"Nos dias que correm, é cada vez mais comum vermos ex-árbitros seguirem o caminho (pós-carreira) do comentário desportivo.
Honestamente, acho que isso faz todo o sentido.
Se é para pôr alguém a dizer coisas difíceis sobre coisas dificílimas, que seja quem teve o conhecimento teórico e a experiência prática. Quem calçou botas e estudou regras e leis de jogo a vida toda. Quem participou em dezenas de cursos, sessões e acções de aperfeiçoamento. Quem recebeu instruções e recomendações regulares e actualizadas. Quem dirigiu alguns milhares de jogos e decidiu muitos milhares de lances.
Esta lógica, a de dar palavra a quem tem mais "know how", é a mesma que preside a outras em que o mais sensato é ouvir os que mais percebem da poda.
Quem estará mais habilitado para falar de treino, tácticas e opções técnicas do que o treinador, que fez aí a sua formação e viveu uma vida de sensações de campo?
E quem saberá mais sobre marcar golos, defender à zona ou fazer passes milimétricos, do que o jogador que os exercitou e praticou, vezes sem conta, durante anos a fio?
Claro que há, para além de juízes de campo, técnicos e atletas, muita gente que percebe do jogo, das suas normas e da sua essência. E claro que todas as pessoas têm direito a opinar e a comentar, sobretudo se tiverem paixão, vontade e oportunidade. Mas, perdoem-me a opinião sincera, penso que essa devia ser a excepção e não a regra. Para bem da informação que se passa para a opinião pública.
Eu também gosto muito de aviões, tenho paixão por toda aquela dinâmica que faz levantar do chão aqueles pássaros gigantes e, reconheço, não sei mais do assunto do que um comandante experiente, um profissional reconhecido ou alguém especializado na matéria.
Vem esta ideia a propósito das eternas polémicas - com vincada, reiterada e estratégica expressão pública - sobre a opinião de jogadas e lances, feitas por ex-árbitros, agora a colaborar com a imprensa.
Parece que há pessoas que, afinal, percebem bem mais de aviões do que quem trabalha, há anos, na aviação.
Digo isto porque sinto, na pele, as consequências diárias que a mera opinião pode ter no círculo de pessoas que gravitam à volta de uma partida de futebol. É qualquer coisa de impressionante. No sentido patológico do termo, claro.
Reparem: há o árbitro. Depois há o analista de arbitragem. E depois há um mundo de gente, ora satisfeita, ora indignada, com a opinião dada sobre a decisão tomada.
Parece confuso, não parece? Deixem-me trocar por miúdos: é como se erros e acertos, lá dentro e, mais tarde, boas e más interpretações sobre eles, cá fora... fossem depois a uma espécie de julgamento popular, onde uma série infindável de "pilotos sem brevet" sente-se avalizada para aplaudir, ironizar, repudiar ou chacinar.
Nada a opor à liberdade de expressão das pessoas, como é óbvio, mas a cegueira é tanta que parece que aquele a quem se pede opinião técnica é o mesmo que mostra cartões e assinala penáltis.
A malta fica tão alterada, enervada e incomodada com esta coisa das arbitragens que confunde os papéis. Convencem-se quem opina é a mesma pessoa que decide. Se não assim, parece.
Por sentir isso e muitas outras coisas que o limite de carateres deste espaço não me permite explorar agora, permitam-me algumas dicas bem intencionadas:
1 - Quando o comentador comenta, o jogo já acabou. Está decidido. Os golos estão marcados, as defesas estão feitas e os pontos estão atribuídos. Não há nada que ele possa dizer que mude essa realidade.
2 - O facto de existirem comentadores que têm opiniões diferentes sobre determinado lance não significa que não se entendam, que estejam de má-fé ou que sejam incompetentes. Significa que, tal como qualquer outro adepto ou agente do jogo, têm dúvidas sobre como interpretar determinada jogada. O futebol não é uma ciência exacta e é essa sua incerteza, o facto de ser pouco consensual e expectável, que o torna tão belo e apelativo.
Se acham incongruente haver quem se divida na opinião, deviam assistir a uma sessão técnica de árbitros (em Portugal ou lá fora), para verem o que é discutir e discordar de lances, uns atrás dos outros. É assim hoje. Foi assim no meu tempo. Será sempre assim, enquanto forem os homens a avaliar o que homens fazem.
3 - Não dêem tanta importância às análises que os ex-árbitros fazem. É um disparate a dimensão pública dada a quem tem por missão opinar.
O seu trabalho é interpretar momentos de jogo, não sentenciar o que quer que seja. Se nalguns casos a factualidade não deixa dúvidas e tudo fica mais fácil, noutros a coisa é quase impossível de garantir. Sendo assim, relativizem. Não matem o mensageiro.
São apenas e só pontos de vista.
4 - Não caiam no erro, reiterado, de elogiar o comentador quando ele diz o que "serve", massacrando-o na semana seguinte, quando o que opina não coincide com o que gostavam de ouvir.
A ofensa não incomoda e o elogio não agrada. Uns e outros são irrelevantes, porque uns e outros nunca irão nem condicionar nem manipular o que quer que seja.
Está claro... ou repito no ponto seguinte?
5 - Ainda assim e apesar do fillet mignon da malta serem os lances... o maior contributo que um comentador deve dar ao futebol é tentar, através deles, esclarecer as pessoas. Explicar o que dizem as regras, o que pensou o árbitro quando decidiu, porque acertou ou errou e o que podia ter feito de diferente. Como podia ter evitado o equívoco.
Essa sim, deve ser a sua missão por excelência. E é uma missão difícil, porque a cultura desportiva reinante e altamente incentivada é oposta.
Não se pense com isto que estou a tentar branquear erros de árbitros ou a desvalorizar o impacto que têm nas competições. Nada disso.
Porque muito que se pense o contrário, o corporativismo é o pior inimigo de qualquer grupo. Impede-o de crescer e evoluir.
O que, no fundo, estou a tentar dizer é para não darem tanta importância a quem comenta. É uma função como qualquer outra.
Não encerra estratégias duvidosas, não tenta defender uns clubes, atacando outros. Não persegue nem jogadores, nem técnicos nem dirigentes.
O comentador é apenas mais um profissional ao serviço do futebol, que opina na área em que trabalhou. Diz o que pensa e sente, com base no que viu e sabe.
Podem não concordar, podem detestar e podem naturalmente criticar, mas fica bem respeitar.
Foco no que é importante. O futebol precisa de menos folclore e mais andamento."