sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Aos seus lugares (os super-heróis do mundo real estão nos Jogos Olímpicos - e não só)

"No 2.° direito da Praceta Raúl Proença, havia família com duas filhas adolescentes e os pais já com um pé nos quarentas. Tudo corria bem, até que tiveram um pequeno acide... perdão… queria dizer "uma agradável surpresa": o nascimento de uma terceira filha, ou, como há quem diga com carinho, “um feijãozinho perdido”.
Não venho de uma família em que o desporto estivesse dentro de casa - fui eu que levei o desporto lá para casa. E a prova disso é que quando partilhei que "ia aos treinos de atletismo", o meu pai inicialmente não ficou lá muito entusiasmado, e chegou mesmo a dizer-me "que o atletismo não era para meninas."
Mas bastou ir a uma única prova minha para se esquecer que alguma vez tinha dito tal coisa e para passar a apoiar-me no meu novo projecto.
Desde os 10 anos que o meu pai me acompanhou nos treinos. Quando cheguei à faculdade, ele passou a fazer de tudo para que fosse possível estudar e treinar com qualidade. Todos os dias me acordava às 5h40, com um sumo de laranja, e às 6 saíamos de casa para eu correr - ele ia de carro a dar-me música e luz.
A minha mãe até ao dia de hoje não sabe bem quais são os meus recordes pessoais. Para ela só importam duas coisas: se estou feliz e se estou saudável.
A minha família não é uma família de atletas, mas o apoio que me tem dado ao longo do meu percurso fez de mim o que sou hoje.
Normalmente, quando pensamos nos ingredientes para o sucesso, talento e trabalho são os primeiros pontos que nos ocorrem. A minha experiência tem vindo a mostrar-me que a sorte de ter um meio próspero e oportunidades para desenvolver o potencial são igualmente fundamentais.

Prontos...
Em 2012, tive as primeiras oportunidades de ir estudar e treinar nos EUA. Na altura, apesar de não ser fácil conciliar o desporto e a escola no sistema universitário português, eu não estava preparada para deixar o meu namorado - que hoje em dia é o meu marido -, os meus amigos e família.
Em 2014, durante o último ano do meu curso de fisioterapia, alguns acontecimentos na minha vida pessoal fizeram-me questionar se estava a dar importância devida àquilo que para mim era realmente importante e nessa altura repensei se estava a fazer tudo o que estava ao meu alcance para chegar onde queria.
A vozinha que acordou na minha cabeça desde que faço desporto deixou de dizer "Um dia gostava de ir aos Jogos Olímpicos", para passar a dizer "Quero ir aos Próximos Jogos Olímpicos".
Em 2015, peguei numa mochila cheia de sonhos e atravessei o oceano para começar uma nova aventura.
Mesmo começando com o pé direito, para correr também precisamos dos joelhos e passados dois meses da minha chegada a lesão no joelho que trouxe de Portugal ainda não tinha passado, e acabei por ter de ser operada.
Recuperar longe de casa não foi fácil, mas felizmente tive uma recuperação rápida, que me permitiu voltar para a pista e começar literalmente a correr atrás do meu sonho americano.
Nesse mesmo ano, contra todas as expectativas, consegui avançar nas rondas do Campeonato Nacional Universitário, da NCAA, e acabei mesmo por chegar à final. Sentia que nada me podia parar. Nem consigo explicar o entusiasmo que senti na partida: eu tinha mudado a minha sorte. Infelizmente, 100 metros depois do tiro de partida, fui empurrada e acabei por cair e partir o punho.
A época seguinte era ano olímpico e eu tinha o plano perfeito para me vingar. A escada para o sucesso era simples: em Novembro tinha de ir ao Europeu de Corta-mato, em Março ao Campeonato do Mundo, em Junho ganhar a NCAA, em Julho ir ao meu primeiro Europeu de Seniores, e em Agosto aos Jogos Olímpicos.
Claro que o plano não correu tal como eu o desenhei, mas a verdade é que apesar de não ter cumprido todas as metas, atingi os meus dois principais objectivos: sagrei-me campeã da NCAA e fui aos meus primeiros Jogos Olímpicos.
Traçar objectivos não é o mesmo que comprar um bilhete para um destino. Mas há que aceitar que a viagem é longa, que vai ser dura mas vai valer a pena.
Tenho vindo a aprender ao longo da minha carreira que é a soma das pequenas vitórias que nos leva aos momentos de sucesso que tanto procuramos. Por exemplo: eu não ganhei o World Challenge em Berlim, onde bati o recorde nacional da milha, pelo sprint dos últimos 100 metros. Eu fi-lo porque me entreguei no treino, e fiz valer a pena todas as lágrimas de despedida que foram choradas para eu ali estar. Fi-lo pelos dias em que saí da pista com uma lição em vez de uma medalha. Pelas conversas difíceis que tive com o meu treinador e colegas de equipa, para tornar o meu ambiente de trabalho mais próspero. Fi-lo por ter aprendido a passar mais tempo a ser grata pelo que sou e pelo que tenho, em vez de me comparar com alguém que nem sequer conheço.
Espero ter várias medalhas ao peito no fim da minha carreira, mas quero ter a certeza que até lá aproveito cada bocado que a viagem me dá, porque essa vai ser a única forma de ter orgulho do meu percurso, quando ele chegar ao fim.

O Tiro
No dia antes da prova, todos os atletas tiveram contacto com a imprensa. No meu dia, um dos jornalistas perguntou-me o que senti quando entrei na Aldeia Olímpica.
Eu disse que, na minha opinião, dentro da aldeia estavam os super-heróis do mundo real. Os seres humanos mais ágeis, os mais fortes, os mais rápidos, os mais resistentes. E que pertencer à população de uma aldeia de super-heróis me fazia sentir especial.
Chego à conclusão de que estava enganada. Os heróis do nosso mundo não estão só na Aldeia Olímpica: estão em todo o lado. O José Freitas que acordava a filha todos os dias para ir correr também é um super-herói, tal como todos ou outros pais ou filhos de alguém.
Todos nós somos os heróis da nossa própria história e temos o poder de escrever cada linha do nosso livro com entusiasmo, na procura do final feliz."

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