segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Lebres, cães e multidões

"Quem rodeia o cão mordido não resiste à tentação e dá também uma mordidela, só para sentir o sabor

Lebres
1. Se corres como mentes vamos às lebres.
- Ahahaah, que expressão curiosa.
- Pois, é isso.
- Este povo tem expressões maravilhosas.
- Mesmo!
- Meu caro, vossa excelência é tão mentirosa que se correr ao mesmo nível do que mente será o campeão da corrida rápida.
- Sim?
- Conseguirá até caçar lebres, esse animal recordista dos cem metros.
- O problema...
- O problema?
- O problema é que por vezes os mentirosos são coxos.
- Coxos..
- Não são rápidos, nem sequer lentos. Coxos.
- Não servem para ir às lebres.
- Não.
- Se coxeias como mentes ficamos já aqui. Não vale a pena ir às lebres. Eis uma adaptação possível deste provérbio.
- Uma adaptação possível, sim.

Sobre a multidão
2. A cão mordido todos mordem.
- Pois, é isso.
- A mordedura liberta sinais visuais, mas não só.
- Se estiver próximo, toda a gente vê que alguém foi mordido. Isso é evidente.
- Mas também devem existir sinais olfactivos.
- Uma mordedura deve cheirar ao longe, estou certo disso.
- E deve ainda libertar sinais sonoros.
- Certamente.
- É isso mesmo.
- Há tanta gente que aparece quando alguém é mordido que a mordedura só pode ter sido anunciada por mil meios.
- A irrecusável atracção da mordedura nos outros.
- Dava um belo título: a irrecusável atracção da mordedura nos outros.
- Torna-se atracção quase turística. Venham ver a mordedura nos outros! Bem bonita!
- Uma exibição. Um museu vivo.
- A mordedura nos outros...
- Uns apontam a mordedura, outros comentam. O tamanho da mordedura, as causas, os efeitos, o contexto.
- Mas claro que quem vê não se contenta em ver apenas e comentar.
- Diante de uma mordedura, muitos pensam: por que não também eu?
- Uma mordidelazinha?
- Hummm, que tentação.
- E não se trata de fome.
- Não.
- Ninguém se alimenta de mordeduras.
- Uma mordedura ou mesmo mil não satisfazem o velho estômago humano - que precisa de alimento concreto e substancial e não de pequenas lascas de carne.
- Mas há vários estômagos, excelência, e um deles, eu diria, é o estômago da maldade.
- E esse...
- E esse alimenta-se, sim, de mordeduras nos outros e não de comida concreta.
- E, portanto...
- E, portanto: eis que quem rodeia o cão mordido não resiste à tentação e dá uma mordidela só para sentir o sabor.
- E depois outro faz o mesmo. O difícil é começar, já se sabe.
- É como quem faz a primeira pergunta depois de uma conferência.
- Isso.
- E depois ainda outro avança para mais uma mordedura.
- E outro.
- E outro.
- E não acaba.
- A cão mordido todos mordem.
- Um cão mordido, duas hipóteses: ou se abre em redor dele uma clareira e ele fica sozinho a desembaraçar-se da sua mordedura ou em volta dele aparece uma multidão.
- Se fizéssemos um inquérito à multidão à volta...
- Sim.
- Você está aqui para quê?
- Para morder!
- E você?
- Morder.
- E você?
- Morder.
- E você?
- Morder, morder, morder!
- Ok. Percebi. E você aí atrás?
- Para curar e tratar a mordedura.
- Ups, uma novidade.
- Meu caro, um extraterrestre moral! Faça favor de passar. A mordedura é sua.
- A cão mordido todos mordem - mas há um ou outro que cura.
- Eis o acrescento necessário, excelência.
- Por vezes, sim, surge no meio da multidão que quer morder mais um pouco, um extraterrestre moral; alguém que quer curar.
- Que se deixe passar esse sujeito precioso.
- Sim, que se deixe passar."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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