"O médico como aquele que tem na sua gaveta o passaporte bom: o da saúde
1. A 7 de Novembro de 1991, o basquetebolista Magic Johnson anunciou ser portador de HIV.
2. Em A Doença como Metáfora, de Susan Sontag, este belo começo: «A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mas tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão de outra zona».
O país da doença e o país da saúde. E depois, talvez, o país dos mortos. O terceiro país.
3. O médico, portanto, como aquele que tem na sua gaveta o passaporte bom: o da saúde - aquele que nos permite voltar a entrar no país onde o corpo e a cabeça avançam e de modificam.
O médico como funcionário de um posto fronteiriço essencial, o guarda de mais interior das fronteiras, uma fronteira que não está no exterior nem em qualquer mapa, mas algures nos órgãos, células e tecidos.
Não é pelo andar dos pés ou por meios de transporte exteriores que entras no país dos saudáveis; há um passaporte sim, mas que é traduzido em análises ao sangue, à urina, às fezes, etc... Se está tudo em ordem nestas análises, podes respirar de alívio: estás autorizado a entrar no país dos saudáveis.
Os hospitais, então, podem ser vistos como micro-países da doença ou, de uma forma mais esperançada: micro-países que tentam recolocar rapidamente o corpo de volta ao exterior. Ao país certo.
4. E sim, podemos pensar a morte como um terceiro e enorme país; um país, até ver - se não acreditarmos em mitos nem em ressurreições religiosas - que não tem possibilidade de reversibilidade. Só entras. Não sais.
5. A morte, como o terceiro excluído. Se não está morto, ou está saudável ou está doente.
Quanto o terceiro excluído, a morte, entra em acção, os outros dois estados, os outros dois países, recuam. Só o morto não pode estar saudável ou doente.
Não há mortos saudáveis não há mortos doentes.
6. O reino dos mortos ou a república dos mortos? Pode a política entrar até nesse terceiro mundo que tão mal conhecemos?
Sim! Pensar em alguém que quer deitar abaixo a monarquia dos mortos e implementar uma república. A república dos mortos.
7. Susan Sontag lembra as teses do século XIX de Samuel Butler em que defendia que a «criminalidade era uma doença»; que os criminosos deveriam ser tratados como doentes e isolados como se tivessem uma enfermidade contagiosa. Como lembra Sontag, para Butler era «absurdo condenar um doente» que cometesse um crime pois o doente tinha já uma condenação, uma condenação não social, mas orgânica: a própria doença.
A ideia de base era a de que ser doente era ser culpado; um inocente, portanto, não poderia estar doente.
Se está doente é quase um criminoso - algumas teses do século XIX chegavam a este extremo. Pois bem, isto está completamente ultrapassado, dirão uns. Ninguém vê hoje um doente como se fosse um assassino ou um ladrão, um criminoso.
Será? Talvez sim, talvez não. Se pensarmos na Sida e noutras doenças, como a sífilis, de conteúdo sexual - veremos que não só no início do aparecimento deste epidemia - estar doente era, e é ainda por vezes, infelizmente, equivalente, para algumas pessoas, a um juízo moral do destino ou de deus. Estás doente porque não te comportasse bem - eis uma frase que sobrevoa muitas cabeças.
Daí a importância do livro de Susan Sontag A Doença como Metáfora e A Sida e as Suas Metáforas.
A visão da doença como julgamento moral da natureza e da vida não está, de facto, ainda ultrapassada. Se tens Sida não podes estar inocente - ainda se sussurra, aqui e ali, em pleno século XXI.
Pode o século XXI ser por vezes mais básico e manifestar um menor uso do cérebro do que o já longínquo século XIX? Pode."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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