quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Treinador ou ex-jogador

"Um dos maiores sábios que o jogo produziu, Valeri Lobanovski, ensinou que “um treinador tem de começar por esquecer o jogador que foi”, e bem pode dizê-lo, logo ele, que foi um jogador admirável mas entrou em rota de colisão com o primeiro grande mestre do futebol do leste europeu. Victor Maslov, que o treinou num Dínamo de Kiev dos inícios de 60, não via no extremo criativo Valeri o espírito gregário, com o inerente compromisso defensivo, indispensável à forma de jogar “socialista” que preconizava. No futebol também se percebe a história e a vida.
E a vida é irónica: Lobanovski, o mais rebelde dos comandados veio a tornar-se o discípulo maior do homem que lhe abreviou o fim da carreira. Maslov tinha inovado como talvez ninguém antes: sepultou o vetusto WM para se tornar percursor do 1.4.4.2, combateu a marcação ao homem como algo que “humilha e oprime moralmente o jogador que tem de a fazer” e lançou a noção de pressing, pela necessidade de retirar tempo de posse ao adversário. Mais revolucionário que isto não é fácil. Lobanovski acrescentou rigor às noções de pressing e defesa zonal mas principalmente juntou mais reflexão ao jogo. Esquecendo o jogador que foi, assumiu-se como teórico, puxou um matemático (Zelentsov) para a equipa técnica introduzindo a estatística, fundou a estratégia na preocupação de encontrar “novas formas de acção que não permitam que o adversário se adapte ao nosso estilo de jogo” e até escreveu a quatro mãos um livro sobre “As Bases metodológica do Desenvolvimento dos Modelos de treino”. E assim criou duas gerações de Dínamos em Kiev, que ficam como as melhores (de todas!) equipas da antiga União Soviética e da nova Ucrânia, primeiro a de Blokhin e depois a de Shevchenko. Em todos os grandes momentos do futebol ucraniano até ao início do século XXI o factor comum foi sempre Lobanovski, seja nas vitórias, como as das Taça da Taças de 1975 e 1985, ou nas derrotas, como a que o seu Dínamo sofreu frente ao FC Porto de Futre e Madjer na meia final dos Campeões de 87 ou a da inesquecível final do campeonato da Europa de 88, com a União Soviética a cair frente à Holanda após o golo o mais bonito já marcado numa final, o do vólei de van Basten. 
Numa sessão pública recente, um jovem amante de futebol queixava-se de não ter tido nenhum comentário no seu blog quando fez um texto - que o orgulhava, percebeu-se – precisamente sobre o histórico Dínamo de Kiev. Também aqui os comentários serão provavelmente menos do que se alinhasse umas ideias mais ou menos criativas sobre a acção dos dirigentes desportivos ou o contributo do VAR. Confesso que esses temas me cansam, que o meu jogo é outro, o do relvado, feito de boas ideias e grandes jogadores (a ordem não é arbitrária), até porque de opiniões de circunstância, segundo os amores e os humores do dia, está o futebol cheio. Como bem escreveu Rui Tavares, esta semana no Público, decerto longe de pensar nesta minha adaptação futebolística: “Olhem pelo ecrã do vosso telemóvel: ele está cheio de opiniões. Vocês não precisam de mais uma. Mas já histórias, isso sim – vamos sempre precisar de mais uma história.” São as histórias de Lobanovski, como de Maslov, ou antes deles Meisl e depois Cruyff ou Menotti que fazem o melhor da história do jogo. E às ideias juntam-se os homens para os dar o melhor que o jogo tem e teve, no sorriso de Ronaldinho Gaúcho como na rebeldia de Cantona, no codino de Baggio e nos olhos bugalhudos de Schilacci, na carapinha de Valderrama ou nas tranças de Makanaky, nos dribles incríveis de El magico Gonzalez, o deus de Cádiz, ou nos golos incomparáveis de Le Tissier, talvez o melhor jogador da história que nunca jogou numa grande equipa. Destes últimos que citei, nenhum se tornou treinador, pelo menos de topo. Talvez porque lhes fosse impossível esquecerem-se dos jogadores que foram.

Nota colectiva – Itália – a histórica azzurra falhou o Mundial mas chega impante ao Europeu, feita de juventude e golos, pela mão experiente de Mancini. Obteve vitórias em todos os jogos de qualificação, com um score indiscutível de 37-4 em golos. Construída sobre a solidez de Bonucci, Jorginho e Verratti, na maturidade de Insigne e Immobile, esta é já a geração de craques absolutos que não podemos mais perder de vista: Chiesa, Zaniolo, Barella, Tonali, Pellegrini, Sensi, mais esse talento subvalorizado que é Bernardeschi.

Nota individual – José Mourinho vai ter mais uma vida no topo do futebol inglês, que o currículo dele amplamente justifica mas em que falhar de novo é proibido. E é exigente a obra, que o Tottenham está hoje entre os 5 maiores emblemas do Reino e a herança de Pochettino é pesada. O contexto imediato favorece - no 14º na tabela, só pode melhorar - mas serão outros dois os factores críticos de sucesso: a construção de uma nova equipa técnica, mais feita de ideias para o futuro que de fidelidades do passado (e os primeiros sinais apontam nesse sentido), e a modelação de um jogar mais de iniciativa que de expectativa e com dose superior de identidade face à estratégia."

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