"Conheci o Professor Paula Brito em Outubro de 1974, numa fase ideologicamente riquíssima da vida do nosso país, com revoluções e contrarrevoluções quase diárias a preencherem as páginas dos jornais diários e o ocupar o prime time da Radio Televisão Portuguesa.
Essas revoluções tocavam todas as instituições do país e, como não podia deixar de ser, as instituições de educação, muito marcadas por estigmas de autoritarismo característicos do Estado Novo que pretendia o controlo absoluto do processo ensino-aprendizagem. É importante que se diga que as muralhas desse centralismo autoritário começavam a abrir brechas, principalmente pela acção consciente e inovadora de muitos dos mestres que, contra ventos e marés, porfiavam no sentido de transformar a lição ex-cátedra num momento de auto e hétero-formação em que as doutrinas fechadas eram substituídas por vívidas teorias refutadas todos os dias.
O 25 de Abril apanhou-me no final do 1º ano do Curso de Instrutores de Educação Física, na escola do Porto. Não era já nenhuma criança, pois tinha feito a guerra no ultramar e, por isso, receei que a alteridade do momento pusesse em causa a resolução do curso. Comecei a ter um forte protagonismo, procurando evitar que o oportunismo que grassava na sociedade portuguesa fizesse perigar a dignidade da formação que eu e muitos como eu procuravam.
Meus senhores, naqueles tempos de revolução oportunista, feita à medida dos interesses egoístas de cada um, foi um fartar vilanagem no campo da formação superior. Houve estudantes de medicina que, assinando num dia as aulas de um período, fizeram três anos em um, à base de trabalhos alheios. Um fazia o trabalho e dez ou mais assinavam-no. Logicamente que esses médicos ficaram marcados, para sempre, com o estigma do mais descarado oportunismo. Essa patologia anti formativa estendeu-se naturalmente a quase todas as instituições de educação. Digo quase para não ferir alguém que num caso particular tenha conseguido lutar contra o zeitgeist “revolucionário”.
Devido ao meu protagonismo anti facilitismo fui eleito pelos meus colegas para a Comissão Instaladora dos Institutos Superiores de Educação Física de Lisboa e do Porto.
Rumei a Lisboa e tenho o primeiro contacto com o Professor Paula Brito no Ministério da Educação, numa reunião convocada pelo diretor geral do Ensino Superior – António Hespanha. De imediato verifiquei que o Professor Paula Brito tinha, não só, a capacidade de organização e decisão de um grande líder como, em relação à nossa missão já tinha construído “the big picture”. Ou seja, antes de começar já tinha bem elaborada na mente a estratégia para abordar os imensos problemas com que deparámos.
Paula Brito decidiu que o nosso locus de trabalho seria nas instalações do INEF pois a partir dali conseguiríamos, mais facilmente, resolver o duplo objectivo da nossa missão: (1) dar solução às avaliações no INEF e nas Escolas de Instrutores de Lisboa e Porto, e (2) promover todas as acções que unissem a classe dos professores de educação física e permitissem a criação da via única de formação.
A via única de formação era desejada por todos, mas…há sempre um mas nestas coisas, nessa via única de formação como se integrariam os antigos formados? Emergiram, naturalmente, diversas linhas de tensão, principalmente com os formados pelas Escolas de Instrutores que, sem nunca terem entrado na universidade queriam equiparações académicas de nível superior. Eu, que sempre defendi a dignidade dos processos insurgi-me sempre contra o oportunismo que grassou na nossa classe. Este diálogo idealizado não deve andar muito longe do diálogo real que muitas vezes entabulei com o Professor Paula Brito.
- Professor, é inadmissível tanto oportunismo.
- Calma, José Augusto, tente ver o lado dos instrutores. Eles faziam o mesmo trabalho dos professores que saíram do INEF, recebiam muito menos, e não recebiam nas férias. Eram verdadeiros escravos do sistema.
- Como assim? questionei eu.
- Os instrutores foram mão de obra barata, formada em curso de dois anos, para dar resposta às necessidades sociais de professores de educação física.
- Mas, eles nunca entraram nunca universidade; como podem querer ser bacharéis? Entraram no curso de instrutores com o 5º ano (atual 9º ano).
- É um problema de justiça social, retorquiu o Professor Paula Brito.
- Certo, reconheço que lhes dever ser dada equiparação profissional a bacharéis, mas se quiserem ser bacharéis para seguir os estudos até à licenciatura, devem entrar no primeiro ano do curso superior.
- José Augusto, gosto do seu voluntarismo, mas o que você defende não é viável. Tem de ser dada a equipação profissional e académica aos instrutores. Pode haver algo de cedência aos seus interesses egoístas nessa equiparação, mas é uma forma de fazer justiça a uma classe vilipendiada pela lógica da mão-de-obra barata que os desqualificou como professores.
- Professor, mas eu sou instrutor e quero fazer a licenciatura desde o primeiro ano.
- Sim, mas você é um jovem, com a vida cheia de futuro à sua frente e não sofreu os maus tratos dos instrutores ao longo dos anos. A partir de agora não haverá mais professores de primeira e professores de segunda.
Logicamente que a razoabilidade das reflexões do Professor Paula Brito, após uma resistência inicial que batia certo com a minha costela guerreira, foram-me entrando na moleirinha e adoptei como minhas as suas posições.
No decurso da minha estadia em Lisboa, desde Novembro de 1974 a dezembro de 1975, o Professor Paula Brito acolheu-me debaixo da sua asa proctetora. Quase todos os dias da semana almoçava com ele e ia bebendo da sua experiência e calma sabedoria.
Um dia, ao saber que eu tinha aderido ao M.R.P.P. o Professor perguntou-me:
- José Augusto, sabe o que é o maoismo?
- Não sei bem o que é, mas vou tentar saber.
No dia a seguir ele traz uma saca com cinco livros sobre Mao Tze Tung e o maoismo e oferece-mos. Avisa-me: - Daqui a uma semana tem de me fazer uma síntese do que entende por maoismo. Estudei a fundo a matéria e passada uma semana fiz-lhe um resumo das minhas concepções sobre o maoismo.
Perguntei-lhe: Então Professor? Já domino a coisa?
Responde ele com a sua sábia ironia:
- Não sei, porque não sou maoista nem quero ser.
Esta foi a mais profunda lição que o Professor Paula Brito me deu. Seja qual for a direcção das nossas opções ideológicas elas têm de estar alicerçadas no máximo conhecimento dos seus pressupostos filosóficos.
O Professor Paula Brito, como mestre empenhado em criar mentes bem formadas em vez de mentes bem recheadas, iluminou-me no dealbar da minha condição de professor. Sempre o seu lema me orientou – Só deve ter direito à palavra quem gastou tempo na procura de soluções para um dado problema. Fora disto, falar, é puro diletantismo.
O Professor Paula Brito, foi o timoneiro seguro que nos fez navegar entre os escolhos que levaram à criação do Decreto-lei 675/75 que criou os ISEFs de Lisboa e do Porto. Como Professor de Lisboa esteve sempre ligado académica e emocionalmente ao Porto. Foi o mestre de alguns dos meus colegas da FADEUP. Era um cidadão do mundo sempre empenhado em destruir barreiras que isolassem o homem do seu envolvimento social. O seu sorriso era o sinal de uma alma em paz consigo próprio.
O ano passado telefonei-lhe saudoso das nossas conversas. Aventou: - Temos de reunir a malta toda da Comissão Instaladora num jantar para relembrar as saborosas histórias desses momentos tão importantes na vida de Portugal e das nossas vidas. Anuí logo. Esse jantar já não se pode realizar, mas as lições do mestre que moldaram parte da minha efervescente personalidade continuarão comigo até que a realidade biológica que me corresponde se dissolva no magma quântico de que é feita a vida e vã encontrar o Professor Paula Brito ali ao virar da esquina, naquela praça onde os bosões, protões, neutrinos, electrões e outros que tais se encontram para conversar."
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