segunda-feira, 23 de setembro de 2019

“Entrei no escritório do Vale e Azevedo disfarçado, porque estava sempre um jornalista à porta. Fui de gabardine, chapéu e óculos escuros"

"Nuno Santos cresceu no bairro da Bela Vista e formou-se como guarda-redes no Vitória de Setúbal, com o avô atrás da baliza a dizer mal dele. Teve José Mourinho como treinador e chegou ao Benfica depois de uma época no Leeds. Uma lesão afastou-o de uma (quase) prometida titularidade na Luz e acabou em empréstimos ao Badajoz e ao Santa Clara, antes do regresso ao Benfica. Sem conseguir impôr-se, voltou a Setúbal e aos Açores, para a seguir cruzar o oceano em direcção a EUA e Canadá. Terminada a carreira, no Chipre, esteve vários anos a treinar os guarda-redes da selecção do Canadá, até ser convidado para o Lille, esta época

É natural de Setúbal e filho de guarda-redes.
Sim, o meu pai foi guarda-redes, num tempo em que ser jogador de futebol não era uma profissão muito bem vista, aliás, nem era vista como uma verdadeira profissão, na essência da palavra. Ele também trabalhava numa fábrica de automóveis sediada em Setúbal, onde faziam o famoso Mini dos anos 70. Paralelamente, jogava futebol. Acabou por tornar-se profissional de futebol, mas naquela altura, mesmo em termos de salário, não era nada comparado com os dias de hoje. A minha mãe sempre trabalhou no ramo da restauração. Esteve ligada a uma pastelaria quando eu nasci e depois teve a oportunidade de se transferir para o Mercado do Livramento, onde ainda hoje tem uma banca de venda de marisco.

Tem irmãos?
Tenho um irmão mais novo sete anos. Mudou-se há algum tempo para a Covilhã e faz lá a sua vida. 

Onde é que cresceu?
Passei a minha infância dividido entre o famoso bairro da Bela Vista e o estádio do Bonfim. Foram os meus avós que me criaram porque os meus pais trabalhavam o dia inteiro. O meu avô Manuel da Costa ia ver todos os jogos e a minha avó Maria da Luz era uma pessoa muito próxima de mim, ela praticamente é que me criou, foi o grande pilar da minha vida. O meu avô fazia uma coisa engraçada: desde que comecei a jogar, muito novo, ele acompanhava-em sempre, ia ver todos os jogos mas tinha uma particularidade, punha-se atrás da minha baliza a dizer que o guarda-redes não era bom (risos). Dizia “com este guarda-redes vamos perder. Este miúdo não é bom”. Fazia aquilo para ouvir os comentários das pessoas a falar bem do neto. Isso para ele era uma emoção fabulosa, era um orgulho enorme (risos).

Ouvia-o dizer mal de si nas suas costas?
Não. Depois as pessoas é que me contavam, os meus colegas, os pais dos meus colega. Ele faleceu antes de eu chegar à equipa principal do Vitória, que era o sonho dele.

Quando era pequeno, o bairro da Bela Vista já tinha a fama que tem hoje? Que memórias é que tem do bairro?
Na altura não existia o bairro da Bela Vista, mas a zona em si. A Bela Vista era a zona onde faziam a produção da água da Bela Vista, porque havia lá uma nascente. Eu morava na rua que dava acesso à fábrica de produção da água. Era uma zona afastada do centro. Com o 25 de Abril e o fim da guerra colonial, com todos os repatriados que vieram para Portugal e que nós acolhemos, as pessoas que tinham mais dificuldades sociais e económicas, como era o caso da minha família, ocuparam aquela zona com construções precárias, clandestinas.
Mas o Nuno já lá estava quando se deu o 25 de Abril.
Sim. O meu avô veio da Comporta para Setúbal, onde conheceu a minha avó e ali ficaram, naquela zona. Como o meu avô era ligado à construção, construiu uma casa ali. Costumo dizer isso às minhas filhas, vivíamos numa casa em que o chão não tinha cimento. A nossa casa era uma barraca de madeira, com o chão com umas carpetes por cima e era ali que eu passava o meu tempo. Depois, quando eu tinha sete anos, a Câmara Municipal de Setúbal deitou todas as barracas abaixo e ergueu um bairro social, designado por bairro da Bela Vista. É daí que nasce o bairro da Bela Vista, que naquela altura nunca foi problemático. A minha geração é toda uma geração com várias etnias que nunca presenciou qualquer problema no bairro. Vivi sempre com a minha avó, o meu avô entretanto faleceu e eu vivi permanentemente na casa da minha avó até me casar, até aos 24 anos, já era profissional do Vitória de Setúbal. Mas o bairro na altura não tinha problemas nenhuns. A geração que veio depois, essa sim já foi mais problemática.

A bola começa na rua, calculo.
Como todos os miúdos da minha infância eu jogava à bola na rua, claro. Passava horas e horas a jogar, saía da escola e todo o tempo que tinha disponível era para jogar à bola, mesmo quando anoitecia, acendiam-se os candeeiros da rua e nós ficávamos ali a jogar, até a minha avó me ir chamar.

Gostava da escola ou nem por isso?
Eu gostava da escola, o problema é que gostava muito de jogar futebol. A minha mãe e a minha avó sempre tiveram a preocupação de me perguntar como ia a escola. O meu problema é que eu ia à escola, mas fazia tudo por tudo para não ir às aulas. Só acabei o 12º ano, em 2007.

Torcia por que clube?
Nunca por nenhum dos grandes. O clube de que gostava era o da minha cidade, era o V. Setúbal. Fui ali nascido e criado. Comecei num clube do bairro, o OVNI 2001, onde o responsável pelo clube era treinador, presidente, massagista, médico, era tudo. Joguei como infantil, depois passo para os iniciados no V. Setúbal, onde entrei com 10 anos, através de captações. Apareceram lá imensos miúdos, 16 guarda-redes, eu fui ficando, ficando, ficando e comecei a época. Faço a minha formação no Vitória. Aos 15 anos apanho o José Mourinho como treinador. Foi meu treinador durante três anos nas camadas jovens e foi inclusive o meu primeiro treinador de guarda-redes.

Era bom treinador de guarda-redes?
Como treinador, na altura, não diria que ele ia ser o melhor do mundo, mas via-se que estava muito à frente e já tinha a preocupação de ter uma equipa técnica e percebia a necessidade de haver um treinador de guarda-redes. Nós tínhamos o treino normal e antes do treino ou depois do treino, ficava ele comigo a fazer treinos de guarda-redes e foi assim durante três anos. Treinávamos entre o período de aulas dele e o meu. Chegávamos a ir à quarta-feira de manhã de propósito para ele me dar treino específico de guarda-redes.

Desses três anos de trabalho com o José Mourinho o que lhe ficou mais na memória?
Naquela altura eu aprendi tudo o que veio a ser o suporte para a minha carreira futebolística. Agora é fácil falar porque sabemos o sucesso que ele teve e para mim é um dos melhores treinadores do mundo, mas naqueles anos ele foi a base, o pilar para a minha formação como atleta profissional de alta competição e como treinador de futebol de guarda-redes neste momento. Ele marcou-me a nível táctico, técnico, psicológico e a nível físico. Ele era muito forte nestas quatro componentes já naquela altura. Para mim foi uma aprendizagem de vida.

Lembra-se de algum conselho em especial que lhe tenha dado?
Lembro-me de uma célebre palestra em que ele dizia que havia potencial na nossa equipa, havia atletas que podiam chegar ao mais alto nível no futebol. E lembro-me que meti isso na minha cabeça e pensei, se o mister diz isto é porque há elementos no balneário que têm capacidade. Segui essas palavras à risca, trabalhei e consegui ser um jogador profissional de alta competição, que era o meu sonho.

A dada altura deixou a escola. Quando e porquê?
Com 17 anos o mister Mourinho deu-me a notícia de que eu ia começar a treinar com a equipa principal. Tive de fazer uma opção, porque os treinos passavam a ser de manhã, eu treinava à tarde com a equipa de juniores e a única solução que havia era ir estudar à noite ou deixar a escola. Numa primeira fase tentei conciliar as duas coisas, treinava de manhã com a equipa principal, treinava à tarde com a minha equipa de juniores e ia para a escola à noite. É claro que o cansaço era enorme, não consegui aguentar e desisti dos estudos, interrompi no 10º ano.
Vai então treinando com a equipa principal e jogando com os juniores, mas a determinada altura é emprestado ao Caldas.
Sim. E conheci uma pessoa que também foi importante na minha carreira, o mister Jaime Graça. Foi ele que me levou para o Caldas. Fui cedido pelo V. de Setúbal porque ia subir a sénior e era muito difícil naquela altura um jovem de 18 anos, ainda para mais guarda-redes, impôr-se na equipa principal. Foi a primeira experiência fora de casa e custou-me imenso. Já tinha a minha namorada, com 17 anos, que é hoje a minha esposa e mãe das minhas filhas, e foi bastante doloroso deixar a minha namorada de meses.

Quando foi para as Caldas da Rainha, foi sozinho ou com outros colegas?
Quando cheguei ao Caldas não era como é hoje, em que os jogadores vão e têm um departamento à disposição e uma casa com todas as comodidades. Quando fui propuseram-me partilhar casa com mais dois colegas da equipa. Cada um tinha o seu quarto, havia um espaço comum, a cozinha, onde fazíamos a alimentação.

Como é que fazia com as refeições? Ia sempre fora ou aventurava-se na cozinha?
Tinha de fazer. O meu contrato não era com alimentação, o salário também não era muito. O meu primeiro ordenado, fazendo a conversão, eram 300 euros. Não era assim tão mau, mas para ir sempre ao restaurante... E eu vinha todas as semanas a casa.

Quando é que começa a ganhar dinheiro no futebol? Ainda foi em Setúbal, antes de ir para o Caldas? 
Foi. Tinha 17 anos, eram 250 euros.

Lembra-se do que fez ao primeiro ordenado?
O meu primeiro ordenado foi um prémio de jogo. O mister Mourinho solicitou, e foi aprovado pela direcção do Vitória de Setúbal, que nós, que tínhamos 15, 16 anos, tivéssemos um incentivo, um prémio de jogo. Não havia ordenado. O primeiro dinheiro que consegui no futebol foram 1000 escudos (5€). Ganhámos o jogo no domingo com o mister Mourinho e no primeiro dia de treino a seguir, terça-feira, deram-nos 1000 escudos em notas de 100 escudos que eu ainda hoje guardo em minha casa. As notas estão novinhas, 10 notas de 100 escudos guardadas religiosamente porque foi o primeiro dinheiro que ganhei no futebol. Os meus colegas gastaram, compraram ténis e outras coisas como é natural. Para mim, que não tinha nada, 1000 escudos era uma fortuna. Mas quando recebi aquele dinheiro disse: “Este vou guardar, foi o primeiro dinheiro que ganhei na minha vida, foi o primeiro dinheiro que ganhei a jogar futebol, vou guardá-lo para ser um exemplo para mim e um dia para os meus filhos”.

Estava a contar que a sua adaptação no Caldas não foi fácil.
Foi muito difícil. Ainda hoje, sempre que saio para qualquer sítio fora de Setúbal, qualquer sítio fora de Portugal, fica sempre um nó na garganta. Claro que como setubalense, como português, temos a facilidade de nos adaptarmos, mas custa sempre. Os primeiros dias, as primeiras semanas foram dificílimas. Estar longe da minha família, do conforto que não sendo muito, era o ambiente familiar, da minha namorada, Susana Santos, que na altura estava a estudar medicina. Eu é que tinha de fazer a minha comida, atum com esparguete, arroz com atum, salsichas com ovos (risos). Era uma alimentação não muito condigna mas era aquilo que eu sabia fazer. Depois lá vieram as saladas, os bifes e a carne grelhada. 

E a adaptação ao próprio clube?
Foi difícil também mas acabei por adaptar-me. Estava habituado a estar numa equipa com mais condições. O Caldas era um clube com história mas não tão grande como a do V. Setúbal. A época acabou por correr bem e voltei para o V. Setúbal.
Voltou mas não jogou.
Voltei e não joguei. Não estava satisfeito, estive um ano sem jogar, não me foram dadas oportunidades...

Quem era o treinador nessa altura?
O Raul Águas. Mas era muito difícil, eu era o terceiro guarda-redes. Estamos a falar de uma equipa da I Liga com bons guarda-redes, era extremamente difícil darem-me uma oportunidade. Eles viam-nos como uns jovens. Fazíamos alguns treinos em conjunto mas nem tinha a oportunidade de mostrar o meu valor. De vez em quando entrávamos nos treinos, mas quando chegava ao jogo, havia três guarda-redes e eu ficava ali ao lado da baliza a ver o que se passava. Era sempre o miúdo, eu como alguns colegas meus. Só diziam: “Algum dia hás-de ter a tua oportunidade”. Ao fim de um ano cansei-me.

E vai emprestado para o Operário da Lagoa.
Foi o Jaime Graça novamente que viu algum potencial em mim e convidou-me para ir para o Operário dos Açores. Fui e foi uma adaptação ainda mais difícil, ir viver nos Açores naquela altura. 

Foi sozinho?
Sim. Tive a oportunidade de jogar com o Pauleta. Na altura éramos os dois jogadores mais falados na equipa, as coisas correram muito bem. Mas foi ir novamente para um campo pelado, o que já não me acontecia desde os meus tempos de formação. Naquele tempo não havia telemóveis, ainda sou do tempo de escrever cartas à minha namorada e de ela me escrever cartas. Cartas que levavam três dias a chegar aos Açores (risos). Falávamos duas ou três vezes por semana, com hora marcada, pela cabine telefónica. Ela ligava para mim de uma bomba de gasolina e os impulsos sempre a caírem; e eu a juntar dinheiro para falar com ela e com a família. Foi um período difícil.

Gostou dos Açores e dos açorianos?
Gostei, fui bem recebido.

Percebia o que eles diziam ou tinha dificuldade?
Tinha dificuldade. Lembro-me que ao início quando falava com o Pauleta tinha dificuldade em perceber aquilo que ele dizia, mas como a língua do futebol é universal, conseguíamos entender-nos perfeitamente.

Entretanto volta para Setúbal na época seguinte mas o treinador continuava a ser o Raul Águas e continuava a não jogar.
Sim, aí já começava a desesperar. Os anos começavam a passar.

Alguma vez pensou em desistir e ir fazer outra coisa?
Nunca pensei em desistir. Também não sabia fazer outra coisa, nunca tive habilidade para fazer outra coisa. Fiz alguns trabalhos a descarregar barcos de peixe, a descarregar camiões de sapateiras, fazia o que era preciso para ganhar algum dinheiro extra, mas nunca tive muito jeito para fazer nada, nem sabia o que queria fazer da minha vida, estava concentradíssimo, queria ser profissional de futebol. Na minha carreira, se consegui construir alguma coisa de que me orgulho, é porque lutei muito. Passei por muito, mas lutei sempre pelo meu objectivo. A minha esposa, a Susana, que conheci no tempo da escola, com 15 anos, é testemunho disso. Sempre foi o meu grande pilar, da nossa relação e da minha carreira profissional. Há que ressalvar isso.

Disse que ela estava a estudar medicina. Acabou o curso, faz alguma especialização?
A Susana estava no 4º ano quando sai comigo para Inglaterra.

Já lá vamos. No V. Setúbal, acaba por fazer a sua estreia com o Manuel Fernandes.
Sim, eu insisti, persisti no meu sonho e ele deu-me uma oportunidade. Foi no dia dos meus anos. Uma lesão de um colega, o Cândido, e eu entro num jogo contra o Estrela da Amadora.

Estava muito nervoso quando ele o chama?
Não. Muito nervoso estava o Manuel Fernandes porque eu nunca tinha feito um jogo na I Liga, faltavam oito jogos para acabar o campeonato e o V. Setúbal como tem sido hábito nos últimos anos e naquela altura também, estava numa luta para fugir aos lugares de despromoção. Pôr um guarda-redes que nunca tinha jogado... O Manuel Fernandes estava nervosíssimo. Eu não, estava calmo e tranquilo.

Lembra-se do que ele lhe disse antes de entrar?
Lembro, disse-me: “Pronto, miúdo, vai lá. Isto é como se fosse um treino, vai correr tudo bem, tu tens qualidade e vais fazer um bom jogo”.

Correu-lhe bem ?
Acabamos por perder o jogo, mas correu-me bem. Mas a melhor lembrança que guardo foi na semana a seguir. Fomos jogar contra o Sporting, ao antigo estádio José Alvalade, onde faço a minha estreia como titular. O Manuel Fernandes aí tinha outras opções, mas optou por mim. Foi opção dele e é a quem tenho de agradecer o ter-me lançado na I Liga, em Portugal. E o jogo correu-me super bem. 

Depois já não sai mais da baliza.
Depois já não saio mais. E há uma coisa curiosa, lembro-me de estar nesse jogo, no túnel do antigo estádio de Alvalade e um colega meu, o Rui Carlos, que era defesa esquerdo, dizer: “Olha, Nuno, andavas sempre aí a falar em teres uma oportunidade e que nunca te davam uma oportunidade, agora quero ver se vais agarrar essa oportunidade”. Respondi-lhe: “Fica tranquilo porque eu vou agarrar esta oportunidade com as duas mãos e nunca mais vou sair da baliza”. Acabei por fazer o resto dessa época e a época seguinte como titular na baliza do V. de Setúbal até partir para Inglaterra.
E como é que se dá a ida para Inglaterra?
O treinador do Leeds United, George Graham, vem a Setúbal para ver um jogo com o Boavista. Ele vinha ver o Jimmy Hasselbaink e o Nuno Gomes, e ao vê-los quis contratá-los, mas o Nuno Gomes já tinha contrato apalavrado com o Benfica e acaba por levar o Jimmy. Como gostou muito de ver o Bruno Ribeiro do V. Setúbal, leva-o para o Leeds. Também gostou do meu jogo, mas como eles tinham um guarda-redes que estava a acabar a carreira, tinha mais um ano de contrato, iam aguentar esse guarda-redes. Eu entretanto também acabava o meu contrato em Setúbal, fiquei por ali e vou no ano seguinte. Esse guarda-redes deles ainda estava lá mas como se lesionou no início da pré-época, sou contratado pelo Leeds. Na altura tinha saído a Lei Bosman e eu saio livre para Inglaterra.

Nessa altura já estava casado?
Casei um ano antes de ir para Inglaterra. Já tinha saído da casa dos meus avós, tínhamos comprado um apartamento os dois, a minha esposa estava a estudar na faculdade de medicina da Nova, em Lisboa. Tudo apontava para fazermos a nossa vida por Setúbal até ela acabar o curso, mas surgiu a oportunidade muito repentina de ir para Inglaterra e fomos.

Tinha empresário?
Tinha o Lucílio Ribeiro, mas a transferência não foi feita por ele. Houve situações com ele em que eu era para ir para o Benfica, para ir para o Porto, mas o V. de Setúbal pedia quantias altas. Acabo por sair para Inglaterra livre, e quem fez a minha transferência foi o Amadeu Paixão.

A sua esposa largou o curso…
Sim, interrompe a faculdade, vai comigo e nunca mais voltou, porque entretanto também nasceram as nossas filhas.

Qual foi o primeiro impacto quando lá chegou?
Fiquei deslumbrado, era o campeonato inglês, que ainda hoje é apetecível para qualquer jogador de futebol, pela intensidade, pela paixão e por tudo o que envolve o próprio campeonato. Cheguei a Inglaterra com uma expectativa enorme.

Sabia inglês?
Não é um dos motivos que fez com que a minha esposa deixasse a universidade para vir comigo, foi porque eu não sabia falar nem uma palavra em inglês. Cheguei lá tinha o Bruno Ribeiro, tinha o Jimmy que falava português e inglês, mas eu não sabia uma única palavra de inglês. Porque eu não ia às aulas de inglês quando andava na escola em Portugal (risos).

Ficaram a viver onde?
Num hotel. Eles davam a opção de ficar lá três meses, entretanto a minha esposa como eu estava lá sozinho e não conseguia falar a língua, foi ter comigo. Dentro de campo era extremamente complicado, mas tive de ter uma adaptação mais rápida dentro do campo do que na vida social. A vida social era extremamente difícil e então a minha esposa foi ter comigo e esteve lá sempre. Ficámos sempre a viver no hotel. A minha mulher engravidou da Joana e fazia viagens para Portugal com frequência e decidimos ficar no hotel. Primeiro os dois, depois com a Joana, que nasceu em Portugal mas foi para lá a seguir.
Gostavam de viver no hotel?
Adorámos. Imagine, jovens com 24, 25 anos, achávamos super engraçado. Éramos jovens, tínhamos casado há pouco tempo, tivemos uma filha, aquilo para nós era um conto de fadas.

O Nuno assistiu ao parto da Joana?
Não. A Susana viajou no dia 6 de Novembro e a data prevista para a Joana nascer era a 6 de dezembro. Ela realmente nasceu nesse dia mas eu tive jogo no dia anterior. O treinador tinha-me dito: “Nuno, quando a tua filha nascer comunica-me para ires a Portugal” e eu ok. Jogámos no sábado, a minha filha nasceu no domingo, nós tínhamos a festa de natal do Leeds e fui ter com ele: “Mister, a minha filha nasceu”. Na altura o nosso treinador já era o David O’Leary, que também foi durante muitos anos treinador no Manchester United. Eu estava na expectativa que ele dissesse: “Ok Nuno, vai a Portugal ver a tua filha”, mas ele: “Ok, nós temos jogo na terça-feira, a seguir ao jogo podes ir”. Não disse nem mais uma palavra.

Mas foi um balde de água fria.
Foi, eu estava com uma expectativa imensa, passou-me duas coisas pela cabeça e falei com a minha esposa. Ou eu saio na segunda-feira de manhã, apanho o vôo e estou em Portugal na segunda-feira ou jogo na terça-feira e apanho o avião na quarta-feira de manhã, porque o jogo era na terça-feira à noite. Ela disse-me: “Nuno, percebo a tua ansiedade mas a menina já nasceu e o importante é que está tudo bem de saúde. Sei que é difícil para ti”. Tomámos a decisão em conjunto como fazemos sempre: “Fica aí e vai jogar o teu jogo”.

Como correu o jogo?
Joguei com uma ansiedade imensa. De todas as pessoas, fui o último a conhecer a minha filha. Não dormi a noite toda. Quarta-feira de manhã dentro do avião lembro-me que não me conseguia sentar com a ansiedade de ver a minha filha, as hospedeiras sempre a dizerem-me que tinha de me sentar. Vejo a minha filha já com três dias de nascida (risos). Ainda hoje ela me diz: “Pai, não estavas no meu nascimento, mas estiveste no nascimento da mana”. É que a irmã nasceu em Junho e eu estava de férias. Nos aniversários era a mesma coisa. Ela hoje em dia percebe e sabe que se tem a vida que tem é porque o futebol também proporcionou isso.

Segue-se o Benfica. Foi abordado por quem?
Já havia um namoro por parte do Benfica e do FC Porto. A nível dos empresários já se falava nessa possibilidade. Eu tinha mais uns anos de contrato com o Leeds mas, como cheguei a Inglaterra livre, tinha uma cláusula no meu contrato que me permitia sair livre no final de cada época. Pensando eles e pensando eu que se as coisas não corressem bem, sempre podia voltar para o V. de Setúbal sem qualquer indemnização. O Benfica, que na altura estava a reestruturar o plantel, depois daquela fase dos ingleses e do Graeme Souness, vai buscar o Jupp Heynckes. Três meses antes, em março, tive conhecimento de que o Benfica me queria contratar. O Benfica tinha o Ovchinnikov, o Michel Preud’homme e o Paulo Lopes. Fui o primeiro guarda-redes a ser contratado pelo Vale e Azevedo. Foi ele que entrou em contacto comigo. Faço uma viagem relâmpago numa quarta-feira, dia de folga, a 17 de março de 1999, vou diretamente ao escritório do Vale e Azevedo, na Avenida da Liberdade. Fui com um agente espanhol, o Jorge Lera, que na altura me representava, e começámos a fazer as negociações. Foi quando me comunicaram em sigilo que o Michel Preud’homme ia acabar a carreira e iria exercer novas funções como dirigente desportivo e supostamente eu iria substituir o Michel Preud’homme. Foi-me pedido para manter o sigilo durante três meses, até acabar o contrato que tinha com o Leeds.

Aceitou sem pestanejar?
Quando chego penso que vou ter uma conversa com o Benfica, uma abordagem, só que as negociações andaram muito rapidamente porque eles queriam fechar o contrato comigo. Tinham tido aquela aposta nos jogadores ingleses e queriam mudar totalmente. A aposta seria nos jovens portugueses e eu enquadrava-me na política do clube, tinha 25, 26 anos. Não me deixaram sair do escritório sem assinar contrato. Entro no escritório do Vale e Azevedo disfarçado porque estava sempre um jornalista desportivo à porta para obter informações. Por isso quando saio do táxi vou disfarçado com uma gabardine, de chapéu e com óculos escuros, passo pelo jornalista, entro no escritório sem ele me conhecer. Faço a minha negociação e assino por quatro anos. Como tinha vôo nesse mesmo dia à noite, depois de fazer o contrato vou com o senhor Martim Cabral, que sai comigo pela porta dos fundos do escritório do Vale e Azevedo, para irmos ao notário, que já estava fechado, mas ainda deu para reconhecer o meu contrato.

Mas depois trocaram-lhe as voltas.
As voltas foram um pouco trocadas porque o Jupp Heynckes quando chega, dá de caras com o Michel Preud’homme no final da carreira, com o Nuno Santos contratado, o Ovchinnikov como guarda-redes e ele disse: “Eh pá, o Nuno Santos conheço pouco, o Ovchinnikov não quero que faça parte do plantel, quero trazer um guarda-redes da minha confiança, também jovem”. Foi o Robert Enke. Chega o Enke e ele pede também um guarda-redes já com experiência, e vem o Bossio, que foi contratado pelo Benfica, mas o presidente não o queria pagar. Aquilo ficou ali uma cena muito conturbada. Partimos para a época, eu, o Enke e o Bossio. Ou seja, partimos os três, mas sem o Bossio ter contrato registado na Liga e entretanto Ovchinnikov sai do Benfica. Na pré-época, fazemos o estágio na Alemanha, onde eu tenho uma lesão gravíssima, com dois dias de treino.

O que é que aconteceu?
Fiz uma ruptura do infra espinhoso. Nunca tinha tido lesões na minha carreira e no Benfica, no meu primeiro ano, tive duas gravíssimas.

Mas como faz essas lesão na pré-época?
Num treino, na véspera de um jogo com o Borussia de Dortmund. Cortei o músculo do infra espinhoso. Naquela altura não era uma lesão muito conhecida, nem o Bernardo Vasconcelos, que era o médico do Benfica, nem o Gaspar, que era o nosso fisioterapeuta, tinham conhecimento de uma lesão tão grave assim e que me afastou durante seis meses. É nessa altura que o Moreira é chamado à equipa principal e começa a fazer parte do grupo de trabalho. Passados seis meses consigo jogar para a Taça de Portugal, fiz um jogo pelo Benfica com o Torres Novas e volto a lesionar-me. Fiz um estiramento do ligamento interno no joelho que me deixou afastado mais três meses. Ou seja, durante a época de 10 meses eu estive um mês apto. O sonho veio-se a tornar um pouco um pesadelo e depois saio novamente cedido para ter oportunidade de jogar, para Espanha.

Antes de irmos a Espanha. Privou com Robert Enke. Ele demonstrava ser uma pessoa deprimida? 
Não posso dizer que me passava pela cabeça que o Enke iria ter o final que teve. Aquilo que posso dizer é que havia alguns comportamentos que para mim não eram muito normais.

Pode dar exemplos?
Ele era uma pessoa que não sorria muito, era muito introvertido. Como colegas de quarto havia situações... Ele entrava no quarto e a primeira coisa que fazia era fechar os estores todos do quarto, ligava a televisão sem som e ficávamos ali com a televisão num canal alemão, sem som, as persianas fechadas e ele acabava por adormecer, isto à tarde. Eu não achava aquilo muito normal, embora reconhecesse que ele pudesse ter o descanso dele. Era uma pessoa muito amiga, mas todos os dias notava-se que era uma pessoa muito revoltada, nunca estava satisfeito.

Estava revoltado com o quê?
Com todas as situações do dia dia. Ou no treino, uma simples bola, ou a relva.

Zangava-se com os colegas e o treinador?
Não, ele tinha um comportamento, tanto com os colegas como com o treinador, exemplar. Era muito exigente com ele próprio. E penso que a exigência entrou num estado espiral que infelizmente levou àquele desfecho. Era um excelente colega, um excelente ser humano, mas notava que ele tinha alguns comportamentos estranhos, que era muito fechado, muito no mundo dele.

Quem é que lhe propõe o Badajoz?
O Benfica achava que depois do tempo que eu tinha estado sem poder jogar, precisava de jogar e apanhar rotina de jogo e não ia ser no Benfica. O Enke estava a fazer uma boa época. Foi equacionada essa situação e também havia interesse porque o meu agente era espanhol. Surgiu essa oportunidade em Espanha e eu saio.

E vai sozinho ou com a sua mulher e a sua filha?
Fui com as duas. A minha esposa e a minha filha andaram sempre comigo, até entrar na idade escolar. Em Espanha a adaptação foi fácil, o clube, a língua, a proximidade de Portugal, eu vivia em Espanha e vinha comer todos os dias a Portugal.

Também preferiu ficar a viver num hotel?
Quando cheguei vivi num hotel, mas não chegou a um mês. Depois procurei casa, mudei-me rapidamente para um apartamento mesmo junto à fronteira, para poder vir a Portugal jantar todos os dias (risos). Jogou pouco. Não joguei por causa da política do clube. Fui contratado por quem é hoje presidente da Liga Espanhola, o Javier Tebas, foi uma aposta pessoal dele. Eu e outros jogadores, lembro-me do Tulipa. Mas o treinador não teve conhecimento. Ou melhor, teve conhecimento das nossas contratações, mas a opção dele passava por jogadores que ele conhecesse. Como não nos conhecia, percebi que o espaço de manobra para mim não ia ser muito. Eu ia com muitas expectativas. O treinador entendeu que era uma boa contratação por parte do presidente, mas que eu não tinha ritmo de jogo, tinha estado muito tempo lesionado. Não sentiu confiança para me pôr a jogar de início. O campeonato em Espanha da II Liga tinha na altura clubes como o Atlético de Madrid, o Sevilha, o Sporting de Gijón, o Real Betis, tudo equipas fortíssimas. Eu na altura não percebi, mas hoje percebo perfeitamente que era um risco imenso por um guarda-redes que tinha estado praticamente uma época parado.
Como reagiu?
Eu ia com expectativa de jogar, o empréstimo estava feito, se eu tivesse conhecimento antes, não tinha optado por ir para Espanha ou então ia para outro clube em Espanha. Mas com tudo já feito, a minha margem de manobra era muito curta. Então peço logo para não contarem comigo, vou adquirir a minha forma mas vou procurar outra situação em dezembro e saio.

É quando vai para o Santa Clara.
Sim, vou reencontrar o meu amigo Manuel Fernandes. No Santa Clara voltei a ser feliz, voltei a ter oportunidade de jogar e acabo por fazer uma boa segunda volta e conseguimos a subida de divisão. 

Vai com a família também para os Açores?
Havia períodos em que estavam comigo nos Açores, porque não fui por muito tempo, foram só por cinco meses. As coisas estiveram muito bem e tudo apontava para que eu continuasse cedido, porque continuava a jogar, a competição que havia no Benfica não deixava muito espaço para mim e eu até queria continuar no Santa Clara, tínhamos subido de divisão, mas a nível da direcção não houve entendimento e acabo por sair e vou para o Beira-Mar, com a concordância do Benfica. Nessa altura a minha família vai comigo para Aveiro e acabo por fazer uma excelente temporada no Beira-Mar. 

Com o António Sousa como treinador.
Sim, as coisas correram muito bem e depois no final da época voltei a renovar com o Benfica, aí já com outro ritmo competitivo e venho fazer ao Benfica a época de 2002/2003. Na altura falava-se muito em quem seria o guarda-redes do Benfica, mas eu sabia que ia ser feita uma aposta no Moreira. Na altura o presidente já era o Manuel Vilarinho, com o Luís Filipe Vieira como vice-presidente. O professor Jesualdo Ferreira disse-me “o plano é que venhas para o Benfica, que fiques aqui como uma opção válida. Vamos lançar um jovem com potencial, que é o Moreira, e contamos contigo para fazer essa transição”.

Custou-lhe ouvir isso nessa altura?
Estava mais maduro, já com 29 anos, era uma renovação do contrato com o Benfica, era uma opção válida. O Luís Filipe Vieira foi uma pessoa bastante honesta e o professor Jesualdo Ferreira também, disseram-me que iam apostar no Moreira, mas queriam que eu fizesse parte do projecto.

E foi isso que aconteceu?
Foi, foi isso que aconteceu. Fui extremamente bem tratado pelo Benfica. Não vou dizer que contribuí para o sucesso que o Moreira teve na carreira dele, mas posso dizer que contribuí para que ele se sentisse bem naquela altura em que lhe era dada pela primeira vez a oportunidade de fazer a época na baliza do Benfica. Sendo uma aposta pessoal do Benfica, penso que fui parte importante no apoio e em todos os meus conhecimentos e experiência e que lhe dei naquele período de transição. 

Reconhecia-lhe talento?
Reconheci talento. Foi-me dada a oportunidade de jogar. Joguei em jogos da Taça, cumpri, e sabia que a baliza do Benfica iria estar bem entregue e fiquei satisfeito com a minha missão.

Gostou do professor Jesualdo enquanto treinador?
Muito. Uma pessoa muito directa, com grande conhecimento do futebol. Tivemos uma relação muito boa - por vezes quando um jogador não joga as relações podem não ser tão boas, mas a nossa era boa.
Nessa altura foi viver para onde?
Estava em Setúbal, entretanto nasceu a minha filha mais nova, a Mariana, no início dessa época. A Joana nasceu em 1998, tem 20 anos e a Mariana em 2002, tem 17. Nasceu nesse verão. Depois perdemos um jogo da Taça e com muita pena nossa o professor foi afastado. O nosso presidente, o Luís Filipe Vieira, queria muito manter o Jesualdo Ferreira na equipa, mas, na altura, uma derrota na Taça de Portugal contra uma equipa da II Liga, numa equipa como o Benfica, fez muita mossa.

Cedeu à pressão dos adeptos?
Foi muita pressão, não é fácil. Veja o que era o Benfica naquela altura ser eliminado por uma equipa de Gondomar da III divisão. Fomos eliminados em casa por 1-0. Num daqueles jogos em que podíamos estar ali até amanhã de manhã que não ganhávamos o jogo. Foi extremamente difícil para o próprio professor. Penso até que foi uma decisão tomada de mútuo acordo. Foi um dia muito triste para o Benfica e para mim pessoalmente. Ainda apanhei o Fernando Chalana que fez ali a transição até à chegada do Camacho.

E que tal o Camacho?
Foi um treinador que chegou, fez as opções que achava que deviam ser feitas. Na altura o Moreira estava a jogar bem e manteve a aposta nele. Não tenho nada pessoal a dizer, foi uma opção natural. No final da época não me sentia satisfeito, também queria jogar e ter a oportunidade de voltar a ser feliz. Sentia que ainda podia dar algo ao futebol e a mim mesmo e surgiu a oportunidade de ir cedido para o V. Setúbal e tomei essa opção de retomar à boa casa onde cresci por assim dizer.

Chegou a privar com Fehér.
Sim, fomos colegas de equipa e tínhamos um bom entendimento. A minha filha mais velha na altura era pequenina e tinha uma adoração por ele, dizia que queria muito conhecer o Fehér e queria a camisola dele. E uma semana antes do que aconteceu em Guimarães surgiu a oportunidade de levar a minha filha ao estádio. E depois do jogo passamos um bom momento juntos. Momento esse em que o Fehér teve a amabilidade de oferecer a camisola à minha filha. Ela ficou super satisfeita e com uma memória para toda a vida. Passada uma semana, acontece aquela situação em Guimarães com o Fehér, eu estava em casa a ver o jogo pela televisão.

Percebeu logo que era grave?
Sim, com a repetição das imagens, percebi e depois fui acompanhando através dos colegas. Mas o que prefiro guardar é a alegria da minha filha de poder partilhar momentos de intimidade com ele uma semana antes e aquele sorriso que ele nos deu antes de cair.

Quando chega a Setúbal apanha o Carlos Carvalhal como treinador, não é?
Sim. Faço uma época em Setúbal, conseguimos subir de divisão e sou novamente cedido. Volto aos Açores, ao Santa Clara, um clube onde também já tinha estado.

Mas vai por opção sua ou porque o V. Setúbal não o queria?
Foi pelo projecto. Havia a possibilidade de continuar em Setúbal, mas havia um projecto no Santa Clara de médio, longo prazo a nível de contrato, de poder estender o meu contrato, eu na altura já tinha 32, 33 anos. Podia fazer três, quatro anos no Santa Clara, era uma oportunidade de estabilidade. Ia trabalhar com uma pessoa que para mim era uma referência, o Lucien Huth, que tinha trabalhado com o Michel Preud’homme e que para mim é uma referência no treino de guarda-redes. Esta foi uma peça importante para a minha decisão.
O que ele tem de especial?
Como treinador de guarda-redes ele é único. Se hoje estou na posição em que estou, no futebol, a nível de treinador de guarda-redes, há duas pessoas a quem posso agradecer. Uma é o mister José Mourinho, que foi sempre uma referência enquanto fui atleta dele, numa primeira aprendizagem. Ao longo dos anos incentivou-me sempre e pôs-me a pensar no pós profissional, no que iria ser o meu futuro. Eu disse que gostava de ficar ligado ao futebol, de ser treinador de guarda-redes e ele disse-me logo para começar a tirar cursos. “Começa a preparar-te, começa a tomar as tuas notas porque vai ser muito útil”. Foi um conselho que segui à risca ainda como jogador. Com o Lucien Huth foi o conhecimento a nível de treino de guarda-redes que me passou. Se me encontro aqui a falar consigo, no dia da minha estreia na Liga dos Campeões como treinador, deve-se a essas duas pessoas que contribuíram muito para a minha carreira a nível de jogador e como treinador de futebol.

Quem era o treinador quando chegou ao Santa Clara?
O professor José Morais. As coisas acabaram por não correr muito bem numa fase inicial para ele. Depois vem o mister Formosinho, que hoje em dia é assistente do José Mourinho. Conseguimos os nossos objectivos e acabei por renovar o meu contrato e fiquei três épocas nos Açores.

Nesse regresso aos Açores leva a família?
Não. Numa primeira fase ainda pensámos nisso mas como a Joana ia entrar numa fase de idade escolar, optámos por deixar a família ficar em Setúbal. E aí foi uma situação difícil. O facto de estar novamente sozinho, sem a família. Só nas férias escolares é que elas me visitavam.

Depois abre-se um novo ciclo na sua vida com a partida para os EUA. Vai como e porquê?
Vou através de um amigo de um amigo com quem tinha jogado, o Nuno Almeida. Havia uma equipa americana que estava à procura de um guarda-redes. A época em Portugal já tinha acabado e estava a meio no campeonato americano. Eu já lá tinha ido várias vezes pelo Benfica e pelo Santa Clara. Propus-me um desafio. Porque não? Era uma proposta muito mais vantajosa, e atendendo à idade e ao meu percurso…

Uma realidade completamente diferente.
A todos os níveis. É como se diz, foi a descoberta de um novo mundo. A nível do futebol, se bem que hoje já esteja mais evoluído do que em 2007, continua a ser uma maneira de jogar completamente diferente. Ali tudo é um espectáculo, tudo é um show. Tudo é levado nesse sentido. Acabou por ser uma experiência positiva por ser diferente.

Mas um futebol mais fraco do que aquele a que estava habituado.
Sim, um futebol completamente diferente, com uma qualidade muito inferior ao futebol europeu.

A que lhe custou mais a adaptar?
Ao facto de serem muito distantes. Eu estava habituado ao espírito de equipa, aquela entreajuda, o calor - nos EUA era cada um por si. Encontrávamo-nos para treinar e quando eu ia tomar banho, mais de metade da equipa já se tinha ido embora. Não havia um sentido de grupo.

Também estava sozinho?
Sim, fui viver para um apartamento num condomínio. Como apanhou a altura de férias a minha família esteve lá comigo até ao início do período escolar...

Entretanto vai para o Canadá.
Surgiu também através de contactos que eu tinha feito nos jogos pelo Benfica e pelo Santa Clara. Sempre gostei muito de Toronto, foi sempre uma das cidades favoritas.

O que é que o fascina em Toronto?
O facto de ser multicultural. Toronto é uma cidade fabulosa, tem um bairro tipicamente português, passamos para o bairro seguinte e é um bairro italiano, passamos para outro e estamos em Chinatown, ou seja, é uma cidade multicultural, com uma boa qualidade de vida embora os Invernos sejam muito rigorosos. Muito calor no verão, com muita humidade, muito frio no inverno, com muita neve. Costumo dizer que o Canadá tinha tudo de bom que tem os EUA, mas estava mais perto da cultura europeia. O povo canadiano é mais afectivo.
O que fazia nos tempos livres nos EUA?
Não fazia praticamente nada. Não tinha vida social nenhuma. Como nunca liguei à Playstation, entretinha-me a ver filmes e a fazer caminhadas. Era aquilo que eu gostava de fazer. Em Toronto já convivia com a comunidade portuguesa e com as outras comunidades. Aí sim, tenho amigos para a vida.

Foi por isso que foi para Toronto na época seguinte?
Sim. Gostava de estar no Canadá mas depois voltou a pesar o facto de estar longe de casa, longe da família, de estar sozinho e o facto de querer voltar a jogar um futebol mais profissional. Acabei por voltar para Portugal. Primeiro fui para o Gondomar, aproveitei e acabei os meus estudos através das Novas Oportunidades e depois ainda passo pelo Arouca, foi o Carlos Secretário, meu amigo, que me convidou.

Mas ainda vai para o Chipre, onde acaba a carreira.
Vou parar ao Chipre porque as equipas em Portugal tinham orçamentos mais baixos, cada vez pagavam menos, a minha carreira estava perto do fim, tinha 37 anos e quando recebo uma proposta a nível financeiro mais interessante do Chipre, questionei-me. Ia custar a mim e à minha família, mas a nível financeiro compensava. Acima de tudo foi a parte financeira que pesou mais. Depois, a nível cultural acabou por ser enriquecedor. A nível desportivo, correu bem, conseguimos ganhar a Taça da Liga.

Do que gostou mais e menos do Chipre?
Menos, o calor. Não é muito agradável apanhar 50 graus (risos), depois de ter estado no Canadá com 40 graus negativos. Mas a nível de cultura era engraçado. Vivia em Nicósia, mesmo no centro da cidade. Uma cidade que está dividida ao meio. Uma parte é turca cipriota e a outra metade é grega cipriota.

De qual parte gostou mais?
Como estava a viver na parte grega, estava mais habituado a essa zona. A nível de cultura estamos a falar de ortodoxos na parte da Grécia e de muçulmanos do lado turco. Não tive qualquer problema. Tanto entro numa igreja católica como entrei numa ortodoxa, como entrei numa mesquita. Não teve nenhum problema no clube? Nada. Apanhei um presidente muito bom, apanhei colegas extraordinários, éramos uma equipa muito jovem, tínhamos três atletas mais velhos, que por sinal eram portugueses, eu, um médio esquerdo, o Spencer, da minha formação no Benfica, e o Mateus, um cabo-verdiano que tinha jogado comigo nos Açores.

Quando acaba o seu contrato no Chipre, já sabia que não ia voltar a ser futebolista e passava a ser treinador?
Eu estava com 39 anos e falei com o presidente. Ele disse que os patrocinadores iam cortar no orçamento e que por isso seria difícil eu ficar nas mesmas condições. Como eu já tinha oportunidade de me iniciar como treinador de guarda-redes juntamente com o Bruno Ribeiro no Farense, através de um amigo e empresário, o Manuel Tomás, disse-lhe que não sendo possível ficar com as mesmas condições, dava por encerrada a carreira. Costumo dizer às vezes na brincadeira que cada vez custava-me mais fisicamente jogar e cada vez queriam pagar-me menos (risos). Então optei por acabar a carreira. Mas foi de forma normal.

Já se vinha a preparar.
Sim, há muito tempo, eu tirei o primeiro curso de treinador em Aveiro quando estava a jogar no Beira-Mar, em 2002. Em 2003 tiro o segundo nível quando estava no Benfica. Quando acabei a carreira, em 2012, tirei o curso de UEFA A, na Escócia. Depois tirei o UEFA Pro, de treinador principal, em 2016. E tive ainda a oportunidade de tirar o curso UEFA A de treinador de guarda-redes na Escócia, que não há em Portugal. Sou dos poucos no mundo a possuir essa credencial de guarda-redes certificado pela UEFA, no mundo inteiro somos menos de 40.
Estava dizer que se estreou como treinador de guarda-redes no Farense com o Bruno Ribeiro em 2012/13. É mais complicado ser treinador do que jogador?
Muito mais. Um jogador de futebol preocupa-se em ter a sua condição física e pensa só no treino e na forma de jogar, enquanto um treinador de guarda-redes tem de pensar em muitas coisas, são 24 horas. Só não são mesmo 24 horas porque temos de dormir. Mas por muito que tente abstrair-me do treino, para mim é impossível, são muitas horas a pensar o treino, muitas horas no treino e muitas horas a analisar o que foi feito e a preparar novamente.

Foi para Faro sozinho novamente, certo?
Sim. As miúdas na escola, a esposa a fazer de pai e mãe com umas meninas já na adolescência e eu o que fazia no norte faço no Algarve, no fim de semana depois dos jogos ia para Setúbal.

Se fosse guarda-redes hoje, seria melhor do que foi?
Acho que o Nuno Santos guarda-redes ia ter muitas dificuldades.

Porquê?
Na nossa idade, por não haver tanto conhecimento no futebol, tínhamos de ser muito mais vivos, mais matreiros, muito mais espertos. O futebol evoluiu muito nos últimos 10 anos em termos técnicos, tácticos, o conceito do treino, as metodologias de treino, a organização do próprio treino. Antes tínhamos de ser muito mais vivos dentro de campo. Hoje em dia as exigências são totalmente diferentes. Não há tanto a necessidade de ter aquela matreirice porque o conhecimento táctico é muito maior e os jogadores conseguem reagir e pensar muito mais rápido, daí o futebol ser muito mais rápido, porque o que dá velocidade ao jogo também são os jogadores, não é só a bola.

Quando fala de matreirice está a referir-se a quê em concreto?
Eu é que tinha de organizar a defesa, por mim próprio, eu é que comandava a defesa, havia uma exigência de comandar mais. Hoje no futebol moderno o guarda-redes limita-se, numa grande equipa, a fazer pequenas correcções. São importantes, mas são correcções. Ou seja, muitas vezes os jogadores não se sabiam posicionar no terreno, eles procuravam mais pela lógica, tenho de fechar mais dentro porque senão vou sofrer golo aqui, não posso estar tão aberto... Os guarda redes é que davam essas indicações à defesa, "fecha mais dentro", "joga mais junto".

Hoje já não é necessário?
Hoje o tipo de indicações são correcções mais cirúrgicas. Tudo evoluiu e ainda bem. Por isso não gosto de dizer "no meu tempo..." Se nascesse nesta época tinha de me adaptar, se bem que com as minha características ia ter muito mais dificuldades. Mas também tinha uma vantagem, porque o meu ponto forte era o um contra um. Hoje em dia situações dessas que surgem muitas, se calhar podia ter uma vantagem, mas a minha carreira foi bonita. Agora, quero ter uma carreira muito melhor como treinador de guarda-redes do que a que tive como jogador. Esse é um sonho que vou perseguir sempre.
Qual é o seu objectivo enquanto treinador de guarda redes?
O Fonseca convidou-me para trabalhar com a selecção do Canadá como treinador de guarda-redes. Acabo no Farense em Fevereiro e em Março começo logo na selecção do Canadá. As coisas correram-me bem. Tanto na primeira equipa como na equipa de Esperanças, de Sub-20, de sub-17, qualificações para Mundiais, qualificações para Concacaf, ou seja, foram seis anos que me permitiram acabar os cursos como treinador principal e como treinador de guarda-redes. E permitiu-me meter muita coisa em prática com os jovens e com a equipa principal. Foi bastante enriquecedor. 

Por que razão veio embora?
Entretanto houve uma mudança a nível da estrutura da federação, o presidente saiu para presidente da Concacaf e já se falava que o Canadá, os EUA e o México iam organizar o campeonato do mundo em 2026, o que veio a acontecer. Eu senti uma necessidade de trabalhar no dia a dia, gostava de voltar ao futebol diário numa equipa profissional. Entretanto surgiu o convite da parte do Luís Campos e tenho a agradecer mais uma vez às boas pessoas que se cruzam na nossa vida. O mister José Mourinho teve conhecimento de que o Luís Campos procurava um treinador de guarda-redes e indicou o meu nome. Estou-lhe muito agradecido, porque reconhece em mim capacidades para desempenhar essa função. Acabo por vir para o Lille numa situação de que não estava à espera, mas que era o desafio que eu procurava.

Não estava à espera em que aspecto?
Sentia-me preparado para isso, mas, vou ser sincero, pensava que talvez fosse voltar para Portugal, porque sabia que na Europa não havia pessoas que tivessem conhecimento do meu tipo de trabalho, eu não estava ligado a nenhuma equipa técnica, não estava ligado a nenhum treinador. Pensava que em Portugal, sendo português, o trabalho que tinha feito no Canadá podia dar-me alguma visibilidade. Eu tive muitos convites para continuar nos EUA e no Canadá. Surgir a oportunidade de trabalhar na liga francesa, numa equipa de primeira liga, confesso, com muita modéstia, que as pessoas pudessem ter outras opções. Pensava que não iria ser muito fácil entrar numa equipa técnica que estivesse já formada. O projecto do Lille e o projecto que o nosso director desportivo, Luís Campos, tinha em mente era ter os melhores profissionais para cada departamento. E um departamento que ele achava que era essencial é a posição específica de treinador de guarda-redes. Foi uma felicidade vir para Lille.

Está a gostar de trabalhar com os franceses?
Sim. O que vejo em França é que as pessoas têm qualidade de vida. O francês desfruta da vida. Há as horas de trabalho mas também há as horas de descanso, há as horas para poder jantar, para se poder divertir. Eles têm muito bem definidas as prioridades deles e a vida para eles não é só trabalho. O francês é conhecido pelo glamour e a expressão de viver à grande e à francesa tem a ver com isso, com a qualidade de vida que os franceses criam para si próprios. Eles têm os seus horários de trabalho, mas também têm as suas horas de poder estar numa esplanada, fazer uma refeição numa esplanada. Em Portugal estamos sempre a correr. Eles aqui conseguem ter pausas para poder desfrutar e apreciar o tempo que têm disponível. Em Portugal também somos muito apaixonados, mas vivemos a vida com uma intensidade muito grande e isso não é bom, as coisas acabam por nos passar ao lado. Em termos de futebol é um campeonato com muita exigência, tive a felicidade de poder trabalhar num clube que me dá boas condições não só a nível financeiro, como de recursos humanos e condições de trabalho onde posso desenvolver todos os conhecimentos e aprendizagens que tive. Tenho guarda-redes jovens, o clube aposta muito nos jogadores jovens para potencializar. 

Tem contrato por quanto tempo?
Dois anos.

Ambiciona chegar a um clube em específico ou ganhar algum título específico?
Neste momento gosto muito de estar no Lille, é dos melhores clubes franceses, mas claro que é um objectivo chegar aos grandes do futebol europeu, com todo o respeito pela instituição Lille. Esta semana já foi um sonho tornado realidade, participar numa Liga dos Campeões. Ganhar títulos é uma coisa de que gostava também, claro. Gostava de poder progredir na minha carreira, conseguir entrar nos clubes de top europeu e mundial. Equipas que possam ganhar os campeonatos nacionais dos seus países e a Liga dos Campeões. Enquanto guarda-redes fui campeão nacional da II divisão três vezes, duas pelo V. Setúbal e uma pelo Santa Clara. Quero também ganhar títulos como treinador.
Alguma vez foi chamado à selecção?
Não. Esteve perto mas nunca aconteceu.

É uma frustração que tem?
Não. Porque eu pertenci a uma geração de ouro que foi campeã do mundo em Lisboa e havia uma concorrência muito grande. Mesmo a nível sénior sabia que era difícil naquela altura, não senti nenhuma injustiça.

Saídas à noite?
Fazia mas mais pelo convívio com os colegas, não forçosamente por ser à noite. Era porque se proporcionava. nunca tive problemas, sempre cumpri horários, só saía nos dias de folga. Nunca bebi, nunca fumei.

É crente?
Sou. Acredito na energia positiva. Acredito em Deus e no meu trabalho. Sinto-me bem quando vou a Fátima. Já lá fui cumprir promessas, por mim e sem ser por mim.
Qual foi a promessa que fez?
Coisas básicas, como ter saúde, ter sempre trabalho, que as coisas corram bem. Para mim e para os meus.

Tem superstições?
Tinha e ainda tenho. Há cores com as quais me sinto melhor. Gosto de me benzer quando entro em campo, ainda hoje o faço.

Com que cores se sente melhor?
Sobretudo com o azul, é a cor do mar e do céu, mas gosto também do verde, que é a cor da esperança, e do roxo, que é uma cor de protecção.

Qual foi a maior extravagância que fez?
Comprar relógios. Tenho dois pelos quais tenho uma certa paixão e costumo dizer que eventualmente será um para uma filha e outro para a outra.

Tem tatuagens?
Tenho. Tenho uma no braço esquerdo com as iniciais dos nomes das minhas filhas, fiz no mesmo dia em que a minha esposa fez. Ela gosta muito de tatuagens e eu fui na iniciativa e fiz também. E tenho um anjo na costas de protecção com as iniciais da minha esposa e ela também tem com as minhas iniciais.

Onde ganhou mais dinheiro?
No Benfica.

Onde investiu?
Em vários produtos financeiros. Nunca me meti em nenhum negócio, porque tive sempre receio do risco. 

A sua mulher não voltou a estudar?
Não, não terminou o curso, ela é mãe e pai a tempo inteiro.

Disse há pouco que a sua mais valia enquanto guarda-redes era o um para um. E o ponto fraco?
Jogar com os pés.
Quem eram os seus ídolos?
O Michel Preud'homme e o Vítor Baía. O primeiro porque era muito completo o segundo pela sua elegância e capacidade.

O guarda-redes é a posição mais vulnerável dentro do 11?
Sim, é a posição mais ingrata. Porque um ponta de lança se falhar um golo e depois fizer um golo, tudo está bem, o guarda-redes se tiver uma infelicidade dificilmente consegue remediar um golo. 

Qual foi o jogo mais importante para si?
O da minha estreia na I Liga.

E qual o golo que mais custou sofrer?
O golo da eliminação da Taça de Portugal pelo Benfica, contra o Gondomar."

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