terça-feira, 17 de setembro de 2019

Chegam notícias de Moçambique


"O Papa falou de Eusébio, em Moçambique, e parece que é preciso o Papa falar de Eusébio para nos lembrarmos de Eusébio. Não, amigos. O pecado é de todos aqueles que se esquecem de Eusébio. Ele é o homem inesquecível!


As notícias de Moçambique dizem que o Papa falou de Eusébio. E de repente, em Portugal, voltou a falar-se de Eusébio.
Eu, que nunca esqueço Eusébio, amigo e jogador, ambos inesquecíveis, não me sinto em pecado. Pecado, amigos, é não recordar Eusébio.
Porque ele, Portugal antes de Portugal, gigante negro num país de anões brancos, está para lá das palavras de um Papa.
Chegam notícias de Moçambique.
Chegavam notícias de Moçambique.
O tempo em que Eusébio ainda não era o Eusébio por inteiro.
Um projecto de Eusébio.
Eusébio na sua busca de ser Eusébio!
Em Lourenço Marques, os Janeiros eram quentes, asfixiantes, quase incómodos. Havia manhãs em que parecia que um cobertor de papa, daqueles velhos cobertores que se amontoavam nos báus dos avós, tapava a cidade, da Ponta Vermelha e do Quartel de Artilharia, entalado entre a Rua do Chaimite e a Rua Coolella, até ao fim da Avenida Manuel de Arriaga, para lá da Fábrica de Sabão e do Forno Crematório, da Baixa a Malhangalene e Minhuana, e para lá ainda, nos caminhos de Xipamanine.
No bairro da Mafalala, onde vivia D.ª Elisa Anissabani, era hábito as pessoas dormirem a sesta em redes estendidas entre dois coqueiros. Ou trazerem, para fora das suas casas pequenas e abafadas, colchões de palha que estendiam no terreiro, à sombra de uma acácia de copa achatada e flores rubras. Colchões de palha forrada e serapilheira riscada a vermelho e branco.
D.ª Elisa Anissabani: mão de Eusébio. Antes dele já tivera três rapazes. Queria uma menina, agora. O dia 25 de Janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-lhe Eusébio da Silva Ferreira. O mundo saberia, a devido tempo, decorar-lhe o nome. E pronunciá-lo de todas as formas. Euzibiú, Ozébio, Iuzibiô, Ouzébiou... O mundo não tardou a confundi-lo com Portugal.

Eusébio por ele próprio
Tanto escrevi sobre Eusébio, que me repito.
Deixo-o falar. Dele mesmo.
'Chego a convencer-me de que, enquanto os outros bebés aprenderam a andar, eu aprendi a chutar', diria Eusébio, dezanove anos depois, numa entrevista concedida a Carlos Miranda. Um ano depois de chegar a Lisboa e à Metrópole, como então se dizia, Eusébio já era O Eusébio, e tinha uma história completa contar.
Disse e repito: Eusébio contra-se a si próprio.
'Não me lembro de brinquedos, não me lembro de jogos ou de partidas. Lembro-me de bola. Sempre da bola. A trapeira, se coisa melhor não se conseguia arranjar, lá nos coqueiros, em desafios sem fim, sem prazos de tempo nem balizas medidas. Jogar à bola, fosse como fosse, era tudo quanto desejávamos'.
Eusébio fala, o Carlos Miranda escreve, a gente lê: 'Eu já andava numa escola, claro, e algumas vezes, bom... houve uma gazetas, a minha mãe não gostava nada de que eu andasse enfronhado no futebol, apertava comigo, que me importasse com a escola e me deixasse dos pontapés na bola, mas eu não sei explicar, havia qualquer coisa que me puxava, sentia um frenesim no corpo que só se satisfazia com bola e mais bola. O resultado de tudo isto eram uns puxões de orelhas bem grandes e, uma vez por outra, umas sovas que não eram brincadeira nenhuma'. De nada serviu. Os irmãos estudam, Eusébio não. Alguns chegam a completar o liceu, ele desiste no fim da 4.ª classe. Estava escrito: seria doutor em futebol. Honoris causa!
O pai morre-lhe cedo. Angolano de nascimento, trabalhava nos Caminhos-de-Ferro de Lourenço Marques e jogara futebol no Ferroviário. Tinha 37 anos: o tétano não escolhia idades. Chamava-se Laurindo António da Silva Ferreira, natural de Malanje. Não chegou a ver jogar o filho.
Lá, na Mafalala, Lourenço Marques, Moçambique, em 1958, D.ª Elisa Anissabani gritava por Eusébio, mas Eusébio não vinha. Ficara de ir buscar o jantar da família, agora maior: D.ª Elisa Anissabani tivera a menina que tanto queria, tivera até mais duas, e já somava seis rapazes. No regresso, faltava um. Faltava um no campo da bola de terra vermelha, estavam dez para onze, Eusébio era preciso. Esqueceu o jantar, esqueceu a família. O chamado da bola era mais forte do que a voz da mãe.
E nós aqui. Recebendo notícias de Moçambique.
O Papa falou de Eusébio.
Papagaios de papel barato sobem nos céus de África.
Eu nunca me esqueço de Eusébio. Não haverá nunca outro como ele!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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