muito nervoso quando ele o chama?
Não. Muito nervoso estava o Manuel Fernandes porque eu nunca tinha feito um jogo na I Liga, faltavam oito jogos para acabar o campeonato e o V. Setúbal como tem sido hábito nos últimos anos e naquela altura também, estava numa luta para fugir aos lugares de despromoção. Pôr um guarda-redes que nunca tinha jogado... O Manuel Fernandes estava nervosíssimo. Eu não, estava calmo e tranquilo.

Lembra-se do que ele lhe disse antes de entrar?
Lembro, disse-me: “Pronto, miúdo, vai lá. Isto é como se fosse um treino, vai correr tudo bem, tu tens qualidade e vais fazer um bom jogo”.

Correu-lhe bem ?
Acabamos por perder o jogo, mas correu-me bem. Mas a melhor lembrança que guardo foi na semana a seguir. Fomos jogar contra o Sporting, ao antigo estádio José Alvalade, onde faço a minha estreia como titular. O Manuel Fernandes aí tinha outras opções, mas optou por mim. Foi opção dele e é a quem tenho de agradecer o ter-me lançado na I Liga, em Portugal. E o jogo correu-me super bem. 

Depois já não sai mais da baliza.
Depois já não saio mais. E há uma coisa curiosa, lembro-me de estar nesse jogo, no túnel do antigo estádio de Alvalade e um colega meu, o Rui Carlos, que era defesa esquerdo, dizer: “Olha, Nuno, andavas sempre aí a falar em teres uma oportunidade e que nunca te davam uma oportunidade, agora quero ver se vais agarrar essa oportunidade”. Respondi-lhe: “Fica tranquilo porque eu vou agarrar esta oportunidade com as duas mãos e nunca mais vou sair da baliza”. Acabei por fazer o resto dessa época e a época seguinte como titular na baliza do V. de Setúbal até partir para Inglaterra.
E como é que se dá a ida para Inglaterra?
O treinador do Leeds United, George Graham, vem a Setúbal para ver um jogo com o Boavista. Ele vinha ver o Jimmy Hasselbaink e o Nuno Gomes, e ao vê-los quis contratá-los, mas o Nuno Gomes já tinha contrato apalavrado com o Benfica e acaba por levar o Jimmy. Como gostou muito de ver o Bruno Ribeiro do V. Setúbal, leva-o para o Leeds. Também gostou do meu jogo, mas como eles tinham um guarda-redes que estava a acabar a carreira, tinha mais um ano de contrato, iam aguentar esse guarda-redes. Eu entretanto também acabava o meu contrato em Setúbal, fiquei por ali e vou no ano seguinte. Esse guarda-redes deles ainda estava lá mas como se lesionou no início da pré-época, sou contratado pelo Leeds. Na altura tinha saído a Lei Bosman e eu saio livre para Inglaterra.

Nessa altura já estava casado?
Casei um ano antes de ir para Inglaterra. Já tinha saído da casa dos meus avós, tínhamos comprado um apartamento os dois, a minha esposa estava a estudar na faculdade de medicina da Nova, em Lisboa. Tudo apontava para fazermos a nossa vida por Setúbal até ela acabar o curso, mas surgiu a oportunidade muito repentina de ir para Inglaterra e fomos.

Tinha empresário?
Tinha o Lucílio Ribeiro, mas a transferência não foi feita por ele. Houve situações com ele em que eu era para ir para o Benfica, para ir para o Porto, mas o V. de Setúbal pedia quantias altas. Acabo por sair para Inglaterra livre, e quem fez a minha transferência foi o Amadeu Paixão.

A sua esposa largou o curso…
Sim, interrompe a faculdade, vai comigo e nunca mais voltou, porque entretanto também nasceram as nossas filhas.

Qual foi o primeiro impacto quando lá chegou?
Fiquei deslumbrado, era o campeonato inglês, que ainda hoje é apetecível para qualquer jogador de futebol, pela intensidade, pela paixão e por tudo o que envolve o próprio campeonato. Cheguei a Inglaterra com uma expectativa enorme.

Sabia inglês?
Não é um dos motivos que fez com que a minha esposa deixasse a universidade para vir comigo, foi porque eu não sabia falar nem uma palavra em inglês. Cheguei lá tinha o Bruno Ribeiro, tinha o Jimmy que falava português e inglês, mas eu não sabia uma única palavra de inglês. Porque eu não ia às aulas de inglês quando andava na escola em Portugal (risos).

Ficaram a viver onde?
Num hotel. Eles davam a opção de ficar lá três meses, entretanto a minha esposa como eu estava lá sozinho e não conseguia falar a língua, foi ter comigo. Dentro de campo era extremamente complicado, mas tive de ter uma adaptação mais rápida dentro do campo do que na vida social. A vida social era extremamente difícil e então a minha esposa foi ter comigo e esteve lá sempre. Ficámos sempre a viver no hotel. A minha mulher engravidou da Joana e fazia viagens para Portugal com frequência e decidimos ficar no hotel. Primeiro os dois, depois com a Joana, que nasceu em Portugal mas foi para lá a seguir.
Gostavam de viver no hotel?
Adorámos. Imagine, jovens com 24, 25 anos, achávamos super engraçado. Éramos jovens, tínhamos casado há pouco tempo, tivemos uma filha, aquilo para nós era um conto de fadas.

O Nuno assistiu ao parto da Joana?
Não. A Susana viajou no dia 6 de Novembro e a data prevista para a Joana nascer era a 6 de dezembro. Ela realmente nasceu nesse dia mas eu tive jogo no dia anterior. O treinador tinha-me dito: “Nuno, quando a tua filha nascer comunica-me para ires a Portugal” e eu ok. Jogámos no sábado, a minha filha nasceu no domingo, nós tínhamos a festa de natal do Leeds e fui ter com ele: “Mister, a minha filha nasceu”. Na altura o nosso treinador já era o David O’Leary, que também foi durante muitos anos treinador no Manchester United. Eu estava na expectativa que ele dissesse: “Ok Nuno, vai a Portugal ver a tua filha”, mas ele: “Ok, nós temos jogo na terça-feira, a seguir ao jogo podes ir”. Não disse nem mais uma palavra.

Mas foi um balde de água fria.
Foi, eu estava com uma expectativa imensa, passou-me duas coisas pela cabeça e falei com a minha esposa. Ou eu saio na segunda-feira de manhã, apanho o vôo e estou em Portugal na segunda-feira ou jogo na terça-feira e apanho o avião na quarta-feira de manhã, porque o jogo era na terça-feira à noite. Ela disse-me: “Nuno, percebo a tua ansiedade mas a menina já nasceu e o importante é que está tudo bem de saúde. Sei que é difícil para ti”. Tomámos a decisão em conjunto como fazemos sempre: “Fica aí e vai jogar o teu jogo”.

Como correu o jogo?
Joguei com uma ansiedade imensa. De todas as pessoas, fui o último a conhecer a minha filha. Não dormi a noite toda. Quarta-feira de manhã dentro do avião lembro-me que não me conseguia sentar com a ansiedade de ver a minha filha, as hospedeiras sempre a dizerem-me que tinha de me sentar. Vejo a minha filha já com três dias de nascida (risos). Ainda hoje ela me diz: “Pai, não estavas no meu nascimento, mas estiveste no nascimento da mana”. É que a irmã nasceu em Junho e eu estava de férias. Nos aniversários era a mesma coisa. Ela hoje em dia percebe e sabe que se tem a vida que tem é porque o futebol também proporcionou isso.

Segue-se o Benfica. Foi abordado por quem?
Já havia um namoro por parte do Benfica e do FC Porto. A nível dos empresários já se falava nessa possibilidade. Eu tinha mais uns anos de contrato com o Leeds mas, como cheguei a Inglaterra livre, tinha uma cláusula no meu contrato que me permitia sair livre no final de cada época. Pensando eles e pensando eu que se as coisas não corressem bem, sempre podia voltar para o V. de Setúbal sem qualquer indemnização. O Benfica, que na altura estava a reestruturar o plantel, depois daquela fase dos ingleses e do Graeme Souness, vai buscar o Jupp Heynckes. Três meses antes, em março, tive conhecimento de que o Benfica me queria contratar. O Benfica tinha o Ovchinnikov, o Michel Preud’homme e o Paulo Lopes. Fui o primeiro guarda-redes a ser contratado pelo Vale e Azevedo. Foi ele que entrou em contacto comigo. Faço uma viagem relâmpago numa quarta-feira, dia de folga, a 17 de março de 1999, vou diretamente ao escritório do Vale e Azevedo, na Avenida da Liberdade. Fui com um agente espanhol, o Jorge Lera, que na altura me representava, e começámos a fazer as negociações. Foi quando me comunicaram em sigilo que o Michel Preud’homme ia acabar a carreira e iria exercer novas funções como dirigente desportivo e supostamente eu iria substituir o Michel Preud’homme. Foi-me pedido para manter o sigilo durante três meses, até acabar o contrato que tinha com o Leeds.

Aceitou sem pestanejar?
Quando chego penso que vou ter uma conversa com o Benfica, uma abordagem, só que as negociações andaram muito rapidamente porque eles queriam fechar o contrato comigo. Tinham tido aquela aposta nos jogadores ingleses e queriam mudar totalmente. A aposta seria nos jovens portugueses e eu enquadrava-me na política do clube, tinha 25, 26 anos. Não me deixaram sair do escritório sem assinar contrato. Entro no escritório do Vale e Azevedo disfarçado porque estava sempre um jornalista desportivo à porta para obter informações. Por isso quando saio do táxi vou disfarçado com uma gabardine, de chapéu e com óculos escuros, passo pelo jornalista, entro no escritório sem ele me conhecer. Faço a minha negociação e assino por quatro anos. Como tinha vôo nesse mesmo dia à noite, depois de fazer o contrato vou com o senhor Martim Cabral, que sai comigo pela porta dos fundos do escritório do Vale e Azevedo, para irmos ao notário, que já estava fechado, mas ainda deu para reconhecer o meu contrato.

Mas depois trocaram-lhe as voltas.
As voltas foram um pouco trocadas porque o Jupp Heynckes quando chega, dá de caras com o Michel Preud’homme no final da carreira, com o Nuno Santos contratado, o Ovchinnikov como guarda-redes e ele disse: “Eh pá, o Nuno Santos conheço pouco, o Ovchinnikov não quero que faça parte do plantel, quero trazer um guarda-redes da minha confiança, também jovem”. Foi o Robert Enke. Chega o Enke e ele pede também um guarda-redes já com experiência, e vem o Bossio, que foi contratado pelo Benfica, mas o presidente não o queria pagar. Aquilo ficou ali uma cena muito conturbada. Partimos para a época, eu, o Enke e o Bossio. Ou seja, partimos os três, mas sem o Bossio ter contrato registado na Liga e entretanto Ovchinnikov sai do Benfica. Na pré-época, fazemos o estágio na Alemanha, onde eu tenho uma lesão gravíssima, com dois dias de treino.

O que é que aconteceu?
Fiz uma ruptura do infra espinhoso. Nunca tinha tido lesões na minha carreira e no Benfica, no meu primeiro ano, tive duas gravíssimas.

Mas como faz essas lesão na pré-época?
Num treino, na véspera de um jogo com o Borussia de Dortmund. Cortei o músculo do infra espinhoso. Naquela altura não era uma lesão muito conhecida, nem o Bernardo Vasconcelos, que era o médico do Benfica, nem o Gaspar, que era o nosso fisioterapeuta, tinham conhecimento de uma lesão tão grave assim e que me afastou durante seis meses. É nessa altura que o Moreira é chamado à equipa principal e começa a fazer parte do grupo de trabalho. Passados seis meses consigo jogar para a Taça de Portugal, fiz um jogo pelo Benfica com o Torres Novas e volto a lesionar-me. Fiz um estiramento do ligamento interno no joelho que me deixou afastado mais três meses. Ou seja, durante a época de 10 meses eu estive um mês apto. O sonho veio-se a tornar um pouco um pesadelo e depois saio novamente cedido para ter oportunidade de jogar, para Espanha.

Antes de irmos a Espanha. Privou com Robert Enke. Ele demonstrava ser uma pessoa deprimida? 
Não posso dizer que me passava pela cabeça que o Enke iria ter o final que teve. Aquilo que posso dizer é que havia alguns comportamentos que para mim não eram muito normais.

Pode dar exemplos?
Ele era uma pessoa que não sorria muito, era muito introvertido. Como colegas de quarto havia situações... Ele entrava no quarto e a primeira coisa que fazia era fechar os estores todos do quarto, ligava a televisão sem som e ficávamos ali com a televisão num canal alemão, sem som, as persianas fechadas e ele acabava por adormecer, isto à tarde. Eu não achava aquilo muito normal, embora reconhecesse que ele pudesse ter o descanso dele. Era uma pessoa muito amiga, mas todos os dias notava-se que era uma pessoa muito revoltada, nunca estava satisfeito.

Estava revoltado com o quê?
Com todas as situações do dia dia. Ou no treino, uma simples bola, ou a relva.

Zangava-se com os colegas e o treinador?
Não, ele tinha um comportamento, tanto com os colegas como com o treinador, exemplar. Era muito exigente com ele próprio. E penso que a exigência entrou num estado espiral que infelizmente levou àquele desfecho. Era um excelente colega, um excelente ser humano, mas notava que ele tinha alguns comportamentos estranhos, que era muito fechado, muito no mundo dele.

Quem é que lhe propõe o Badajoz?
O Benfica achava que depois do tempo que eu tinha estado sem poder jogar, precisava de jogar e apanhar rotina de jogo e não ia ser no Benfica. O Enke estava a fazer uma boa época. Foi equacionada essa situação e também havia interesse porque o meu agente era espanhol. Surgiu essa oportunidade em Espanha e eu saio.

E vai sozinho ou com a sua mulher e a sua filha?
Fui com as duas. A minha esposa e a minha filha andaram sempre comigo, até entrar na idade escolar. Em Espanha a adaptação foi fácil, o clube, a língua, a proximidade de Portugal, eu vivia em Espanha e vinha comer todos os dias a Portugal.

Também preferiu ficar a viver num hotel?
Quando cheguei vivi num hotel, mas não chegou a um mês. Depois procurei casa, mudei-me rapidamente para um apartamento mesmo junto à fronteira, para poder vir a Portugal jantar todos os dias (risos). Jogou pouco. Não joguei por causa da política do clube. Fui contratado por quem é hoje presidente da Liga Espanhola, o Javier Tebas, foi uma aposta pessoal dele. Eu e outros jogadores, lembro-me do Tulipa. Mas o treinador não teve conhecimento. Ou melhor, teve conhecimento das nossas contratações, mas a opção dele passava por jogadores que ele conhecesse. Como não nos conhecia, percebi que o espaço de manobra para mim não ia ser muito. Eu ia com muitas expectativas. O treinador entendeu que era uma boa contratação por parte do presidente, mas que eu não tinha ritmo de jogo, tinha estado muito tempo lesionado. Não sentiu confiança para me pôr a jogar de início. O campeonato em Espanha da II Liga tinha na altura clubes como o Atlético de Madrid, o Sevilha, o Sporting de Gijón, o Real Betis, tudo equipas fortíssimas. Eu na altura não percebi, mas hoje percebo perfeitamente que era um risco imenso por um guarda-redes que tinha estado praticamente uma época parado.
Como reagiu?
Eu ia com expectativa de jogar, o empréstimo estava feito, se eu tivesse conhecimento antes, não tinha optado por ir para Espanha ou então ia para outro clube em Espanha. Mas com tudo já feito, a minha margem de manobra era muito curta. Então peço logo para não contarem comigo, vou adquirir a minha forma mas vou procurar outra situação em dezembro e saio.

É quando vai para o Santa Clara.
Sim, vou reencontrar o meu amigo Manuel Fernandes. No Santa Clara voltei a ser feliz, voltei a ter oportunidade de jogar e acabo por fazer uma boa segunda volta e conseguimos a subida de divisão. 

Vai com a família também para os Açores?
Havia períodos em que estavam comigo nos Açores, porque não fui por muito tempo, foram só por cinco meses. As coisas estiveram muito bem e tudo apontava para que eu continuasse cedido, porque continuava a jogar, a competição que havia no Benfica não deixava muito espaço para mim e eu até queria continuar no Santa Clara, tínhamos subido de divisão, mas a nível da direcção não houve entendimento e acabo por sair e vou para o Beira-Mar, com a concordância do Benfica. Nessa altura a minha família vai comigo para Aveiro e acabo por fazer uma excelente temporada no Beira-Mar. 

Com o António Sousa como treinador.
Sim, as coisas correram muito bem e depois no final da época voltei a renovar com o Benfica, aí já com outro ritmo competitivo e venho fazer ao Benfica a época de 2002/2003. Na altura falava-se muito em quem seria o guarda-redes do Benfica, mas eu sabia que ia ser feita uma aposta no Moreira. Na altura o presidente já era o Manuel Vilarinho, com o Luís Filipe Vieira como vice-presidente. O professor Jesualdo Ferreira disse-me “o plano é que venhas para o Benfica, que fiques aqui como uma opção válida. Vamos lançar um jovem com potencial, que é o Moreira, e contamos contigo para fazer essa transição”.

Custou-lhe ouvir isso nessa altura?
Estava mais maduro, já com 29 anos, era uma renovação do contrato com o Benfica, era uma opção válida. O Luís Filipe Vieira foi uma pessoa bastante honesta e o professor Jesualdo Ferreira também, disseram-me que iam apostar no Moreira, mas queriam que eu fizesse parte do projecto.

E foi isso que aconteceu?
Foi, foi isso que aconteceu. Fui extremamente bem tratado pelo Benfica. Não vou dizer que contribuí para o sucesso que o Moreira teve na carreira dele, mas posso dizer que contribuí para que ele se sentisse bem naquela altura em que lhe era dada pela primeira vez a oportunidade de fazer a época na baliza do Benfica. Sendo uma aposta pessoal do Benfica, penso que fui parte importante no apoio e em todos os meus conhecimentos e experiência e que lhe dei naquele período de transição. 

Reconhecia-lhe talento?
Reconheci talento. Foi-me dada a oportunidade de jogar. Joguei em jogos da Taça, cumpri, e sabia que a baliza do Benfica iria estar bem entregue e fiquei satisfeito com a minha missão.

Gostou do professor Jesualdo enquanto treinador?
Muito. Uma pessoa muito directa, com grande conhecimento do futebol. Tivemos uma relação muito boa - por vezes quando um jogador não joga as relações podem não ser tão boas, mas a nossa era boa.
Nessa altura foi viver para onde?
Estava em Setúbal, entretanto nasceu a minha filha mais nova, a Mariana, no início dessa época. A Joana nasceu em 1998, tem 20 anos e a Mariana em 2002, tem 17. Nasceu nesse verão. Depois perdemos um jogo da Taça e com muita pena nossa o professor foi afastado. O nosso presidente, o Luís Filipe Vieira, queria muito manter o Jesualdo Ferreira na equipa, mas, na altura, uma derrota na Taça de Portugal contra uma equipa da II Liga, numa equipa como o Benfica, fez muita mossa.

Cedeu à pressão dos adeptos?
Foi muita pressão, não é fácil. Veja o que era o Benfica naquela altura ser eliminado por uma equipa de Gondomar da III divisão. Fomos eliminados em casa por 1-0. Num daqueles jogos em que podíamos estar ali até amanhã de manhã que não ganhávamos o jogo. Foi extremamente difícil para o próprio professor. Penso até que foi uma decisão tomada de mútuo acordo. Foi um dia muito triste para o Benfica e para mim pessoalmente. Ainda apanhei o Fernando Chalana que fez ali a transição até à chegada do Camacho.

E que tal o Camacho?
Foi um treinador que chegou, fez as opções que achava que deviam ser feitas. Na altura o Moreira estava a jogar bem e manteve a aposta nele. Não tenho nada pessoal a dizer, foi uma opção natural. No final da época não me sentia satisfeito, também queria jogar e ter a oportunidade de voltar a ser feliz. Sentia que ainda podia dar algo ao futebol e a mim mesmo e surgiu a oportunidade de ir cedido para o V. Setúbal e tomei essa opção de retomar à boa casa onde cresci por assim dizer.

Chegou a privar com Fehér.
Sim, fomos colegas de equipa e tínhamos um bom entendimento. A minha filha mais velha na altura era pequenina e tinha uma adoração por ele, dizia que queria muito conhecer o Fehér e queria a camisola dele. E uma semana antes do que aconteceu em Guimarães surgiu a oportunidade de levar a minha filha ao estádio. E depois do jogo passamos um bom momento juntos. Momento esse em que o Fehér teve a amabilidade de oferecer a camisola à minha filha. Ela ficou super satisfeita e com uma memória para toda a vida. Passada uma semana, acontece aquela situação em Guimarães com o Fehér, eu estava em casa a ver o jogo pela televisão.

Percebeu logo que era grave?
Sim, com a repetição das imagens, percebi e depois fui acompanhando através dos colegas. Mas o que prefiro guardar é a alegria da minha filha de poder partilhar momentos de intimidade com ele uma semana antes e aquele sorriso que ele nos deu antes de cair.

Quando chega a Setúbal apanha o Carlos Carvalhal como treinador, não é?
Sim. Faço uma época em Setúbal, conseguimos subir de divisão e sou novamente cedido. Volto aos Açores, ao Santa Clara, um clube onde também já tinha estado.

Mas vai por opção sua ou porque o V. Setúbal não o queria?
Foi pelo projecto. Havia a possibilidade de continuar em Setúbal, mas havia um projecto no Santa Clara de médio, longo prazo a nível de contrato, de poder estender o meu contrato, eu na altura já tinha 32, 33 anos. Podia fazer três, quatro anos no Santa Clara, era uma oportunidade de estabilidade. Ia trabalhar com uma pessoa que para mim era uma referência, o Lucien Huth, que tinha trabalhado com o Michel Preud’homme e que para mim é uma referência no treino de guarda-redes. Esta foi uma peça importante para a minha decisão.
O que ele tem de especial?
Como treinador de guarda-redes ele é único. Se hoje estou na posição em que estou, no futebol, a nível de treinador de guarda-redes, há duas pessoas a quem posso agradecer. Uma é o mister José Mourinho, que foi sempre uma referência enquanto fui atleta dele, numa primeira aprendizagem. Ao longo dos anos incentivou-me sempre e pôs-me a pensar no pós profissional, no que iria ser o meu futuro. Eu disse que gostava de ficar ligado ao futebol, de ser treinador de guarda-redes e ele disse-me logo para começar a tirar cursos. “Começa a preparar-te, começa a tomar as tuas notas porque vai ser muito útil”. Foi um conselho que segui à risca ainda como jogador. Com o Lucien Huth foi o conhecimento a nível de treino de guarda-redes que me passou. Se me encontro aqui a falar consigo, no dia da minha estreia na Liga dos Campeões como treinador, deve-se a essas duas pessoas que contribuíram muito para a minha carreira a nível de jogador e como treinador de futebol.

Quem era o treinador quando chegou ao Santa Clara?
O professor José Morais. As coisas acabaram por não correr muito bem numa fase inicial para ele. Depois vem o mister Formosinho, que hoje em dia é assistente do José Mourinho. Conseguimos os nossos objectivos e acabei por renovar o meu contrato e fiquei três épocas nos Açores.

Nesse regresso aos Açores leva a família?
Não. Numa primeira fase ainda pensámos nisso mas como a Joana ia entrar numa fase de idade escolar, optámos por deixar a família ficar em Setúbal. E aí foi uma situação difícil. O facto de estar novamente sozinho, sem a família. Só nas férias escolares é que elas me visitavam.

Depois abre-se um novo ciclo na sua vida com a partida para os EUA. Vai como e porquê?
Vou através de um amigo de um amigo com quem tinha jogado, o Nuno Almeida. Havia uma equipa americana que estava à procura de um guarda-redes. A época em Portugal já tinha acabado e estava a meio no campeonato americano. Eu já lá tinha ido várias vezes pelo Benfica e pelo Santa Clara. Propus-me um desafio. Porque não? Era uma proposta muito mais vantajosa, e atendendo à idade e ao meu percurso…

Uma realidade completamente diferente.
A todos os níveis. É como se diz, foi a descoberta de um novo mundo. A nível do futebol, se bem que hoje já esteja mais evoluído do que em 2007, continua a ser uma maneira de jogar completamente diferente. Ali tudo é um espectáculo, tudo é um show. Tudo é levado nesse sentido. Acabou por ser uma experiência positiva por ser diferente.

Mas um futebol mais fraco do que aquele a que estava habituado.
Sim, um futebol completamente diferente, com uma qualidade muito inferior ao futebol europeu.

A que lhe custou mais a adaptar?
Ao facto de serem muito distantes. Eu estava habituado ao espírito de equipa, aquela entreajuda, o calor - nos EUA era cada um por si. Encontrávamo-nos para treinar e quando eu ia tomar banho, mais de metade da equipa já se tinha ido embora. Não havia um sentido de grupo.

Também estava sozinho?
Sim, fui viver para um apartamento num condomínio. Como apanhou a altura de férias a minha família esteve lá comigo até ao início do período escolar...

Entretanto vai para o Canadá.
Surgiu também através de contactos que eu tinha feito nos jogos pelo Benfica e pelo Santa Clara. Sempre gostei muito de Toronto, foi sempre uma das cidades favoritas.

O que é que o fascina em Toronto?
O facto de ser multicultural. Toronto é uma cidade fabulosa, tem um bairro tipicamente português, passamos para o bairro seguinte e é um bairro italiano, passamos para outro e estamos em Chinatown, ou seja, é uma cidade multicultural, com uma boa qualidade de vida embora os Invernos sejam muito rigorosos. Muito calor no verão, com muita humidade, muito frio no inverno, com muita neve. Costumo dizer que o Canadá tinha tudo de bom que tem os EUA, mas estava mais perto da cultura europeia. O povo canadiano é mais afectivo.
O que fazia nos tempos livres nos EUA?
Não fazia praticamente nada. Não tinha vida social nenhuma. Como nunca liguei à Playstation, entretinha-me a ver filmes e a fazer caminhadas. Era aquilo que eu gostava de fazer. Em Toronto já convivia com a comunidade portuguesa e com as outras comunidades. Aí sim, tenho amigos para a vida.

Foi por isso que foi para Toronto na época seguinte?
Sim. Gostava de estar no Canadá mas depois voltou a pesar o facto de estar longe de casa, longe da família, de estar sozinho e o facto de querer voltar a jogar um futebol mais profissional. Acabei por voltar para Portugal. Primeiro fui para o Gondomar, aproveitei e acabei os meus estudos através das Novas Oportunidades e depois ainda passo pelo Arouca, foi o Carlos Secretário, meu amigo, que me convidou.

Mas ainda vai para o Chipre, onde acaba a carreira.
Vou parar ao Chipre porque as equipas em Portugal tinham orçamentos mais baixos, cada vez pagavam menos, a minha carreira estava perto do fim, tinha 37 anos e quando recebo uma proposta a nível financeiro mais interessante do Chipre, questionei-me. Ia custar a mim e à minha família, mas a nível financeiro compensava. Acima de tudo foi a parte financeira que pesou mais. Depois, a nível cultural acabou por ser enriquecedor. A nível desportivo, correu bem, conseguimos ganhar a Taça da Liga.

Do que gostou mais e menos do Chipre?
Menos, o calor. Não é muito agradável apanhar 50 graus (risos), depois de ter estado no Canadá com 40 graus negativos. Mas a nível de cultura era engraçado. Vivia em Nicósia, mesmo no centro da cidade. Uma cidade que está dividida ao meio. Uma parte é turca cipriota e a outra metade é grega cipriota.

De qual parte gostou mais?
Como estava a viver na parte grega, estava mais habituado a essa zona. A nível de cultura estamos a falar de ortodoxos na parte da Grécia e de muçulmanos do lado turco. Não tive qualquer problema. Tanto entro numa igreja católica como entrei numa ortodoxa, como entrei numa mesquita. Não teve nenhum problema no clube? Nada. Apanhei um presidente muito bom, apanhei colegas extraordinários, éramos uma equipa muito jovem, tínhamos três atletas mais velhos, que por sinal eram portugueses, eu, um médio esquerdo, o Spencer, da minha formação no Benfica, e o Mateus, um cabo-verdiano que tinha jogado comigo nos Açores.

Quando acaba o seu contrato no Chipre, já sabia que não ia voltar a ser futebolista e passava a ser treinador?
Eu estava com 39 anos e falei com o presidente. Ele disse que os patrocinadores iam cortar no orçamento e que por isso seria difícil eu ficar nas mesmas condições. Como eu já tinha oportunidade de me iniciar como treinador de guarda-redes juntamente com o Bruno Ribeiro no Farense, através de um amigo e empresário, o Manuel Tomás, disse-lhe que não sendo possível ficar com as mesmas condições, dava por encerrada a carreira. Costumo dizer às vezes na brincadeira que cada vez custava-me mais fisicamente jogar e cada vez queriam pagar-me menos (risos). Então optei por acabar a carreira. Mas foi de forma normal.

Já se vinha a preparar.
Sim, há muito tempo, eu tirei o primeiro curso de treinador em Aveiro quando estava a jogar no Beira-Mar, em 2002. Em 2003 tiro o segundo nível quando estava no Benfica. Quando acabei a carreira, em 2012, tirei o curso de UEFA A, na Escócia. Depois tirei o UEFA Pro, de treinador principal, em 2016. E tive ainda a oportunidade de tirar o curso UEFA A de treinador de guarda-redes na Escócia, que não há em Portugal. Sou dos poucos no mundo a possuir essa credencial de guarda-redes certificado pela UEFA, no mundo inteiro somos menos de 40.
Estava dizer que se estreou como treinador de guarda-redes no Farense com o Bruno Ribeiro em 2012/13. É mais complicado ser treinador do que jogador?
Muito mais. Um jogador de futebol preocupa-se em ter a sua condição física e pensa só no treino e na forma de jogar, enquanto um treinador de guarda-redes tem de pensar em muitas coisas, são 24 horas. Só não são mesmo 24 horas porque temos de dormir. Mas por muito que tente abstrair-me do treino, para mim é impossível, são muitas horas a pensar o treino, muitas horas no treino e muitas horas a analisar o que foi feito e a preparar novamente.

Foi para Faro sozinho novamente, certo?
Sim. As miúdas na escola, a esposa a fazer de pai e mãe com umas meninas já na adolescência e eu o que fazia no norte faço no Algarve, no fim de semana depois dos jogos ia para Setúbal.

Se fosse guarda-redes hoje, seria melhor do que foi?
Acho que o Nuno Santos guarda-redes ia ter muitas dificuldades.

Porquê?
Na nossa idade, por não haver tanto conhecimento no futebol, tínhamos de ser muito mais vivos, mais matreiros, muito mais espertos. O futebol evoluiu muito nos últimos 10 anos em termos técnicos, tácticos, o conceito do treino, as metodologias de treino, a organização do próprio treino. Antes tínhamos de ser muito mais vivos dentro de campo. Hoje em dia as exigências são totalmente diferentes. Não há tanto a necessidade de ter aquela matreirice porque o conhecimento táctico é muito maior e os jogadores conseguem reagir e pensar muito mais rápido, daí o futebol ser muito mais rápido, porque o que dá velocidade ao jogo também são os jogadores, não é só a bola.

Quando fala de matreirice está a referir-se a quê em concreto?
Eu é que tinha de organizar a defesa, por mim próprio, eu é que comandava a defesa, havia uma exigência de comandar mais. Hoje no futebol moderno o guarda-redes limita-se, numa grande equipa, a fazer pequenas correcções. São importantes, mas são correcções. Ou seja, muitas vezes os jogadores não se sabiam posicionar no terreno, eles procuravam mais pela lógica, tenho de fechar mais dentro porque senão vou sofrer golo aqui, não posso estar tão aberto... Os guarda redes é que davam essas indicações à defesa, "fecha mais dentro", "joga mais junto".

Hoje já não é necessário?
Hoje o tipo de indicações são correcções mais cirúrgicas. Tudo evoluiu e ainda bem. Por isso não gosto de dizer "no meu tempo..." Se nascesse nesta época tinha de me adaptar, se bem que com as minha características ia ter muito mais dificuldades. Mas também tinha uma vantagem, porque o meu ponto forte era o um contra um. Hoje em dia situações dessas que surgem muitas, se calhar podia ter uma vantagem, mas a minha carreira foi bonita. Agora, quero ter uma carreira muito melhor como treinador de guarda-redes do que a que tive como jogador. Esse é um sonho que vou perseguir sempre.
Qual é o seu objectivo enquanto treinador de guarda redes?
O Fonseca convidou-me para trabalhar com a selecção do Canadá como treinador de guarda-redes. Acabo no Farense em Fevereiro e em Março começo logo na selecção do Canadá. As coisas correram-me bem. Tanto na primeira equipa como na equipa de Esperanças, de Sub-20, de sub-17, qualificações para Mundiais, qualificações para Concacaf, ou seja, foram seis anos que me permitiram acabar os cursos como treinador principal e como treinador de guarda-redes. E permitiu-me meter muita coisa em prática com os jovens e com a equipa principal. Foi bastante enriquecedor. 

Por que razão veio embora?
Entretanto houve uma mudança a nível da estrutura da federação, o presidente saiu para presidente da Concacaf e já se falava que o Canadá, os EUA e o México iam organizar o campeonato do mundo em 2026, o que veio a acontecer. Eu senti uma necessidade de trabalhar no dia a dia, gostava de voltar ao futebol diário numa equipa profissional. Entretanto surgiu o convite da parte do Luís Campos e tenho a agradecer mais uma vez às boas pessoas que se cruzam na nossa vida. O mister José Mourinho teve conhecimento de que o Luís Campos procurava um treinador de guarda-redes e indicou o meu nome. Estou-lhe muito agradecido, porque reconhece em mim capacidades para desempenhar essa função. Acabo por vir para o Lille numa situação de que não estava à espera, mas que era o desafio que eu procurava.

Não estava à espera em que aspecto?
Sentia-me preparado para isso, mas, vou ser sincero, pensava que talvez fosse voltar para Portugal, porque sabia que na Europa não havia pessoas que tivessem conhecimento do meu tipo de trabalho, eu não estava ligado a nenhuma equipa técnica, não estava ligado a nenhum treinador. Pensava que em Portugal, sendo português, o trabalho que tinha feito no Canadá podia dar-me alguma visibilidade. Eu tive muitos convites para continuar nos EUA e no Canadá. Surgir a oportunidade de trabalhar na liga francesa, numa equipa de primeira liga, confesso, com muita modéstia, que as pessoas pudessem ter outras opções. Pensava que não iria ser muito fácil entrar numa equipa técnica que estivesse já formada. O projecto do Lille e o projecto que o nosso director desportivo, Luís Campos, tinha em mente era ter os melhores profissionais para cada departamento. E um departamento que ele achava que era essencial é a posição específica de treinador de guarda-redes. Foi uma felicidade vir para Lille.

Está a gostar de trabalhar com os franceses?
Sim. O que vejo em França é que as pessoas têm qualidade de vida. O francês desfruta da vida. Há as horas de trabalho mas também há as horas de descanso, há as horas para poder jantar, para se poder divertir. Eles têm muito bem definidas as prioridades deles e a vida para eles não é só trabalho. O francês é conhecido pelo glamour e a expressão de viver à grande e à francesa tem a ver com isso, com a qualidade de vida que os franceses criam para si próprios. Eles têm os seus horários de trabalho, mas também têm as suas horas de poder estar numa esplanada, fazer uma refeição numa esplanada. Em Portugal estamos sempre a correr. Eles aqui conseguem ter pausas para poder desfrutar e apreciar o tempo que têm disponível. Em Portugal também somos muito apaixonados, mas vivemos a vida com uma intensidade muito grande e isso não é bom, as coisas acabam por nos passar ao lado. Em termos de futebol é um campeonato com muita exigência, tive a felicidade de poder trabalhar num clube que me dá boas condições não só a nível financeiro, como de recursos humanos e condições de trabalho onde posso desenvolver todos os conhecimentos e aprendizagens que tive. Tenho guarda-redes jovens, o clube aposta muito nos jogadores jovens para potencializar. 

Tem contrato por quanto tempo?
Dois anos.

Ambiciona chegar a um clube em específico ou ganhar algum título específico?
Neste momento gosto muito de estar no Lille, é dos melhores clubes franceses, mas claro que é um objectivo chegar aos grandes do futebol europeu, com todo o respeito pela instituição Lille. Esta semana já foi um sonho tornado realidade, participar numa Liga dos Campeões. Ganhar títulos é uma coisa de que gostava também, claro. Gostava de poder progredir na minha carreira, conseguir entrar nos clubes de top europeu e mundial. Equipas que possam ganhar os campeonatos nacionais dos seus países e a Liga dos Campeões. Enquanto guarda-redes fui campeão nacional da II divisão três vezes, duas pelo V. Setúbal e uma pelo Santa Clara. Quero também ganhar títulos como treinador.
Alguma vez foi chamado à selecção?
Não. Esteve perto mas nunca aconteceu.

É uma frustração que tem?
Não. Porque eu pertenci a uma geração de ouro que foi campeã do mundo em Lisboa e havia uma concorrência muito grande. Mesmo a nível sénior sabia que era difícil naquela altura, não senti nenhuma injustiça.

Saídas à noite?
Fazia mas mais pelo convívio com os colegas, não forçosamente por ser à noite. Era porque se proporcionava. nunca tive problemas, sempre cumpri horários, só saía nos dias de folga. Nunca bebi, nunca fumei.

É crente?
Sou. Acredito na energia positiva. Acredito em Deus e no meu trabalho. Sinto-me bem quando vou a Fátima. Já lá fui cumprir promessas, por mim e sem ser por mim.
Qual foi a promessa que fez?
Coisas básicas, como ter saúde, ter sempre trabalho, que as coisas corram bem. Para mim e para os meus.

Tem superstições?
Tinha e ainda tenho. Há cores com as quais me sinto melhor. Gosto de me benzer quando entro em campo, ainda hoje o faço.

Com que cores se sente melhor?
Sobretudo com o azul, é a cor do mar e do céu, mas gosto também do verde, que é a cor da esperança, e do roxo, que é uma cor de protecção.

Qual foi a maior extravagância que fez?
Comprar relógios. Tenho dois pelos quais tenho uma certa paixão e costumo dizer que eventualmente será um para uma filha e outro para a outra.

Tem tatuagens?
Tenho. Tenho uma no braço esquerdo com as iniciais dos nomes das minhas filhas, fiz no mesmo dia em que a minha esposa fez. Ela gosta muito de tatuagens e eu fui na iniciativa e fiz também. E tenho um anjo na costas de protecção com as iniciais da minha esposa e ela também tem com as minhas iniciais.

Onde ganhou mais dinheiro?
No Benfica.

Onde investiu?
Em vários produtos financeiros. Nunca me meti em nenhum negócio, porque tive sempre receio do risco. 

A sua mulher não voltou a estudar?
Não, não terminou o curso, ela é mãe e pai a tempo inteiro.

Disse há pouco que a sua mais valia enquanto guarda-redes era o um para um. E o ponto fraco?
Jogar com os pés.
Quem eram os seus ídolos?
O Michel Preud'homme e o Vítor Baía. O primeiro porque era muito completo o segundo pela sua elegância e capacidade.

O guarda-redes é a posição mais vulnerável dentro do 11?
Sim, é a posição mais ingrata. Porque um ponta de lança se falhar um golo e depois fizer um golo, tudo está bem, o guarda-redes se tiver uma infelicidade dificilmente consegue remediar um golo. 

Qual foi o jogo mais importante para si?
O da minha estreia na I Liga.

E qual o golo que mais custou sofrer?
O golo da eliminação da Taça de Portugal pelo Benfica, contra o Gondomar."