sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Acho que nunca nos conhecemos, mas eu sou Nigel Owens, o árbitro, e isto não é futebol

"O melhor árbitro do mundo é galês, tem 47 anos, apitou a final do Mundial de há quatro anos, o jogo inaugural deste e foi o primeiro homem a assumir, publicamente, a sua homossexualidade no râguebi. Depois de tudo isto, Nigel Owens ainda é quem mais e melhores tiradas diz durante os encontros, e todos o podemos ouvir porque quem apita tem microfones que espalham o som pelo estádio.

Passa das três da manhã, a noite ainda é escura, ele acorda. Tenta abafar o ruído a um mínimo, pé ante pé em casa para se preparar e não acordar os pais. Deixa-lhes uma carta. Sai de casa e caminha até ao topo de Bancyddraenen, montanha perto de Mynyddcerrig, a sua aldeia no oeste de Gales, onde as consoantes se escrevem seguidas.
Chega lá acima, senta-se no chão, abre a caixa de comprimidos para dormir e engole-os, todos, bebendo whisky. Perde o tato ao tempo, a quanto terá passado até o pai e a mãe despertarem, encontrarem a carta, lerem que “a única solução é tirar a minha própria vida”, entrarem em pânico. O corpo de Nigel Owens tomba e, no peito, tem uma caçadeira carregada, apontada ao queixo, caso a overdose de drogas não resultasse.
Foi assim, em 1997, que por milagre encontraram um homem de 26 anos, bulímico, enjaulado na distorcida perceção própria de que estava gordo, envergonhado por perceber que era gay e a marcar consultas para dizer a um médico que "queria ser castrado quimicamente", suplicando por uma cura. Estava depressivo no medo dos estereótipos e julgamentos pré-feitos do râguebi macho, a deixar-se erodir, aos poucos, em culpa própria, até acordar numa cama de hospital, os pais o visitarem e ouvir da boca da mãe:
“Se voltares a fazer uma coisa destas, podes levar-me a mim e ao teu pai contigo”. 
O Nigel a afundar-se em dúvidas próprias, afogado em vergonha, medroso de como poderia ser percepcionado, começou a aceitar-se, a ser, consequentemente, um melhor árbitro de râguebi, porque em Gales “há um ditado que diz que um árbitro feliz é um bom árbitro”, disse-o ele, à revista “GQ”, muito depois de 2007, quando assumiu publicamente a homossexualidade e se permitiu a alegrar-se.
Nigel Owens tem 47 anos, já contou a sua quase trágica história em autobiografia, apitou cinco finais da Taça dos Campeões Europeus, mais de 80 jogos internacionais entre selecções. Esteve no primeiro jogo do Mundial, esta sexta-feira, e na final do último, em 2015, se provas faltassem de que é o melhor e mais respeitado árbitro no râguebi. Mas, se “pudesse trocar tudo isso por uma vida pacata e normal”, o galês “fá-lo-ia, acreditem”.
Ele teima tipos com músculos hercúleos, candidatos à distinção de desportistas com os maiores arcabouços do planeta, que se juntam aos 30 de cada vez num campo onde o bruto contacto físico é inevitável e o sangue quente, portanto, expectável.
E diz que tudo é normal e não poderia ser de outra forma. “Um dos valores fundamentais do râguebi é o respeito, que te é instilado quando és jovem, para ires a um jogo e respeitares os adversários, o árbitro e as decisões. Quando eles ficam com 2 metros e 120 quilos, esse respeito já faz parte deles”, explicou, ciente de que, por outro lado, é respeitado, encarado e conhecido por “ter lidado tão abertamente com períodos difíceis” da sua vida.
E, também, por ter o feitio que tem quando está equipado e a trabalhar.
O miúdo que, aos 14 anos, se inscrevia em clubes de comédia para tentar a sorte em stand up, esforçando-se para fazer rir quem tinha à frente, é o homem que arranca sorrisos em campo sem intenção, por ser apenas quem é - e por o râguebi prender microfones nas lapelas dos árbitros para que o estádio e a transmissão ouçam o que é decidido, e porquê.



Em 2012, os irlandeses do Munster jogavam contra os italianos do Treviso, na Taça Europeia, o galês apitava-os e ouvia, insistentemente, um jogador a queixar-se. Era Tobias Botes, um sul-africano recém-chegado ao râguebi deste lado do mundo, que o obrigou a parar o jogo para lhe dizer: “Acho que nunca nos conhecemos, mas eu sou o árbitro. E isto não é futebol”.
Nigel Owens já era conhecido, aí começou a tornar-se famoso.
No último Mundial, interrompeu o jogo perguntar ao vídeoárbitro por uma suposta penalidade, ver que nada o justificara e chamar Stuart Hogg, defesa escocês, para lhe dizer que fizeram “um claro mergulho” e, “cuidado”, se quisesse repetir, que fosse “não hoje, mas daqui a duas semanas”. O jogo era no St. James Park, estádio do Newcastle United, equipa da Premier League inglesa.
Em 2014, o talonador Dave Ward, dos Harlequins, atirou a bola tão torta para um alinhamento, onde é suposto entrar em linha reta, entre os jogadores, que Nigel apitou e não evitou acrescentar uma piada. “I’m straighter than that one”, disse, balançando o sarcasmo entre o significado (direito) e o sinónimo (heterossexual) de straight.
Nigel é afamado pela forma como apita e o estilo vocal com que o faz. Está no Japão para apitar o seu (provável) último Mundial, para se preparar para deixar o râguebi, parar de viajar a toda a hora e, por fim, assentar e parar de se dedicar à arbitragem - “As pessoas dizem-me que sou corajoso, mas, à noite, vou para casa e estou ali deitado, sozinho, a pensar para mim: ‘Sou corajoso, ou apenas um tolo?”"

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